Segundo Ato

Um jovem casal apaixonado vive um caloroso romance em solo capixaba. De um lado, além do rio Santa Maria, está Guaraci, um jovem temininó. Do lado cariaciquense, está Jaciara, representante dos botocudos.     

O casal se conheceu quando suas tribos cruzaram o rio Santa Maria juntos, num lugar chamado Jacuí (rio de Jacu – uma ave muito comum na região). Pela terminologia indígena, acredita-se que o nome do rio Santa Maria era Jacuí. Contudo, carece de fontes históricas para confirmar essa informação.

O local era muito visitado pelas duas tribos que buscavam as águas mais limpas. Ao redor do rio Santa Maria, as águas se mostravam mais turvas. Somente ali no encontro com a Baía de Vitória é que as águas se mostravam mais limpas, no encontro com rochas depositadas nas margens.

Ambas as tribos visitavam normalmente o lugar, sem que houvesse disputas de espaço. Apesar da rivalidade entre elas, aquele local era dividido sem brigas. Cada tribo tinha um horário específico para buscar água ali.

Num desses encontros, Guaraci e Jaciara se conheceram. Ele estava descansando com sua tribo, enquanto ela buscava água com os botocudos. Jaciara retirava água com uma cuia, feita com fruto seco da cuieira (cuietê), quando ergueu sua cabeça e seus olhos cruzaram o horizonte. Ali estava Guaraci, de pé, postura firme e olhar fixo, seus olhares se cruzaram de forma penetrante.

Em seu interior, Jaciara sentiu um desejo ardendo como uma fogueira acesa, seu corpo já estava fervilhando em chamas num desejo que ela nunca teve antes. Guaraci permaneceu firme, imóvel, seu olhar não se desviou nenhum segundo. Até que um sorriso mútuo os conectou numa atmosfera de emoção sem igual. Não sabiam o que estava acontecendo, mas tinham a certeza de que era algo muito bom.

Mas esse clima diferente entre os dois logo foi quebrado. Jaciara tinha que seguir trabalhando, retirando água para sua tribo e Guaraci tinha que voltar com sua tribo para sua aldeia.

O Sol se punha por detrás da mata e a Lua na companhia das estrelas dava seu brilho. Os olhos de Guaraci refletiam a luz da Lua que acendia nele uma paixão desconhecida. Quem era aquela menina que o encantara às margens do rio? Ele desconhecia sobre a sua identidade, mas sabia que seria difícil alimentar um romance entre tribos rivais.

Jaciara estava exausta de tanto retirar água. Agora estava voltando com o seu povo para suas terras em Cariacica. Apesar do cansaço, aquela jornada valeu a pena, pois encontrou um jovem alto, formoso, com um belo sorriso no rosto. Não sabia o que era paixão, mas estava apaixonada por aquele olhar.

Demoraria um pouco para que os jovens se reencontrassem. Nem sempre os botocudos retiravam água ali em Jacuí. Também não era muito comum as duas tribos permanecerem “juntas”, dividindo o mesmo espaço por muito tempo, pois eram inimigas.

Cerca de duas semanas depois do primeiro “encontro” dos jovens, eles se reencontram novamente às margens do Jacuí (Rio Santa Maria). Ali estavam as tribos revezando para buscar água. Os botocudos, como sempre, ficavam pra depois.

Guaraci olhou atentamente para a sua amada. Era uma jovem de cabelos longos que batiam na cintura, sempre soltos sobre o ombro. Seu corpo jeitoso mostrava suas belas curvas que faziam dela uma linda garota à flor da idade.

– Guaraci. Guaraci! – Chamava sua mãe. Guaraci estava entorpecido com a beleza de Jaciara, que ele exaltava com um brilho no olhar e tamanha admiração. – Vamos, já está ficando tarde. – Chamou-o novamente.

Os temininós já estavam regressando para a aldeia, enquanto os botocudos ficariam por ali mais um tempo. Guaraci queria poder passar mais tempo à vista de sua amada, mas o tempo era curto e precisavam partir. As mulheres do seu povo ainda iriam preparar o mbyú (beiju) como refeição antes de todos irem dormir.

Ao caminhar de volta com sua tribo, Guaraci passou por Jaciara. Ela o viu. Os dois ficaram namorando olhares e se despediram com um lindo sorriso. Era tudo o que, por enquanto, poderiam ter.

Mais uma noite estrelada, a brisa batia levemente pelo rosto de Guaraci que sentia seu coração palpitar bem forte, inquieto em seu peito. Estava deitado sobre a relva, pensando no rosto de sua amada. Queria buscar um jeito de poder encontra-la, falar com ela, passar um tempo a sós com ela. “Ah, isso seria impossível!” – pensou.

Na verdade, não há nada impossível quando dois corações se amam de verdade e estão dispostos a lutar por um grande amor. Valeria muito a pena arriscar por um encontro às escondidas.

Do lado dos botocudos, começam a aprontar os corantes para a manhã seguinte. Eles pintariam seus rostos. Geralmente faziam isso em duas ocasiões: em caso de festa ou guerra. Tudo indicava que estariam anunciando uma guerra, pois não estava em época de nenhuma cerimônia festiva.

Em caso de guerra, o alvo seria a tribo do jovem Guaraci. E isso se justificava por causa da disputa pela água em Jacuí.  

Essas guerras não eram pré-anunciadas. Portanto, o exército inimigo sempre era pego de surpresa. Seria um tanto arriscado enfrentar os valentes temininós.

Os jovens guerreiros da tribo dos temininós eram bravos valentes, de estatura maior da dos botocudos. Estes precisariam de uma boa estratégia para vencê-los.

Um novo amanhecer os esperava. Jaciara despertou logo cedo, junto com o nascer do Sol, como de costume. As mulheres estavam bem ativas cuidando dos corantes que mais tarde seriam usados.

Um calafrio a tomou e a comida matinal queimou em seu estômago. Ela ficava assim sempre quando muito ansiosa ou preocupada com algo. E, sim, ela estava preocupada. Sua tribo declararia guerra contra a tribo de seu amado. Isso a deixava inquieta e bastante pensativa.

Juntou-se às mulheres para preparar as tinturas. O urucum, que era muito comum na região, era um dos principais corantes utilizados pelos povos indígenas. O açafrão e o jenipapo também eram bastante usados entre os indígenas.

Os botocudos também eram conhecidos como Aimorés. Suas características principais eram o hábito de usar um tipo de bambu taquara para confeccionar uma peça que ia em seus lábios. Os mais jovens nem sempre usavam esse adorno. Jaciara ainda não havia marcado a boca com o uso do botoque.

Raramente usavam tintura branca, dando preferência às cores preto (do jenipapo misturado à fuligem) e vermelho (do urucum).

Em seu sangue, os aimorés carregavam as origens polinésias. Um estudo do genoma de crânios de botocudos que viveram em Minas Gerais provou que o material genético deles era totalmente polinésio.

A origem e como chegaram no continente sul americano são ainda incertos. Supostamente, vieram da Polinésia atravessando o oceano Pacífico e atingindo a costa da América do Sul, onde se dispersaram. Talvez eles vieram de Tonga, onde era o centro da cultura polinésia.

A língua krenak, dos botocudos, carrega traços de idiomas malaio-polinésios. Tupã, Deus é chamado de Senhor (Tuhan) pelos malaios.

Pintar os rostos, como em dias de guerra, não significava que os guerrilheiros estariam prontos para o combate ou que já se levantariam para a guerra. Na verdade, estavam se preparando como num ritual de iniciação para a batalha. Não se sabia quanto tempo demorariam para investirem um ataque além do rio Santa Maria.

Os rapazes estavam pintados de listras pretas em seus braços e antebraços. Os seus rostos estavam tingidos de vermelho e preto em desenhos zebrados. Jaciara, apreensiva, desejava que um levante da sua tribo jamais ocorresse contra os temininós.

Ela queria, em breve, poder rever o seu amado com seu peito de fora, robusto, em sua vívida cor de pele, brilhando à luz do Sol. Desejava ter um tempo só com ele, longe dos demais, queria toca-lo, senti-lo. Isso só lhe era possível nos sonhos.

Era uma tarde quente. Jaciara enxugava seu rosto molhado de suor. Seu coração pulsava forte de esperança em reencontrar o seu amado. Ela sequer sabia o seu nome. Os dois não tiveram nenhum contato, mas o sentimento que alimentavam era o suficiente para inflamar a chama de uma paixão descontrolada que lhes arrebatava em pensamentos férteis.

Do outro lado do rio Santa Maria estava Guaraci e sua tribo. Todos muito tranquilos, despreocupados com qualquer ameaça. Fazia tempo que ninguém ousava enfrenta-los. Juntamente com os aimorés, eram os índios mais temidos da região.

Guaraci estava sentado sobre a terra, com a mão direita levada ao chão, onde usava a ponta do dedo indicador para fazer rabiscos na areia. Era um momento vago em que seus pensamentos viajavam até a aldeia dos botocudos.

Sua esperança era poder conversar com a jovem do povo inimigo – mesmo sabendo que seria uma tarefa arriscada. – longe da vista de todos. Ele estava disposto a arriscar sua própria vida com um encontro.

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