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ANA MARIA

Pedro nos convidou para almoçar, mesmo ressabido, Miguel concordou.

Percebi que ele não ficou muito à vontade depois de saber da existência de uma noiva. Eu também estou desconfortável e, mesmo sabendo que não fizemos nada de errado, meu lado consciente me acusa. 

Pedro ligou para os pais de Miguel e pediram para que eles viessem com urgência, enquanto isso, Cida paparicava Malú, a elogiando por sua boa alimentação. E ela se gabava.

A essa altura já havia conquistado a todos, inclusive, foi a única a arrancar um sorriso de Miguel, que sempre que Pedro iniciava um assunto, voltava a ser aquele homem sério. 

Permaneci calada e só respondia aquilo que me era perguntado.

Neste momento, eu queria a minha casa, a minha segurança de que tudo ia ficar bem, e aqui, sabendo de todas essas coisas, eu não me sentia dessa maneira. 

Estava brincando com um pedaço de bife e com os pensamentos longe, quando senti a mão de Miguel buscando a minha. 

— Vai ficar tudo bem. Nós já vamos embora. — Ele sussurrou para mim. 

Em resposta, dei um sorriso amarelo. 

Não contente, ele puxou a minha nuca e me deu um selinho na frente de todos e percebi o silêncio à nossa frente.

Quando os olhei, Cida, que ajudava Malú em sua comida, nos observava acompanhada de Pedro. 

Um silêncio esmagador tomou conta de todos, que não tinham assunto ou não sabiam o que falar, até que a campainha tocou, nos salvando desse constrangimento.

— Só um momento, querida, que eu vou abrir a porta. 

Assim que ela saiu, senti o olhar de Pedro sobre nós.

— Acho que são seus pais, eles são conhecidos do porteiro e normalmente não são anunciados.

Miguel apenas assentiu com a cabeça. Os dois se levantaram e eu fui ajudar Malú a terminar sua refeição, que estava deliciosa. Se não fosse o momento, eu também comeria a minha até acabar, porém, meu estômago estava fechado. O nervosismo consumia cada célula do meu corpo, principalmente quando os vi desaparecerem da sala onde estávamos almoçando. 

— A Cida cozinha gostoso, mamãe.

— Sim, meu amor, é bom comer tudo para ficar fortinha. 

Ouvi vozes na sala. E logo em seguida, o que parecia ser choro. 

Um homem de voz grossa começou a chamar por Miguel e a voz feminina embargada pelo choro repetia: “meu filho”.

Talvez seja aqui que meu papel na vida do Miguel acabe. O ajudei de todo meu coração, sem esperar nada em troca, mas eu não sou sua dona, não posso ficar com ele, ainda mais em sua condição. Aqui é seu lugar, perto de pessoas que sabem do seu passado, da sua vida, do que ele foi um dia. Ao constatar a realidade, um nó se formou em minha garganta e uma lágrima escorreu. 

— Mamãe, acabei, vou ficar com o tio. 

Sem esperar a minha resposta, ela saiu correndo e foi para a sala. 

Fui atrás, tentando impedir, porém foi impossível. 

Ela já estava agarrada na perna de Miguel, que era abraçado por uma senhora muito bem conservada, diria que nos seus 55 anos. A julgar por seus cabelos loiros bem alisados, vestida em uma saia midi e uma blusa com estampa floral azulada, da forma que reluzia, parecia seda. E o homem em camisa social e calça jeans escura, com barba grisalha e o cabelo, que um dia foi escuro, com muitos fios grisalhos. 

Todos com olhos vermelhos e lágrimas.

— Pedro, não sabia que permitia seus empregados trazerem crianças para o trabalho, e é de tão mal gosto atrapalhar um momento em família assim. Peça que se retirem. 

— Desculpa, senhora. Vem, Malú, vamos embora. — Fui até minha filha e a peguei. 

Não deu tempo de virar, eu senti mãos em minha cintura.

— Peço que a senhora mantenha o respeito, ela não é empregada, é minha namorada. E onde ela não for bem-vinda, eu também não serei.

— Filho, essa aí não pode ser sua namorada, você é noivo de Gabriela. Não se lembra? 

— Agnes, Miguel não se recorda de nada e foi Ana Maria que o ajudou nesse tempo em que ele esteve perdido — disse Pedro.

— E por que não procurou uma delegacia. A foto do meu filho estava por todos os lugares. Você ao menos sabe quem ele é? — Ela me olhou de forma arrogante. 

Percebi que ela não ficou confortável com esta situação. 

— Querida, se acalme, precisamos entender tudo o que aconteceu. 

— Não há nada que entender. Não sei quem vocês perderam, mas eu não sou essa pessoa. Ana e Malú são minha família agora e isso basta para mim.

— Miguel, você tem uma vida, batalhou durante muito tempo para ser o que você é, meu filho. Sofremos tanto, quando você desapareceu, como pode dizer que não somos mais sua família? — questionou sua mãe.

— Filho, por favor — suplicava o pai. — Nos dê uma oportunidade de entender o que te aconteceu. A mídia noticiou seu desaparecimento por meses, houve uma forte investigação por parte de sua equipe, inclusive amigos de outros setores e não obtivemos nenhum resultado.

— Você estava perdido, tio? Mas você estava lá em casa. Ele não estava perdido não, não é mamãe?

 — Malú, que tal ir comer um bolo de chocolate com cobertura de chocolate que tem lá na cozinha? — Cida tentou ajudar.

Um convite tentador para uma princesa que ama chocolate, mas mesmo assim, ela me olhou, esperando meu consentimento, ela pulou de alegria quando eu disse que sim e seguiu com Cida para a cozinha. 

— Senhora, eu o encontrei na rua...

— Prefiro que meu filho fale comigo.

— A Ana está falando, ela me ajudou. Ela sabe de tudo. 

— Se essa negrinha sabe de tudo, por que não te falou que você é um Delegado Federal e que sua família ofereceu uma boa recompensa por uma pista do seu paradeiro? Talvez porque queria se aproveitar da sua frágil condição e obter muito mais, foi isso, não foi? Assume! 

Que mulher má. 

— Agnes, pelo amor de Deus. 

Por ouvir suas palavras, eu fiquei sem reação, e se eu tinha alguma coisa para lhes contar sobre Miguel, desde que o encontrei, a vontade acabou ali. 

Peguei minha bolsa e fui até a cozinha, não olhei para trás. 

Nunca fui tão humilhada em minha vida.

Minha cor nunca foi motivo de vergonha, meu caráter nunca foi motivo de vergonha, e quem me conhece sabe bem a pessoa que eu sou.

Agora vem essa senhora e coloca à prova os dois, como se eu fosse um nada. 

Tentando controlar ao máximo a mágoa que se formava dentro de mim, cheguei à cozinha e chamei Malú para irmos embora, não demorou muito, apareceu Miguel, seguido de Pedro e Antônio. 

— Miguel, por favor, irmão. Nós sentimos sua falta.

— Eu não vou tolerar essa falta de respeito com a pessoa que foi a única a me estender as mãos, quando eu mais precisei. Eu passei fome, eu passei frio, quando eu procurei os hospitais, eles me escorraçaram como se eu fosse um nada, quando fui à delegacia, como a senhora lá falou, eles não deram a mínima para mim, inclusive... foi a Ana que insistiu para eu voltar a fazer um novo boletim. Foi a Ana, a única a me ajudar, foi ela que, mesmo tendo pouco dentro da sua casa, dividiu teto e comida comigo. E vocês acham que eu sou obrigado a ouvir a soberba daquela senhora em ofendê-la? Racismo é crime e se minha mulher quiser denunciá-la, eu serei testemunha para que ela aprenda a respeitar o próximo. 

— Filho, por favor...

— Estou voltando para casa com minha família, não esperem que eu mantenha contato com vocês. 

Ele simplesmente pegou Malú no colo e segurou em minha mão, me puxando para a porta de saída da cozinha. Achamos o elevador de serviço, o que não foi difícil. Ele me puxou para um abraço e beijou a minha testa. Malú parece que sentiu, pois, agarrada em seu pescoço, me deu um beijo no mesmo lugar. 

— Irmão... quer dizer, Miguel. — Ele chamou e nos viramos. — Deixa eu pelo menos dar uma carona a vocês. 

— Não é necessário, sabemos o caminho de volta. Não vamos mais incomodar.

— Você nunca foi um incômodo para mim, Miguel. Foi sempre nós dois, nunca deixou de ser, nem quando você desapareceu. 

Miguel me olhou.

— Você está confortável em ir com ele?

Olhei para o Pedro e vi seus olhos implorarem para aceitarmos a carona. Ele amava realmente seu amigo, e não seria eu a impedir. Acenei com a cabeça e ele voltou por alguns instantes para dentro do apartamento e logo em seguida, apareceu novamente, agora mais aliviado. 

Descemos até a garagem em silêncio. E assim permanecemos até certo ponto da viagem. 

De Moema para a Lapa era uma boa distância. Malú, de tão encantada com as paisagens, dormiu. 

— Se serve de consolo, não é a primeira vez que vocês discutem. Tia Agnes é impossível, com o tempo você percebeu que essa batalha não valia a pena e se afastou. 

Miguel fez um som com a boca e passou os dedos na testa, como se quisesse aliviar uma pressão sob sua cabeça. Há algum tempo ele começou a se queixar de dores de cabeça, o que tem me preocupado. 

Eu acompanhava em silêncio, na parte de trás, onde Malú dormia no banco, com a cabeça no meu colo. 

— Nós nos formamos em direito por falta de escolha mesmo, aí ela começou a pegar no seu pé e você saiu de casa. — Mesmo mantendo a atenção no trânsito, ele dava relances com o olhar para Miguel. — Seu apartamento ainda está fechado, é naquela mesma rua que o meu, tia Agnes ficou com a chave, mas se você quiser, eu posso pedir para que você possa visitar.

— Não sei se quero.

— Tudo no seu tempo, irmão. 

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Depois de Miguel passar o endereço para o Pedro, o que me deixou orgulhosa, pois ele lembrou sem precisar me perguntar, chegamos rápido em casa. 

Pedro observava tudo com curiosidade. 

A minha casa era humilde demais, perto do apartamento dele. Não havia nem comparação. 

As paredes de fora precisavam urgentemente de uma atenção, já que a tinta azul bebê estava descascando. E havia alguns pontos de infiltração. As condições no momento não são boas, mas creio que um dia eu vou deixar minha casinha bem arrumada.

Miguel pegou Malú no colo, enquanto eu abria o portão.

— Então era aqui que você estava esse tempo todo?

— Não todo esse tempo que você falou, que eu estive desaparecido, mas nos melhores últimos meses da minha vida.

— Se quiser entrar... Pedro, para vocês conversarem mais à vontade, será bem-vindo. — Ele assentiu e seguimos para dentro.

Levei as bolsas para a área de lavar roupa, para retirar o que precisava ser limpo, enquanto Miguel acordava Malú para tomar banho.

Fazíamos isso mecanicamente, porque já estávamos acostumados nessa rotina. 

Pedro estava parado na pequena sala, observando Miguel lidar com Malú. 

— Você sempre gostou de crianças. Repetia sempre que, depois de conseguir o cargo na Polícia Federal, você queria formar uma família, nem sei como parou com a Gabriela, que nunca quis ter filhos.

Miguel o encarou. 

— Eu estive muito tempo com essa mulher? — perguntou Miguel.

— Ela te cercou de todas as maneiras, até que conseguiu. Bom, você...

Ele me olhou com receio de terminar o que ia falar.

— Eu vou ajudar a Malú no banho e deixarei vocês a sós. 

— Ana, você pode ouvir nossa conversa. 

— Ana? 

Olhei para ele meio decepcionada, porque ele não me chamava mais pelo nome, era apenas: “meu mel”. 

— Meu mel, desculpa. Fica, eu quero saber até onde eu fui envolvido com essa mulher, mas é só para ter certeza de que colocarei um ponto final. 

— Acho que não será preciso, Miguel. Pelo que eu sei, Gabriela está de caso com um deputado. É recente, ainda não foi anunciado, mas eu os flagrei num restaurante, quando fui jantar com um cliente. 

— Então por que não param de falar dela?

— Vocês estão, quer dizer, estavam juntos desde a adolescência. Você nunca a amou, me confidenciava isso, sempre tinham lances, mas só se assumiram mesmo, depois que você se formou, porque sua mãe pediu para que tomasse um rumo na vida. 

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