Capítulo 3

Araraquara, 27 de setembro de 2015.

Estranhamente, minha cunhada me ligou na sexta-feira, pedindo-me para encontrá-la na casa de papai, na manhã seguinte, onde um corretor nos esperaria para avaliá-la. Havia conversado por alto com meu irmão, depois que havia sonhado com meu papai, para falarmos sobre sua casa. Ainda não estava certo se a venderíamos, mas, dependendo do valor e da proposta, talvez fosse a coisa certa a fazer.

— Val? É Meire. Já está na casa?  — Gritou ao celular, assim que acabara de estacionar o carro, naquela manhã ensolarada.

— Estou. Onde você está?

— Não vou poder ir. Vou ter que levar o Ian ao pediatra. Teve febre à noite toda.

— Ah, pobrezinho! Tem médico hoje?

— O pediatra dele é particular. Atende a qualquer hora.

— O que será que ele tem?

— Deve ser garganta. Com esse tempo! O corretor já chegou?

— Ainda não.

— Bem, preciso ir. Me liga à noite e me conta o que ele falou, ok?

— Ok. Se precisar de algo...

— Tenho que ir. Teu irmão já está no carro, buzinando. Aproveita e dê uma boa olhada na casa.

— Vou olhar.

— Beijos.

Assim que ela desligou o celular, passei a encarar a entrada da casa com pesar. Tantas vezes entrei por aquele mesmo portão sabendo que estariam me esperando acordados, apenas para perguntar como tinha sido meu dia. A saudade ainda doía. Desejava vê-los abrir a porta com um sorriso no rosto. Esperava pelo corretor, perdida nas lembranças, entretanto parecia que ele também resolvera me dar o cano, porém não liguei muito, já que desejava voltar para casa o mais rápido possível, e prorrogar mais um pouquinho a difícil decisão.

Meu marido havia deixado o Lucas ir para Ilha Comprida com os amigos e eu, pra variar, tinha que arrumar suas malas. Com vinte anos e ainda tinha que arrumar suas coisas como se ele tivesse dez. Mas acho que é assim que os pais criam os filhos hoje em dia. Dependentes. Talvez por causa da violência que impera nas ruas.

Despedi-me do meu filho logo após o almoço. Eles saíram tão felizes em busca de aventuras que meu coração se encheu de alegria por toda aquela juventude inconsequente. Com os preparativos para sua viagem, acabei esquecendo-me de ligar para meu irmão e dizer que havia levado o cano do corretor. No domingo cedinho ele me ligou dizendo que não havia dormido a noite toda por causa do filho e me fez prometer que iria à casa de papai assim que desligasse o telefone.

Como meu marido tinha um jogo de futebol depois do almoço, com os amigos, resolvi acabar com a relutância em resolver o problema, que meu irmão gentilmente havia delegado a mim. Deixei meu marido no clube e segui para minha antiga casa. Assim que entrei, aquela sensação de tristeza me invadiu. A porta da frente se fechando atrás de mim encerrava mais uma fase da minha vida. Corri os olhos pela sala tão conhecida e senti lágrimas quentes rolando pela face.

Olhei para o escritório de papai e vi sua cadeira me convidando a sentar. Fui até lá. Abri a janela, deixando o ar fresco da tarde invadi-la. Sentei-me e deixei os olhos passearem pelo lugar. Sua presença ali ainda era forte. Sem querer, encarei a estante à minha esquerda e vi o livro com o qual havia sonhado. Levantei num pulo e fui até ele. Retirei-o devagar da estante, com o coração martelando no peito. Seria o sonho tão real assim, a ponto de, depois de tantos anos, dar de cara com o esconderijo de papai?

Minhas mãos tremiam. Antes de abri-lo, passei a mão por sua capa dura, sentindo a textura firme do couro por cima da madeira. Então abri. E, para minha surpresa, ela estava lá, tão dourada quanto me lembrava. Tirei-a do nicho, fechei o livro, abraçando-o ao peito, tentando acalmar o baque surdo das batidas do meu coração.

Sentei na velha poltrona de couro com a boca seca. Coloquei a chave na fenda da gaveta e girei devagar. Naquele momento, soube que não estava sozinha naquele escritório. Puxei a última gaveta, deslizando-a suavemente. Objetos pessoais de papai olhavam acusatórios para mim. Pareciam me perguntar onde estava seu dono e por que não estavam mais sendo usados? Toquei-os com a ponta dos dedos e senti a fina dor atingir meu coração. Fechei aquela gaveta e puxei a primeira. Sabia o que iria encontrar antes mesmo de tê-la aberto. Lá estavam elas, simetricamente grampeadas, umas sobre as outras.

Meu nome pulsava em vermelho, no envelope lacrado em cima do monte. Ele escrevera tudo aquilo para mim? Seriam instruções? Desprendi as folhas, curiosa, e sua letra inclinada me tocou profundamente. Havia várias delas. O que seria tudo aquilo? E por que justamente para mim? Abri o envelope que continha meu nome e um misto de ansiedade e perplexidade me invadiram:

                                              Minha querida Valquíria,

Creio que já deva ter partido dessa vida, porém, depois de muito pensar, cheguei à conclusão que você deve tomar conhecimento do que sei e do que nunca contei a ninguém. Deve estar se perguntando por que você, não é mesmo? Sim, querida. Eu te conheço. Por mais que possa pensar que não prestava atenção em vocês, sinto decepcioná-la. Eu prestava sim, e muito. Por isso sei do seu ceticismo e da sua descrença. No momento, a crença é tudo o que me consola e espero que possa consolar você também, quando ela vier procurá-lo.

Não escrevi errado, pois sei que ela virá atrás dele, e por isso, você deve estar preparada. O segundo filho, do segundo filho. Assim como eu fui, seu filho o é. Sinto o horror me invadir quando me lembro daqueles dias. Durante anos vivi como se não tivessem existido, mas agora que estou velho e morrendo, revivo cada dia como se fosse ontem. Às vezes, desejo que tudo isso acabe logo e que sua mãe, que Deus a tenha em um bom lugar, possa vir me buscar e me proteger, como já fez um dia. Minha amada! Que saudade!

Não estou senil, minha querida Valquíria, por mais que vá pensar que sim quando terminar de ler essas palavras. Estou escrevendo-as por amor a você e a seu filho. Peço a Deus para que ela não volte. Caso contrário, que Deus nos ajude...

Reli várias vezes a carta de papai, enquanto andava irrequieta pelo cômodo, sem entender exatamente suas últimas palavras. Sentei-me novamente em sua cadeira e mergulhei nas várias páginas manuscritas que ele havia deixado. Quando saí de sua cadeira, havia deixado o mundo seguro que conhecia e mergulhado no mais profundo terror e desespero que um ser humano pode sentir, ou viver.

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