MEMÓRIAS DE UM VELHO DIÁRIO
MEMÓRIAS DE UM VELHO DIÁRIO
Por: CARMEM AP. GOMES
O VELHO DIÁRIO

O meu pai tem loucura com fazendas antigas, sempre que encontra uma que esteja para vender, ele a compra, às vezes até com pertences antigos dentro delas. Sempre fala que pode ser encontrado no meio das ‘velharias’ algo com valor ou serventia.

Em pleno ano de 1924 o meu pai acabou de fechar a compra de uma fazenda velha que teve o seu ‘vigor’ e alta produtividade por volta de 1822/1840.

Então, eu me chamo Catarina Diniz Sá filha de Diniz Sá Mendes. E foi mexendo num baú empoeirado guardado no porão da velha casa, numa fazenda que meu pai comprou que eu encontrei a mais bela e triste história de amor narrada num velho diário datado de 1822. A sua narrativa em letras quase apagadas, escritas com os instrumentos, pena e tinteiro começam a história por volta de 1805.

Diário: Eu Ana Clara Ferrão Gregório Baptista nasci em 1805 na Fazenda Engenho Escondido, cidade de São Joaquim de Iboré-Minas Gerais-Brasil, filha de coronel Antero Ferrão Gregório Baptista e de minha mãezinha que faleceu no dia em que eu nasci Ana Maria Luz Baptista. Foi um parto muito difícil, as escravas parteiras fizeram de tudo para salvar minha mãe. Fui amamentada por escravos, minhas mães da pele cor da flor de Lotus negra, mas quem mais zelou de mim foi mãe Sabina que já tinha um filho de três anos de idade cujo nome Thabó. Na minha idade de oito anos, Thabó com os seus onze anos, brincávamos as escondidas de meu pai que é proprietário de mãe Sabina e de Thabó, na verdade meu pai é proprietário de muitos escravos que habitam, cuidam, plantam e fazem vários outros serviços no Engenho.

Nunca concordei com o tratamento desumano com que meu pai coronel Antero e o seu fiel capitão do mato ‘Um olho só’ tratam esses ‘trabalhadores’ que são chamados de escravos. Eles fazem a fazenda produtiva, limpam, cozinha, zelam do jardim e vivem como animais.

Todas as vezes que meu pai flagrava eu e Thabó brincando juntos, ele dava uns ‘tapas’ nele e eu ouvia e meu pai aos gritos: ‘Já para o seu quarto e não saia de lá até segunda ordem”.

Como a minha afeição por Thabó imperou eu sempre teimava em brincar com ele. Então foi aí que meu pai resolveu que antes de meus nove anos completos já era hora de eu ir para um colégio interno no exterior. “Você vai para um colégio interno no exterior, vai ficar longe desse negrinho, só vai voltar quando souber separar esses negros fedorentos e preguiçosos de nós, lá com os seus dezessete, dezoito anos de idade. Arrume as suas malas, menina desobediente”! 

E essas foram às palavras que me separam de Thabó, que ainda correu atrás da carroça, mas o cavalo foi mais rápido.

Catarina Diniz Sá: Ao mudar a pagina do diário escrito pela a filha do coronel, eu tenho que tomar cuidado, suas páginas estão frágeis por ter passado muitos anos e o mesmo não foi muito bem guardado.

Eu Catarina estou encantada e ao mesmo tempo ‘boquiaberta’ com tantas barbáries que são descritas no velho diário de uma menina branca que não podia ser amiga de um menino negro. Ao mudar mais uma página do diário é como se tivesse passado alguns anos, Ana Clara começa dizendo que no colégio interno não pode se quer botar a mão em seu diário e que começa novamente a narrar os seus dias e noites na fazenda Engenho Escondido, já com os seus dezessete anos e Thabó com os seus vinte anos de idade.

“O meu pai não mudou nada nos seus conceitos e valores, a sua aparência sim, mostra um pouco mais de idade, é só a aparência, continua carrasco e mantendo essas pessoas trabalhando  suportando as dores e caminhando em direção a morte sob o comando do capitão do mato ‘Um olho só’. Só posso falar com Thabó a noite depois que todos se recolhem em seus aposentos. E eu já fui alertada por meu pai que se quer me deu boas vindas”.

‘Se eu te pegar de conversinha com Thabó, vai os dois para o tronco, e ainda boto você para morar com ele na grande Senzala. Você me ouviu, Ana Clara’?

O que meu pai o grande coronel Antero Ferrão não pode se quer imaginar é que eu não pensava em mais nada enquanto estive no colégio interno a não ser em nossas brincadeiras, eu e Thabó brincávamos nos porões, pomar e na Senzala enquanto os outros negros estavam na ‘lida’.

Hoje foi o meu primeiro encontro com Thabó desde que cheguei do Colégio interno.

Não posso descrever aqui o que eu senti ao botar os olhos num rapaz alto, forte usando apenas uma calça branca feita de saco que vem embalando açúcar.

Como Thabó mudou. Sua pele é tão negra que me deu vontade de tocar, seus dentes brancos, sem falar no seu cabelo ‘sarara’. Se existe castigo Divino esse é o castigo imposto ao meu pai. A verdade aqui escrita é que eu encontrei uma rara beleza em Thabó. Ele ficou lindo!

Catarina Diniz Sá: A cada página que leio do velho diário eu fico com o meu coração na mão, tendo a sensação que nasceu entre a sinhazinha Ana Clara e o escravo Thabó filho da escrava Sabina um grande e puro amor.

Ao ler com dificuldade uma página cheia de furos feitos por traças eu pude imaginar a cena e até me arrepiei. A minha imaginação cria entre a narrativa de Ana Clara os diálogos entre Thabó e ela.

Diário: Hoje o sol se pôs rápido e logo a lua estará no céu, mostrando a sua beleza e clareando o Engenho, não demora os escravos começarão a bater e tocar os seus instrumentos na grande Senzala. A canção e a dança deles irritam o meu pai e a mim, confesso que me atiça e sinto uma vontade incontrolável de ir até lá dançar com as escravas, envolta da fogueira. É tão lindo!  Vou interromper agora, pois, acabo de ouvir o sinal de Thabó. Ele veio me buscar para participar da festa deles. O sinal são três pedrinhas que ele atira em minha janela do quarto. Assim que eu abro a janela ele coloca a escada de madeira para eu descer. Tenho alguma dificuldade por causa de minha saia longa e rodada, mas para fazer parte da festa e ficar próxima de Thabó eu faço qualquer sacrifício. Meu pai e ‘Um olho só’ já devem de ter se recolhido em seus aposentos.

-Ana Clara! Vem! Desce! Thabó sempre fala baixinho após jogar as três pedrinhas na janela.

-Já vou. Espera! Já vou descer.

Catarina Diniz Sá: Eu chego a parar para imaginar Ana Clara descendo a escada de madeira com aquela grande saia, que para ficar bem rodada, elas ainda colocavam um ‘arco’ quase na barra da saia. A minha mente é bem criativa ao vê-los correndo de mãos dadas entre o jardim até chegarem a grande Senzala.

Diário: Hoje eu consegui ir a festa da Senzala com Thabó as escondidas. É muito lindo ver as escravas dançando ao som dos tambores confeccionados por eles mesmos. Elas dançam descalças e segurando as saias. Os homens tocam e elas dançam. Eu aprendi a dançar. Eu e meu coração dançamos para Thabó. Ele me disse que ele e os outros estão trabalhando na colheita de arroz que fica distante do casarão e que é para eu seguir o rio e ir vê-lo e que às vezes no meio do dia ‘Um olho só’ afasta e lá para ‘pagiar’ outros escravos no manuseio do gado.

Sabina disse que é para eu e Thabó tomarmos muito cuidado, pois, se meu pai pegar eu e Thabó juntos ele é capaz de cometer uma loucura, de nos aplicar o pior castigo ou ordenar que ‘Um olho só’ o faça.

E assim, eu tenho que pegar a minha sombrinha, disfarçar, fugir também de Sabina, passando pela a cozinha e ir até a lavoura de arroz.

Catarina Diniz Sá: Eu fico com o coração na mão. Pois, a sinhazinha Ana Clara se arrisca, foge para encontrar-se com Thabó, vai a noite para a festa dos escravos na Senzala, eu penso que o seu pai não terá coragem de lhe aplicar um castigo que a fere, agora, já com Thabó pode ser diferente. Ele pode sofrer um castigo que poderá levar até a morte, como era o costumeiro naqueles tempos.

Diário: Cheguei na lavoura de arroz e logo Thabó me avistou e veio ao meu encontro, pegou na minha mão e saímos correndo rumo ao velho pomar abandonado.

Ficamos sentados debaixo de um pé de manga em troncos de madeira que Thabó ajeitou para nós. Ele colheu frutas para nós. Enquanto Thabó escalava as fruteiras eu o observava: A virgem Maria que há de me perdoar, mas o ‘clima’ a nossa volta não é mais o mesmo de quando éramos crianças. Eu sinto um calor, algo que sobe a minha cintura até a nuca, um arrepio e meus olhos observa cada movimento do corpo másculo de Thabó. Eu já o vi me observando com olhos de homem, mas por medo ou para me poupar ele sempre disfarça.

Como eu desejo passar as mãos em suas costas. Quando Thabó sorri para mim eu não o vejo como aquele menino negrinho, sinto a boca salivando e os meus pensamentos numa doce confusão imaginam um beijo entre nós, me assusta, pois, não é um beijo terno no rosto ou testa é um beijo entre um homem e uma mulher.

Eu já orei muito no altar da Virgem Maria para me livrar desses pensamentos.

Nada pode existir entre eu e Thabó. Aos olhos de meu pai e da sociedade nem mesmo amizade. Se descobrem que nós dois nos afastamos da sede para ficarmos de conversa como nos tempos de criança, nós seremos castigados sem dó e nem piedade, mas parece uma ‘tentação’, uma força que foge ao nosso controle. Existe algo nele que me atrai e eu sei que Thabó me vê como uma mulher, não mais como uma menininha branca e frágil. Para retornar para casa é sempre muito arriscado. Thabó só me acompanha até próximo do Engenho, passamos pelos os caminhos secretos que só Thabó conhece.

Catarina Diniz Sá: Eu posso imaginar o quanto de dificuldade Thabó e Ana Clara encontrava para retornarem para a fazenda sem que ninguém os visse. Eu os vejo caminhando de mãos dadas e Thabó com ar de protetor levando a sinhazinha para a sua casa.

-Eu vou só até aqui. É muito arriscado eu chegar mais perto do casarão. Aqui nós separamos. Segue rápido e entra logo. Além de ‘Um olho só’, tem bichos selvagens na mata. Até, Ana Clara.

-Até! Thabó, eu adorei passar o resto da tarde com você.

-Depois eu jogo as pedrinhas na sua janela e nós vamos para o meio do jardim. Arranjei lá um lugar para nós. As flores serão nossas guardiãs. Deixe passar uns dias.

Diário:Me deu uma vontade imensa de dar um beijo no rosto de Thabó, mas ainda me acanho com isso, eu nunca namorei. E eu não sei quanto a ele, pois aqui tem cada negra linda. Só de pensar assim, eu senti uma ponta de ciúme de Thabó. Quando criança eu detestava vê-lo brincando com as meninas negras.

Todas as noites na hora do jantar, meu pai fica perguntando o que eu fiz o dia todo. E se Sabina tem cuidado bem de mim. Termina o jantar sempre dizendo que já está procurando um marido para mim. E que ele faz muito gosto de que seja rico, cheio de posses e que a idade não importa, se tiver condições de pagar um bom ‘dote’ por mim, isso que é o mais importante.

Catarina Diniz Sá: Pobre Ana Clara! Eu fico cada vez mais instigada a ler o velho diário, ao mesmo tempo sinto uma dó de Ana Clara e Thabó e já dá para perceber nas palavras da sinhazinha que ela gostaria que existisse algo mais entre ela e Thabó. O que para aqueles tempos e condições seria impossível, quase como comprar as passagens para o embarque para a morte. Às vezes fico pensando se eu pudesse estar lá naqueles tempos para ajuda-los de alguma forma. Ou se pudesse voltar o tempo, como voltar às velhas páginas desse velho diário. Como pode? Casar-se com alguém que o pai ‘arranja’ e ainda mais em contrapartida, em troca de um dote, uma quantia de dinheiro ou algum bem valioso.

Diário:Thabó está a demorar em jogar as pedrinhas em minha janela. Eu sinto-me ansiosa, à noite ouço os tambores na Senzala, mas fico com receio de ir até lá sozinha e encontrar com ‘Um olho só’ pelo o caminho, não tenho as ‘manhas’ e felicidade de Thabó de caminhar as escondidas pelo o Engenho.

Hoje a noite eu tentei ir até o lado de fora do casarão,na esperança de encontrar Thabó, mas ao descer as escadas encontrei meu pai que já foi logo esbravejando. Aos gritos ele falou: “onde você pensa que vai, Ana Clara”?

Quase desmaiei de susto. Tentei dizer que iria até a cozinha tomar agua e ficou pior, pois meu pai gritou a coitada de Sabina e zangou-se se com ela também:

-Sabina! Leve uma moringa com agua para o quarto de Ana Clara. Agora! E você Ana Clara, volte para o seu quarto e não saia de lá para nada! Ouviu? Moça virgem depois que escurece fica no quarto. Não quero passar pela a vergonha de ceder a sua mão a um bom partido e você não estar mais pura. Não vai mais me valer nenhum tostão. Volte! Filha minha não vai ser desonrada.

Catarina Diniz Sá: O pai de Ana Clara a vê como um objeto ao falar de um possível casamento, mas se parece uma ‘troca’, a sinhazinha em troca de algum valor. Ou será que era a ‘pureza’ da moça que era vendida ao candidato a marido?

Ao mudar a velha e amarelada página do velho diário encontro palavras mais alegres sobre um encontro de Ana Clara e Thabó no jardim, numa noite de lua.

Diário: Estava no meu quarto e ouvi as pedras baterem em minha janela. Abri-a devagar e lá estava Thabó segurando a escada de madeira. Desci a escada, Thabó a escondeu no meio de uns arbustos e fomos correndo para o meio do jardim, ao lado do casarão. Ele havia apegado na cozinha uns pedaços de bolo de milho, suco de mexerica, colheu frutas frescas e lá estava tudo numa ‘toalha’ de mesa feita de folhas de bananeiras forrando o chão.

De modo que quando sentamos no chão, poderíamos contar com a cumplicidade das flores, copos de leite, margaridas, lírios e pequenos arbustos.

Thabó havia nadado no rio, para me encontrar, sua calça estava cheirando patchouli. Disse que era para nós apreciar a beleza da lua. E ela estava majestosa, não economizou no seu brilho e estava gigante no céu. Deliciando-me com uma fruta do conde enquanto Thabó brinca com a minha trança. Ele falou: ‘Eu adoro ficar assim com você. Gosto muito de você, Ana Clara’.

Ele sempre elogia o perfume de meu cabelo. Ao ouvir a cantiga do galo ele disse que era para eu me recolher. Já estava tarde. E já era hora mesmo. Thabó estava sentado muito próximo e a todo o momento cheirava o meu cabelo. Quase não consigo me controlar. Nós combinamos de ir ao rio para nadar, como quando erámos crianças. Disse que é o encarregado de levar as flores para dentro de casa, para Sabina decorar a grande sala. Thabó disse: ‘ O dia que tiver um copo de leite na escada, você pode descer as escondidas lá para o rio’.

Eu estarei lá. Eu irei aguardar o seu sinal, ansiosa. Nós levantamos para sairmos do meio do jardim e vimos ‘Um olho só’ passou para o seu barracão com uma arma nas costas. Abaixamos rápido e assim que ‘Um olho só’ desapareceu eu voltei para o casarão.

Ao ouvir barulho, Sabina veio correndo lá da cozinha e tive que me esconder atrás da cortina. Sabina voltou para a cozinha e eu fui com um sorriso nos lábios para o meu quarto. E aqui eu deixo uma pergunta para o meu diário: Será que isso que existe entre eu e Thabó pode ser considerado namoro? Bem, já que diário não me responde, o que eu sinto por Thabó é um sentimento muito bom, é quase sacro. Agora eu vou dormir e sonhar que não existe mais o regime escravocrata e que Thabó é livre para nos amarmos até a eternidade.

Catarina Diniz Sá: Que amor lindo! Já dá para notar que o que existe entre Thabó, o escravo e Ana Clara a sinhazinha é amor. Um amor que já nasceu condenado pelo o regime escravocrata, pela a sociedade preconceituosa, racista, pela a desumanidade do(s) capitão ( ães) do mato, pelo o coronelismo daquela época e pelo o pai de Ana Clara e proprietário de Thabó que enseja dar a filha em casamento sem a sua vontade para um ‘homem rico’ que pagará por ela e a sua pureza um ‘dote’. Um mundo todo em ‘desfavor’ ao amor dos dois.

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