Capítulo 5

O brilhante sol da manhã terminou por despertar Connor do que ele julgava sua melhor noite de sono em anos.

—Ah! Finalmente acordou!

A voz do amigo e secretário soou por trás do cortinado quando o conde se espreguiçou ruidosamente na cama.

—Jesus? Que horas são?

Abrindo as cortinas, Connor viu o amigo confortavelmente instalado em uma das poltronas escuras. Pilhas de papéis espalhavam-se pelo chão e em seu colo.

—Passa das onze, milorde. Sua mãe deve estar feliz esta manhã! Está agindo como o nobre que é! – zombou o enorme rapaz de pele escura.

— Cale a boca, Jesus! Nem você vai me tirar do sério esta manhã!

—Você nunca está tão feliz assim logo que acorda. A que se deve esse fabuloso estado de espírito?

—À Ártemis! – disse o conde simplesmente.

—Como é?!

—Ártemis Templeton.

— Eu sabia! Você realmente ficou encantado com ela, não?

 De repente, o sorriso desapareceu do rosto bonito de Jesus e ele apanhou um maço de papéis da mesa de cabeceira.

 — É melhor se levantar, tenho uma porção de recados para você. Do almirante Smith e de um dos seus contatos...

—Ótimo! Já não era sem tempo! O que diz a mensagem?

—Que ele conseguiu os nomes que você queria, mas pelo que vi, seu trabalho não será fácil.

—É tudo o que eu precisava! Afundar-me no trabalho! E o Almirante?

— Só diz que precisa lhe falar com certa urgência.

Quando o Almirante o contratara, um ano antes, Connor encontrava-se tão desolado, que abraçara a chance de se dedicar as missões perigosas, torcendo para que um dia uma delas o matasse. Com o tempo, porém, ele percebeu como aquelas tarefas eram importantes para seu país e como lhe fazia bem saber que era útil novamente e as ideias funestas o haviam abandonado.

Nos últimos meses estivera às voltas com um cartel de ópio que se instalara em Londres. Tentara, sem sucesso, descobrir o nome do chefe do cartel e dos distribuidores. Agora, parecia que as peças começavam a se encaixar.

—Ethnee já se levantou? – perguntou, enquanto dava um complicado nó em sua gravata.

—Só você dormiu demais hoje, meu amigo. – Connor lançou-lhe um olhar gélido, o que só provocou o riso do secretário. – Saiu logo cedo com miss Templeton para o passeio diário no parque. Não devem demorar.

—Você as viu?

—Apenas Ethnee. Ainda não encontrei sua preciosa governanta desde que me mandou contratá-la. Mas Ethnee estava muito animada com a perspectiva de sair.

—Ótimo! Ethnee precisa mesmo sair de casa.

—Ethnee precisa de você, Connor!

—E ela me tem e sabe que eu a amo demais e que nunca ficará desamparada.

—Talvez, mas você reforça isso com suas atitudes? Não! Fica trancado nesta maldita biblioteca dia após dia, saindo apenas quando todos dormem. A menina precisa de você, homem! De seu tio querido, não do que sua fortuna pode lhe dar! Mesmo porque ela nada pode ver.

Connor não disse nada em réplica. Apenas olhou seu amigo nos olhos e saiu do quarto.

Ethnee tirava um cochilo em sua cama. Os passeios no parque estavam lhe fazendo muito bem, mas ainda a deixavam cansada. Amie não tinha nada com que se ocupar, por isso desceu até a cozinha para ver em que poderia ajudar. Esperava também, que o cheiro constante de comida estimulasse seu apetite que parecia ter desaparecido desde o desjejum.

Aquele era seu cômodo preferido em todas as casas em que trabalhava. A cozinha era sempre acolhedora e animada. A de St. James Hall era ampla, arejada e bem iluminada. Ali, o cozinheiro e as ajudantes andavam de um lado para o outro mexendo panelas, provando molhos e verificando algo de odor delicioso que assava no forno.

Signore Paolo! Posso ajudá-lo em algo?

—Amie, ragazza mia! Que bom que veio. Importa-se de descaroçar aquelas tâmaras pra mim?

—Claro que não.

—A pequena lady está bem? – quis saber o chef.

—Está ótima. Dormindo um pouco depois do passeio.

—Fabuloso! Essa menina precisava mesmo de atenção! Eu me lembro bem de quanta atenção a senhorita demandava nessa idade!

—Ah, signore! Eu não dava tanto trabalho assim!

 Ela riu alto e jogou uma tâmara na tigela à sua frente.

Amie passou horas agradáveis na cozinha, conversando e ajudando o cozinheiro.

— Miss Templeton, poderia levar esta bandeja para o conde, por favor? Não encontro o criado dele em lugar algum!

—Claro, Sra. Fitzwaring. Volto num instante.

 Entregando a faca com a qual fatiava maçãs para uma torta à uma das meninas da cozinha, Amie limpou as mãos no avental e se levantou para apanhar a bandeja.

Mas, antes que pudesse fazê-lo, seus joelhos dobraram e tudo ficou escuro.

— Amie!

 A eficiente governanta soltou a bandeja sobre a mesa e ajoelhou-se ao lado da jovem, dando tapinhas no rosto pálido.

—Mary, vá chamar o conde, rápido!

A mulher saiu correndo da cozinha, tão desesperada quanto a governanta, voltando minutos depois, seguida pelo conde.

—O que houve, Sra. Fitzwaring?

 Ele abaixou-se próximo ao rosto de Amie, e com dois dedos em seu pescoço, verificou sua pulsação.

—Eu pedi a ela para levar uma bandeja para milorde na biblioteca, mas ela desmaiou antes de conseguir apanhá-la.

—Estranho. Ela fez ou comeu algo de diferente hoje?

—Amie passou boa parte da tarde aqui comigo, milorde. – disse o cozinheiro.

—Ela quase não comeu hoje no almoço, Vossa Graça. Seus pratos voltaram quase que intocados. – comentou a criada responsável por servir a mesa. – E não me lembro de ter recolhido mais que uma xícara de chá esta manhã, no desjejum.

—Está bem. Vou levá-la para o quarto.

Connor acomodou Amie junto ao peito e carregou-a até o andar superior. Colocou-a na cama espaçosa e pousou a mão sobre sua testa. Ela estava com febre. Certamente por causa da chuva.

A governanta entrou pouco depois, aflita.

—Milorde? Posso fazer algo?

—Sim, Sra. Fitzwaring. Ajude-me a tirar as roupas dela e a colocar uma camisola. Miss Templeton está com febre e precisará repousar.

—Vossa Graça não acha melhor eu mesma fazer isso? – A mulher o encarava com as sobrancelhas franzidas.

—Ora essa, Sra. Fitzwaring! Esquece-se de que sou médico?

—Não, milorde, é que...

—Então me ajude aqui, sim?

Com um olhar severo para a mulher idosa, o conde levantou o tronco de Amie para que ela soltasse os botões da blusa e o espartilho.

—Sinceramente, admiro-me que não haja mulheres desmaiando pelas ruas a todo o momento! – ele disse, jogando o espartilho sobre uma cadeira. – Como conseguem viver com isso?

—Ah, milorde! Não se deixe levar pelo que os jornais dizem. Um espartilho nada mais é que uma roupa de baixo, só que com uma função prática. E uma mulher que o aperta mais do que deveria, é uma tola.

Em seguida, a governanta puxou a saia azul, deixando Amie apenas com uma combinação de linho branco.

Enquanto a Sra. Fitzwaring vestia Amie com uma camisola de algodão, Connor foi até o lavatório e trouxe uma bacia com água e panos limpos para perto da cama. Depois de colocar Amie sob as cobertas, pôs a compressa em sua testa e aproximou uma poltrona da cama.

—Pode ir, Sra. Fitzwaring.

—Milorde, não prefere que eu fique? Ou Megan?

—Não, eu ficarei até que miss Templeton recobre os sentidos.

—Como quiser, senhor. – Disfarçando um sorriso satisfeito, a governanta deixou o quarto.

Depois que a porta se fechou atrás da mulher, Connor deixou-se cair na poltrona e cobriu os olhos com o braço. Depois de uma tarde inteira debruçado sobre as contas das propriedades, suas costas e olhos doíam terrivelmente.

—Estou ficando velho! – exclamou em voz alta.

—Não está não!

 O murmúrio o fez virar a cabeça para a cama. Amie estava com os olhos semiabertos, mas sorria.

—A senhorita está bem, miss Templeton? Machucou-se na queda?

—Eu caí?

Connor riu baixinho e aproximou-se para trocar a compressa da testa alva.

—A senhorita desmaiou na cozinha. Não, não. Não se levante. Está com febre, precisa descansar.

—Não, eu... Eu tenho que cuidar de Ethnee. Não posso deixá-la sozinha mais tempo!

—Claro que pode! A senhorita está doente, como eu disse, deve descansar.

—Eu não... – Ela tentou levantar-se novamente, mas o quarto começou a girar e ela voltou a se recostar. – Oh! Está bem. Ficarei aqui mais alguns minutos.

—Nada disso. Ficará deitada pelo resto do dia.

—Não posso, milorde! O que a condessa irá pensar quando souber que em minha segunda semana sob seus serviços já caí doente, renegando minhas obrigações?

—A culpa não foi sua, nem isso é da conta de minha mãe. Agora siga meu dedo com os olhos, sem mexer a cabeça. – Ela continuou a olhá-lo. – Meu dedo, miss Templeton.

Corando, ela obedeceu.

—Ótimo, parece que está tudo bem com seu cérebro.

—A culpa é minha, sim, Vossa Graça. Saí para caminhar na chuva... na outra noite.

—Eu sei. Eu a vi no jardim.

 Ele parecia concentrado, medindo-lhe a pulsação, mas ela o viu mover os olhos rapidamente de seu relógio de bolso para seu rosto, que corou.

—Sinto-me tão envergonhada!

O conde colocou um dedo sob o queixo de Amie, e a fez encará-lo.

—Não precisa.

 Sem poder resistir à tentação, ele roçou os dedos nos lábios dela, mas afastou-se rápido quando a viu fechar os olhos. Limpou a garganta e levantou-se.

— Agora que voltou a si, vou chamar Megan para lhe fazer companhia.

Chegando à porta, Connor pensou ter ouvido um gemido e voltou-se.

—Está tudo bem miss Templeton?

—Claro, milorde! – Ela baixou o rosto novamente.

20 de Maio de 1888

Estou gripada! Era tudo de que eu precisava! Mal começo a trabalhar e já fico doente! A condessa deve estar zangada comigo! Embora o conde tenha dito que isso não diz respeito a ela, sinto-me muito mal por haver provocado isso. Tenho de tomar mais cuidado e resistir a impulsos futuros de caminhar na chuva.

Um hábito bárbaro, como dizia Nathanael.

Amie escondeu seu diário sob os travesseiros, antes de m****r a pessoa que estava à porta entrar.

—Boa noite, miss Templeton!

 O conde entrou no quarto carregando uma imensa bandeja de prata, que contava, entre outras coisas, com um gracioso vaso de flores.

—Boa noite, meu senhor!

—Trouxe-lhe o jantar.

—É muita bondade, milorde, mas não precisava ter se incomodado. Megan poderia tê-lo trazido.

—Mas não seria a mesma coisa, não é? Além do que, como seu médico, tenho que ter certeza de que está comendo direito. – Ele se aproximou e acomodou a bandeja sobre os joelhos de Amie.

—Meu médico, sir?

—Não acredito que ninguém tenha lhe contado que sou médico!

—De fato não. Milorde me surpreende cada vez mais.

—Agora chega de tagarelice. – Connor destampou a travessa, revelando um prato de sopa fumegante. – Signore Paolo fez uma sopa para a senhorita, e garantiu ser ótima para sua enfermidade.

Oh, Dieu!

—Sabia que ficaria feliz! Agora coma. Uma das criadas disse-me que não comeu nada o dia todo...

—Milorde... pode, por favor, afastar a bandeja?

Mal o conde erguera a peça de prata, Amie saiu correndo da cama, em direção à cômoda, onde havia um jarro com água fresca.

—Amie, o que aconteceu? Você está bem?

Ela teria ouvido direito? Ele a chamara de Amie? Ou teria sido uma alucinação causada pelo terrível enjoo que a canja lhe provocara?

Depois de molhar o rosto diversas vezes com água fria, ela respirou fundo e estendeu a mão para a toalha de algodão ao lado do jarro. Não a encontrando, tateou pela cômoda até sentir a mão quente do conde segurar seu pulso e colocá-la em sua palma.

—Obrigada. Eu... estou bem, milorde. – Sentindo que o quarto girava, ela segurou-se na cômoda novamente. – Mas acho que não deveria ter levantado da cama tão depressa.

Foi então que Amie se deu conta de que estava apenas de camisola na presença do conde.

—Acho também que deveria voltar para ela. – disse, com um sorriso sem graça.

—Pode, por favor, me explicar o que aconteceu?

 Com uma das sobrancelhas arqueada, Connor cobriu-a e sentou-se na poltrona.

—Não conte ao signore Paolo, – a expressão dela era a de quem cometera o mais terrível crime – mas... eu odeio canja de galinha! Só o cheiro já me deixa enjoada...

Connor explodiu em gargalhadas, precisando secar os olhos com as costas das mãos antes de voltar a falar.

—Perdoe-me, Miss Templeton. Não se preocupe, nada direi ao cozinheiro.

—Eu lhe agradeço, milorde. Gosto muito dele e o velho italiano ficaria ofendido... Oh, Dieu! – gemeu.

—Enjoo outra vez?

—Não. – ela riu. – Acabo de descobrir que estou morrendo de fome!

—Isto não é problema.

Connor levantou-se e foi até onde o puxador de uma campainha pendia do teto. Em minutos, Megan apareceu.

—Leve isto de volta e cuide para que o cozinheiro não veja o prato, depois, monte outra bandeja com os pratos do jantar.

—Sim, senhor.

—Problema resolvido. – disse, voltando-se para Amie.

—Milorde é muito gentil.

—Ainda não tive a oportunidade de perguntar, miss Templeton, mas como se sente trabalhando aqui?

Amie surpreendeu-se com a pergunta. Normalmente os nobres não se preocupavam com esta questão.

—Muito bem, senhor. – Sem que conseguisse contê-lo, um espirro ribombou pelo quarto, obrigando Amie a buscar o lenço que deixava sob os travesseiros. – Perdoe-me milorde. – Assoou o nariz o mais delicadamente que pôde. – Ethnee é uma menina adorável, e a casa é extremamente confortável. Oh, e tenho de lhe agradecer por Megan. Ela me disse que foi contratada especialmente por minha causa.

—Gosta dela?

—Sim, é muito prestativa e educada.

—Fico satisfeito. – Ele olhava para ela e apertava os lábios, tentando não sorrir.

—Algo errado, milorde?

—Não, é que... – ele esticou o braço e pegou um pequeno espelho na mesa de cabeceira. – seu nariz está ficando vermelho.

Seguindo o exemplo do nariz, todo o rosto dela se ruborizou. Connor ergueu-lhe o queixo e prendeu o olhar de Amie ao seu. Abriu a boca para falar no mesmo instante em que Megan batia à porta. Passando a mão pelos cabelos escuros, ele foi até a porta, pegou a bandeja e dispensou a atônita criada.

—Aqui está. Espero que não lhe cause náuseas.

À medida que destampava as travessas, a boca de Amie encheu-se de água. Havia perdiz, pão fresco e uma posta de um peixe que ela não conseguiu identificar, mas que cheirava extremamente bem.

—Bom apetite. Vou deixá-la agora, miss Templeton. Mandarei Megan para lhe fazer companhia.

—Obrigada, milorde e boa noite.

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