A Noiva da Neblina
A Noiva da Neblina
Por: Amanda Kraft
Capítulo 1

Araraquara, 20 de setembro de 2015.

Estava extremamente atarefada, como sempre acontece quando se tem que cuidar da casa, do marido, dos filhos e da carreira. Naquela manhã de segunda-feira, em particular, me encontrava ansiosa e meio desligada. Havia sonhado com meu pai. Depois que falecera, só havia sonhado com ele umas duas vezes no máximo. E foi pra lá de estranho. Tão real! Depois que me levantei, passei a ficar irrequieta, mesmo estando concentrada nos afazeres. Sentia um aperto no peito cada vez que me lembrava do sonho e do que ele me pedira para fazer. A saudade se misturava à apreensão. Em algum momento teria que voltar à sua casa, e com certeza iria imediatamente ao seu lugar preferido — a escrivaninha de mogno do seu escritório — já que a cena toda se passava lá, com ele sentado na sua poltrona preferida de couro marrom.

Rodeada de livros, colocados perfeitamente nas estantes, por ordem alfabética e por tamanho, ficava sua mesa de trabalho, adornada de relevos entalhados com perfeição por toda a lateral dos pés e do tampo. Nas quatro gavetas ele guardava alguns dos processos que havia ganhado e dos quais tinha mais orgulho. Como devem imaginar, meu irmão mais velho e eu éramos proibidos de mexer em suas coisas, porém, para mim aquele lugar era uma espécie de santuário, um lugar mágico. Minha mãe sempre me deixava estudar e desenhar sobre aquele tampo, enquanto ele estava no Fórum ou em seu escritório na cidade; desde que eu não mexesse em suas coisas. Mesmo que quisesse chafurdar suas gavetas, ele as mantinha trancadas à chave. Sempre fora um mistério para mim o lugar onde a escondia. Às vezes, passava a manhã toda sem desenhar, apenas olhando para aquele mar de livros de capas duras e escuras, pensando em qual deles a chave dourada, que me levaria para outro lugar, estaria escondida.

Relembrando minha infância naquela casa, sinto a saudade me invadir causando uma dor pungente. Minha mãe se fora há muito tempo. Ninguém conseguiu tirá-lo de lá. Sei que a falta dela o oprimia, porém, aguentava as coisas, calado. Talvez fosse seu lado jurista que o fizesse encarar as dificuldades com naturalidade. Sempre que perguntava à minha mãe porque o pai era tão taciturno, mamãe respondia que ele tinha seus fantasmas e que era para deixá-lo em seu canto, com seus livros. É claro que nunca entendi o que ela queria dizer com isso. Hoje penso que era o meio que encontrava de nos manter afastados; quando ele se mostrava sombrio, como se algo o incomodasse e a solução para isso fosse o silêncio, e também o copo de uísque, que acho que nem tocava. Creio que o efeito da luz difusa incidindo no líquido âmbar o acalmava ou talvez o usasse feito um talismã para afastar as sombras que lhe corroíam a alma.

Jamais fora um pai ausente. Sempre esteve conosco nos momentos em que precisávamos de sua presença. Festas de aniversário, festas de escola, passeios nos finais de semanas e tantos outros eventos. Não era um homem infeliz, acredito, porém não era desses homens que riem à toa. Acho que nunca o vi soltando uma gargalhada prazerosa.

Agora, depois de tantos anos, vejo que essa taciturnidade sempre foi uma característica sua, embora mamãe, uma vez, tenha comentado que nem sempre fora assim. Como toda adolescente que se preza, nunca cheguei a perguntar o que o teria transformado. Algumas passagens de minha infância levam-me a ter um vislumbre do que poderia ter acontecido. Quando tínhamos medo de dormir sozinhos no escuro, ao contrário de mamãe que sempre ralhava com a gente, ele se levantava da cama e ficava conosco até que voltássemos a dormir sossegados. Não precisava dizer palavras, apenas sua presença bastava.

Nunca nos incomodou por causa de nossos medos infantis. Ele tinha os dele. Às vezes eu sonhava com uma figura feminina que me amedrontava. Era extremamente bela, porém estranha, que de uma forma ou de outra, me fazia acordar aos gritos. Nunca conseguia me lembrar, porque me fazia gritar. Quando eu lhe contava sobre a mulher, ele apenas me olhava ansioso, depois soltava seu sorriso tímido e me pedia para esquecer. Era apenas um sonho. Não deveria ligar para isso. Ela jamais poderia me machucar, pois só existia em minha mente. Segurando sua mão sedosa, acabava por dormir novamente.

Engraçado lembrar-me dessas coisas depois de tanto tempo. Quando adolescente esses sonhos cessaram. Cresci e nunca tive interesse em histórias sobrenaturais e outras coisas do gênero. Sempre fui cética e avessa às doutrinas. Cheguei, quando já estava na faculdade, a rechaçar a crença no sobrenatural e na religião, ao que ele rebatia dizendo que não era para eu falar sobre algo que não entendia. Coisas estranhas aconteciam o tempo todo, mas nunca me disse que coisas estranhas eram essas. Estou relembrando esses fatos por que, creio, tem a ver com o sonho:

Ele está sentado em sua cadeira de couro. A luz do abajur, acesa, clareia a folha pautada no centro da escrivaninha. A penumbra no escritório deixa o ambiente um tanto quanto sinistro. Sua mão desliza sobre a folha, àquela altura já meio preenchida, de forma intensa, como se estivesse exorcizando todos os seus fantasmas, prendendo-os em cada pauta. Às vezes apenas segura a caneta e se reclina no assento da cadeira, fechando os olhos. Em seu rosto transparece o cansaço nas rugas e nas olheiras sob os olhos vívidos. Volta a escrever freneticamente por mais alguns instantes. Nos momentos de pausa, posso ver perfeitamente a angústia em sua face. O copo de uísque continua intocado.

Seus cotovelos se apoiam no tampo da escrivaninha, enquanto as mãos escondem o rosto. Parece mais velho do que era. Talvez a dor o estivesse amedrontando, ou a certeza de que a morte o abraçaria dentro em breve. Volta a escrever, de forma aflita, enquanto sua grafia treme à medida que o fim se aproxima. Várias folhas preenchidas, com sua letra inclinada para a direita, encontram-se amontoadas ao lado do notebook desligado. Um peso de papel em forma de tartaruga prende as folhas, mantendo-as fora da ameaça do vento gelado que entra pela janela aberta, enquanto a noite cai.

De repente tudo está terminado. Ele se debruça sobre a mesa, cansado, ou aliviado. Então, volta a se reclinar sobre o assento da cadeira, a contemplar as estantes amigas. Instantes depois, recupera todas as folhas do peso que as prendia, grampeando-as no canto superior esquerdo. Num envelope branco escreve meu nome, grifando-o duas vezes, colocando-o no início do monte, e depois, deposita na primeira gaveta, lacrando-a com a chave. Ele a gira em sua mão, olhando para o nada. Levanta e se encaminha à estante, à esquerda da escrivaninha. Na quarta fileira, de baixo para cima, retira um exemplar grosso de capa dura. Dentro do livro de madeira havia um nicho perfeitamente esculpido entre suas folhas falsas. Ali depositou a chave dourada, lacrando e devolvendo-o ao seu santuário.

De repente, estou em meu quarto, ao lado do meu marido que dormia profundamente. Sobressaltada, abro os olhos e o vejo parado aos pés da cama.

— Papai! Você está bem? — Perguntei, atirando o edredom para o lado e me levantando.

— Não se levante...

— Papai, que saudade. Como o senhor está? — Encontrava-me aflita, enquanto olhava para seu rosto amedrontado, querendo abraçá-lo, mesmo sabendo-o morto.

— Não o deixe ir para lá. — Disse, olhando por sobre o ombro.

— O quê? Não deixe quem ir aonde?

— É perigoso. Não o deixe ir.

— Ir aonde, papai? Espere. — Pedia, enquanto ele se afastava da cama e desvanecia na minha frente, não sem que antes eu veja a mão fina da mesma mulher que me incomodava os sonhos quando criança, segurando-o pelo ombro.

Acordei com um grito preso na garganta, sentindo os olhos úmidos. Meu pai me pedia para fazer algo de que não tinha ideia. Aquilo era tão contrário às suas atitudes. Jamais proibira a mim ou a meu irmão de ir a qualquer lugar que quiséssemos. Apenas nos alertava do perigo que poderíamos correr, caso optássemos em não considerar que atos impensados poderiam nos meter em alguma enrascada.  Considerava que a melhor maneira de se aprender uma lição era nos tornar responsáveis por nossas atitudes. Nunca o vi, em vida, com tanto medo. O que tudo aquilo significava? O que tanto ele escrevia? Quem era aquela mulher e porque o perseguia com tanta resolução? Voltei a dormir muito tempo depois do meu coração ter serenado. O relógio sobre a televisão ainda marcava 03:15hs. Uma coisa era certa. Teria que deixar minhas incertezas de lado, entrar naquela casa e descobrir o significado de suas últimas palavras.

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