Capítulo 4

                                        Vila de Paranapiacaba, 1946.

Foi o ano do grande incêndio na Estação da Luz, que quase a dizimou. Por sorte, os documentos dos empregados da Companhia estavam seguros em outro prédio, o que levou muitos a pensar que o incêndio fora criminoso, já que o fogo começara justamente nos escritórios da Estação. Na época eu estava com vinte e dois anos e recém-formado em advocacia pela Faculdade do Largo São Francisco. Fui enviado pela empresa em que trabalhava na época a uma Vila do Distrito de Santo André, para tratar de assuntos pertinentes aos empregados da São Paulo Railway Company. Essa empresa acabara de perder a concessão da exploração da ferrovia, assinada por Dom Pedro II, através da influência do Barão de Mauá, em 1860, quando as obras começaram. Com o fim da concessão, todo o sistema ferroviário passou à União.

Lembro-me da minha chegada àquela Vila como se fosse hoje. Havia almoçado com meu empregador e recebido instruções precisas sobre a transferência dos trabalhadores. Despedi-me dele com um aperto de mão e tomei o trem na Estação da Luz (alguns meses antes do incêndio). A tarde se fazia ensolarada e quente, mas o vento que entrava pela janela aberta do trem, à medida que descia a serra, tendia a esfriar. Naquele horário, poucas pessoas compunham o vagão.

Senti-me orgulhoso em meu terno novo, de linho riscado, e por ter sido escolhido para tão importante missão, sendo eu um jovem que acabara de deixar as cadeiras da faculdade. Admirava a descida, enquanto minha mente vagava pelos planos meticulosos de me estabelecer na hospedaria em que havia feito uma reserva para aquela semana. Seria bom passar uns dias em contato com a natureza. Enquanto o trem passava pela Grota Funda – ponte de ferro altíssima, construída sobre pilastras cravadas nas rochas – de onde se via o precipício de árvores, senti um arrepio percorrer meu corpo.

Olhei pela janela e uma sensação de vertigem me assomou, me obrigando a grudar as costas no assento de couro e esperar a passagem terminar. O precipício era bonito, não vou negar, porém, também havia algo de sinistro ali. Tive medo, por um segundo, de que o ferro se desintegrasse, levando o trem para dentro daquele abismo. Assim que passamos pela Grota Funda, essa sensação me abandonou e voltei a olhar pela janela com segurança.

O percurso não era tão longo assim. Percorri os 48 km em uma hora e meia, chegando à estação da Vila um pouco mais de duas e trinta da tarde, segundo marcava a Torre do Relógio. Esse relógio é uma réplica do Big Ben, trazido da Inglaterra, numa tentativa de minimizar a saudade dos engenheiros chefes da Companhia, vindos de Londres. O sol iluminava a Vila, dando-lhe um ar pitoresco e agradável. Da estação, olhei para o alto da serra e vi uma construção imponente, que mais tarde descobri chamar-se Castelinho; e abaixo dela, várias casas. Andei seguindo os trilhos, com a mala de couro a me esfolar a palma da mão, em direção à parte baixa da Vila, chamada de Vila Martin Smith (moradia dos Ingleses).

 Enquanto caminhava, o vento começou a soprar gelado às minhas costas e a luz do dia começou a se extinguir. Olhei para trás, curioso, e vi a Estação que acabara de deixar ser engolida por uma densa neblina que avançava em minha direção. Apertei o passo e ergui a gola do terno. Fiquei intrigado com a velocidade com que a neblina alcançava todo o terreno. Quando cheguei à pensão aonde iria me hospedar, a neblina já havia tomado toda a Vila.

Entrei um tanto afoito pelas portas de madeira, soltando a mala com um baque surdo no piso. Virei-me para trás a contemplar a rua, que acabara de desaparecer.

— Boa tarde — uma voz doce falou às minhas costas, fazendo-me virar abruptamente.

Quando olhei nos olhos da voz, meu coração se acalmou. Pertencia a uma mocinha de lindos olhos azuis e de cabelos tão loiros quantos os de uma espiga de milho. Foi como se meus olhos tivessem visto a beleza de uma mulher pela primeira vez, e ela, recatada, abaixou os seus, enrubescendo a face límpida.

— Boa tarde, senhorita. Creio ter uma reserva em nome de Olavo Borges. — Dirigi-me a ela, com meu melhor sorriso.

— Estávamos a sua espera. Mamãe já preparou seu quarto. Essa é sua chave – estendeu-me a mão branca; e quando a toquei, propositadamente com meus dedos, vi a menina corando novamente e senti como se meu estômago tivesse sido socado.

— Obrigado. Pode me levar até lá? — Perguntei, querendo ficar um pouco mais na presença da moça.

— Acompanhe-me, por favor.

A menina era tímida e refinada. Não era bem o perfil de moça que esperava encontrar num lugar como aquele. Embora soubesse que a Vila fora fundada por ingleses, sabia também que ali viviam portugueses, italianos e brasileiros. Por isso, não sei exatamente porque, esperava encontrar somente mulheres morenas, de olhos escuros. Bobagem minha, eu sei. Talvez fosse o perfil de moças que me apraziam na época. Sei também que aquela criança, se é que poderia considerá-la assim, já que parecia ter apenas alguns anos a menos do que eu, não me deixara desprender os olhos dos dela. Naquele momento jamais poderia conceber que essa criança, meu grande amor, salvaria minha vida. Não fosse por ela, não teria tido a vida que tive e nem os filhos que tanto amo.

Durante o caminho para o quarto, perguntei-lhe sobre a estranha neblina:

— Ela sempre aparece por essas horas. Todo o santo dia.

— Ela? — Perguntei curioso.

— Sim. — Achei estranho o modo como se referiu à neblina. Parecia estar, na verdade, falando de um ser humano e não de um fenômeno climático.

Parou em frente a uma porta, no final do corredor do andar de cima da pensão, e me colocou para dentro.

— O jantar é às sete horas e a pensão fecha às dez. Depois desse horário, não se entra ou sai mais, a não ser quando há baile no Clube União da Lyra. Normas da casa. — Informou com um sorriso triste.

— Compreendo. Haverá algum baile por esses dias? — Perguntei, pensando na possibilidade de convidar a beldade para uma dança.

— Pode ser que haja. — Respondeu com um sorriso doce, porém, seus olhos brilharam vivamente.

Ela fechou a porta e me deixou em pé naquele quarto, cheio de expectativas. Qual a sensação de ter aquela mocinha em meus braços, rodopiando pelo salão ao som de uma valsa vienense? Especulei meus sentimentos, empolgado. Toda aquela aura de mistério e recato da jovem fazia-me querer conhecê-la melhor. Talvez pudesse estender minha estada em tão encantadora cidadezinha.

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