Capítulo 7

Demorei a me refazer do estranho sonho. Havia acabado de descer para o café da manhã quando dei de cara com Irina. Seu vestido azul rodado, emoldurado por um cinto preto, a deixava mais bela do que no dia anterior. Sorri-lhe educadamente e de sua boca recebi apenas um leve esgar.

— Bom dia, doutor. Deseja seu café agora?

— Por favor.

Dirigi-me ao restaurante vazio, olhando curioso ao meu redor.

— É apenas o senhor — disse, dando de ombros.

— Mas ontem à tarde...

— Todos vêm à hora do chá. Mamãe é especialista em bolinhos amanteigados. Receita de uma senhora inglesa passada à minha avó.

— Estavam realmente saborosos. — Respondi, ávido por intitular uma conversa e descobrir mais sobre aquela garota.

Ela se calou enquanto me servia. Gostaria de manter uma conversa fluente com a pequena, mas ela se fizera muito esquiva.

— Vocês têm muitos hóspedes?

— No fim de semana quase sempre aparecem hóspedes a caminho do litoral.

— Entendo. E seu pai?

— Papai trabalha na estação. Só vem para cá quando está de folga.

— Então, ontem...

— Ele estava à sua espera. Foi incumbido de recebê-lo. A propósito, pediu-me para dar-lhe um recado.

— Pois pode passá-lo agora. — Sorri de forma galante, esperando ver-lhe o rosto iluminado, porém, ela me ignorou.

— O aviso aos ferroviários para se encontrarem com o senhor logo mais à noite, já foi pregado no Pau da Missa esta manhã. Agora é só esperar. — Falou com sua voz doce, como se eu tivesse entendido o que ela dizia.

— Pau da Missa? O que vem a ser isso? — Quis saber, curioso.

— É um velho eucalipto entre a parte alta e baixa da Vila, onde os recados são pregados. Antigamente eram apenas informações sobre missa de sétimo dia, nascimento e casamento; agora é usado pra qualquer coisa. Dessa forma todos que passam por ali ficam sabendo o que ocorre na vila, com rapidez. — Informou com um leve sorriso nos lábios.

— Interessante.

— Vou buscar seu café.

Ela voltou com pães, bolos e um bule fumegante que fez meu estômago roncar alto, chamando-lhe a atenção. Pude, então, contemplar seu sorriso faceiro. Acho que meu coração saltou pela primeira vez em... Acho que foi a primeira vez. Olhei em seus olhos e comecei a desejar ficar um pouco mais de tempo naquele lugar. Já estava formado, empregado, cansado de voltar para a humilde pensão em que morava sozinho, em São Paulo. Sentia falta de uma família, de ter conversas banais com alguém que pudesse falar sobre cinema, teatro, ópera. Tudo, menos advocacia. Meus pais moravam no interior, porém, como era de se esperar, acabei ficando em São Paulo, onde teria oportunidade de ter uma carreira promissora, como acabou acontecendo. Tinha grandes chances de vir a me tornar sócio da firma para qual trabalhava. Estava apostando tudo nisso. Uma companheira bela e doce, naquele instante, começou fazer parte do novo cenário erguido em minha mente.

Atrevi-me a esquecer de que a jovem em questão já tinha alguém em vista. Ou ele pensava que a tinha. Teria que descobrir suas intenções para com o rapaz mais cedo ou mais tarde; armar minha defesa caso ela refutasse o referido rapaz em meu favor. Seria ousado de minha parte, porém, precisava saber se poderia acalantar esperanças de torná-la minha esposa.

— Perdoe-me a indiscrição, senhorita Irina, mas irá também à reunião? Acompanhará seu namorado?

— Meu namorado, senhor?

— Sim. Marcus Wright. Ele é seu namorado, pois não?

— De forma alguma, senhor. Talvez ele pense que tem alguma chance comigo, mas nem por um só minuto penso nele dessa forma. — Seu rosto ficou afogueado e, de mim, recebeu um sorriso discreto enquanto levava a xícara à boca.

— Acho que o entendi mal, então. Peço desculpas.

— E por que acha que o entendeu mal, senhor? O que exatamente ele lhe disse? — Seus olhos claros queimavam de raiva, enquanto sua face ruborizava, deixando-a ainda mais bela.

— Esqueça, senhorita. Folgo em saber que não há nada entre os dois. — Sorri-lhe, ao que ela me pareceu espantada.

— Com licença, doutor — saiu apressada do salão, me deixando pensativo.

Tomei meu desjejum esperançoso. Se a bela criatura não queria o valentão, então talvez, eu tivesse alguma chance de roubar-lhe o coração. A não ser que já pertencesse a outro. Uma beleza daquelas devia suspirar por alguém. É claro. Talvez fosse por isso que saiu tão abruptamente do salão. Resolvi comprovar os fatos. Levantei-me satisfeito e fui ter com ela.

— Por acaso, senhorita, pode me dizer qual o horário para o colóquio dessa noite?

— Às sete horas, no Clube da Lyra. Sabe onde fica?

— Estive lá, ontem à tarde.

— O senhor esteve lá?

— Sim. Saí para uma caminhada de reconhecimento. É um belo lugar. — Sorri, me lembrando da sensação de ter visto a jovem dançando no palco.

— Os bailes costumam ser maravilhosos. — Suspirou sonhadora.

— Sabe, acho que cheguei a vislumbrar, pela janela, uma jovem dançando no palco do salão. Acredito que estivesse treinando alguns passos para a grande noite.

Mal disse essas palavras e vi a pequena empalidecer, a ponto de quase perder os sentidos. Corri até ela, atrás do balcão e segurei em seu cotovelo.

— Sente-se bem, senhorita?

— Não foi nada — recuou, soltando-se da minha mão — Já estou bem, obrigada.

— Acho que vou dar uma volta. — Disse-lhe com o cenho franzido, curioso com a reação da moça.

— Aonde vai, senhor?

— Não sei. Talvez vá para além dos trilhos. Vi uma construção bastante charmosa quando desci na estação. Ficava no alto do morro.

— O Castelinho.

— Castelinho?

— A casa do engenheiro chefe. Pertenceu à sua família. De lá, ele comandava todo o pátio férreo. Sabia tudo o que acontecia nessa Vila.

— Suponho que não seja mais dessa família. Estou certo?

— Sim. Ele já está morto e enterrado — respondeu, com certo rancor na voz.

— E a quem pertence agora? Há alguém morando lá?

— Não mais. Nós a conservamos, mas está vazia.

— Que estranho. É uma casa tão bonita!

— É. Realmente muito bonita — respondeu-me de friamente, querendo encerrar o assunto.

— Bem, vou indo, então. Volto para o almoço.

— Não se atrase, por favor. Procure voltar antes da neblina.

— Voltarei. — Respondi, ressabiado por ela ter mencionado a neblina novamente, como se fosse perigosa de alguma forma.

Saí pela porta e tomei o sentido da Estrada de Paranapiacaba. Dobrei à direita, adentrando a Vila Smith; e quando me vi, estava na Avenida Fox. Perambulei pelas casas, admirando a arquitetura inglesa e seus jardins.  No final da avenida dei de cara com um campo de futebol e ali fiquei assistindo ao jogo das crianças de calças curtas correndo atrás de uma bola surrada de couro marrom. Deliciei-me com suas manobras e vibrei quando saiu um gol. Ao término do jogo, onde as crianças marcavam outro encontro para a manhã seguinte, já que seguiam para o segundo período escolar, caminhei por uma avenida chamada Campos Salles, ao lado do campo de futebol. Andei lentamente até o final dela e me vi diante da entrada da Mata Atlântica, intocada, com sua beleza majestosa.

Parei à entrada e fui tomado por uma sensação indescritível. Era como se eu quase conseguisse me lembrar de algo. Apertei os olhos, deixando que as imagens viessem, mas elas se recusaram. Não queria admitir, mas aquele lugar mexia comigo. Tudo era tão pitoresco e tão diferente da Capital. Os sonhos estranhos, somados às sensações que me confundiam, talvez estivessem mexendo com meu intelecto. A quase lembrança de algo que parecia ter vivido naquele lugar deu-se por alguns segundos e depois passou. Respirei profundamente e bani o acontecido para o mais fundo de minha mente, retomando a caminhada. Segui a passos lentos, por uma rua longa – Rua São Damião – e, depois soube que me encontrava na parte velha da Vila, ainda ao lado da Mata. Havia poucas construções, mas o lugar era pitoresco.

Estava distraído quando puxei o relógio do bolso e vi que já era quase uma hora e trinta. Não sei explicar como o tempo se esvaiu tão rápido. Voltei pelo mesmo caminho e ao passar pela Mata, mais precisamente na trilha que a adentrava, vi a neblina se aproximando devagar. Branca, densa, serpenteando por entre as árvores, engolindo tudo à sua frente. A brisa começou a soprar gelada e um arrepio percorreu meu corpo, gelando-o até os ossos. Virei-me a ponto de correr pela rua, a caminho da segurança da pensão, quando vi algo se mexer por entre a bruma. Estanquei no lugar, com a boca seca e o coração latejando nas têmporas. Pensei ter ouvido uma voz entoando uma melodia. Agucei os ouvidos e esperei. A voz aumentava de um sussurro para algo mais claro. Pensei ter visto o contorno de um vestido longo e mãos de dedos longilíneos, acariciando o tronco das árvores, à frente da névoa, enquanto o vulto se aproximava de mim. Meus pés não queriam desgrudar do chão. Parecia que uma força me impedia de me mexer.

Um pio agudo cortou o céu e minhas pernas bambearam. Não sabia o que espera ver. Que espécie de mulher viveria naquele lugar, dentro da neblina? Meu coração então, tomado de horror, me remeteu ao sonho da noite anterior. Viria aquela mão, que acariciava as árvores enquanto cantava, brincar com meu rosto? Ouvi ao longe a voz de uma mãe ralhando com uma criança e aquilo me tirou do torpor em que me encontrava. Senti-me liberto. Corri. Corri como um jovem, que era na época, poderia correr e, durante todo o momento, era como se ela estivesse bem atrás de mim. Cantando para mim, esperando por mim.

Não sei exatamente como cheguei à pensão. Assim que adentrei, talvez estivesse branco feito papel, pude ver olhos curiosos pousados em mim.

— Está atrasado, doutor — repreendeu-me Irina — Sente-se. Vou trazer seu almoço.

Sentei-me envergonhado de meus trajes amarrotados e suados. Pedi um fogo paulista, única bebida capaz de acalmar meus nervos em frangalhos; e quando trouxe, bebi de um gole só. Ela me olhou como se soubesse pelo que eu havia acabado de passar.

— Onde esteve? — Perguntou-me baixinho, ao se inclinar para colocar o prato fumegante na mesa.

— Perto da Mata. — Respondi, procurando seus olhos, que me encaravam arregalados.

— Coma sua refeição, por favor. — Falou e me deixou à mesa tão rápido como veio.

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