Capítulo 5

Os garotos seguiram a pé para o grande lago, não demorou apenas quinze minutos como dissera Ícaro. Heitor teve a impressão de caminhar por no mínimo uma hora, talvez fosse o peso das bebidas em sua mochila, mas dali alguns minutos o garoto não aguentaria mais andar.

Logo pode enxergar o azul à frente. O lago parecia calmo, e era realmente muito grande; quase não se via a outra margem, exceto por uma linha finíssima traçada sob o horizonte.

— Aqui está ótimo. — Afonso disse, largando a mochila sobre a grama muito verde. — Parece que estamos sozinhos, ótimo!

Heitor não conseguiu nem raciocinar, no que pareceram segundos, Marcus havia colocado uma música altíssima para tocar. Algo parecido com punk-rock socou os tímpanos do menino e todos os três largaram as camisetas e calças e se lançaram ao rio.

Heitor ficou parado, sem compreender.

— Vem, idiota! — Heitor viu as mãos dos garotos chacoalhando para cima e não pensou duas vezes. Deu um último gole na cerveja e tirou a jaqueta, camiseta, calça e sapatos e pôs-se a cair sobre as águas que estavam geladíssimas.

O dia foi de fato muito divertido, Heitor pôde conhecer mais sobre os três garotos e até combinaram de fazer isso mais vezes.

Heitor descobriu que Marcus era o mais velho dos quatro, e que repetira duas vezes essa série.

— Beleza, e a Ane?

— Ela é bonitinha, mas aquele laço brega...

— E a Victória Romênia? — Afonso cortou a conversa, enquanto todos se esquentavam sob as toalhas que Ícaro levara. Haviam , também, acendido uma pequena fogueira, que faiscava a mesma cor do sol ponte no horizonte.

— Vai mentir que ela piscou para você de novo? — Riu Marcus.

— A gente já sabe que é mentira. — Ícaro ria alto. — Áurea me contou.

— E ela sabe do quê? Por acaso anda comigo?!

Todos riram de Afonso que ficava mais vermelho a cada riso.

— Ela piscou mesmo, caras. Eu estava do lado dele. — Heitor tentou ajudar, mas as gargalhadas surgiram novamente.

— Eu sei bem, eu era a mesa. — Marcus divertia-se imitando Heitor, que rira também.

O dia fora de longe o melhor desde que Heitor chegará em São Havier, o clima de acampamento daquela tarde fora o melhor de sua vida e o garoto, por algumas horas, deixou de pensar em Áurea.

Perto do horário de saída os garotos já estavam em frente à escola, prontos para se juntarem a manada de alunos que saíam depressa, rumo às suas casas. Áurea passou por Heitor sem olhá-lo, deu apenas um sorrisinho tímido para Afonso que ignorou. Provavelmente ainda estava chateado pelo que ela contara para Ícaro.

Minutos depois Heitor já estava em casa, pronto para deitar-se, as costas doíam do peso das bebidas que carregara por tanto tempo e as costas ardiam um pouco pelo sol anormalmente escaldante para uma cidade que ontem mesmo estava repleta de neve.

Sua mãe não quis conversar muito, chegou tarde da padaria e tudo que fizera fora largar a bolsa sobre o sofá, subir os degraus cantantes e depositar-se sobre sua cama. Heitor fez o mesmo.

Agora, mais do que nunca, sua cabeça girava. Tentava alcançar a velocidade de seus pensamentos que pousavam sobre a sua tarde no lago e depois retornavam aos ombros de Áurea, que sorria de maneira gentil para ele. Carregava consigo um envelope e tentava esconder atrás do corpo, mantendo sempre o sorriso meigo, que Heitor não conseguia parar de olhar. Tentava se aproximar, mas à cada passo que dava a menina recuava dois. E se continuasse assim a menina sumiria de seus olhares. Pôs-se à observá-la, de longe mesmo. Ela agora abria o envelope e tirava uma pequena fotografia. A fotografia de seu pai.

Heitor acordou de um pulo, girou os olhares assustados e sonolentos pelo quarto que estava completamente vazio. Alguns gritos vinham do andar de baixo, sua mãe parecia berrar para o garoto descer.

— Estou indo! — Heitor soltou um berro enferrujado pelo sono.

Levantou-se e escorregou pela lateral da cama, até o chão. Vestiu um calça jeans azulada, uma camiseta branca com listras finíssimas pretas traçadas horizontalmente por toda a extensão do pano e sua jaqueta preta de couro brigiano.

Deu mais uma olhada ao redor e focalizou a primeira gaveta da cômoda que ficava ao lado da pequena janela redonda, agora sem neve alguma.

Sua boina repousava sobre o móvel. O menino abriu, então a gaveta e puxou um óculos de sol de armação fina, colocou-o sobre o nariz e parou alguns minutos, observando-se no espelho.

“Nada mal!”

— Heitor! Desse jeito vai se atrasar para o colégio!

Heitor congelou por alguns segundos, lembrou-se do que a diretora Rosalina dissera no dia anterior. Dissera que seus pais ficariam sabendo de seu atraso e um pensamento ainda pior encharcou seu cérebro: E se a mulher descobrira que Heitor havia “matado” a última aula?

Ao descer os degraus gritantes, porém, deparou-se com uma Antonella sorridente; apoiava-se sobre o balcão com o queixo em uma das mãos e olhava em direção à sala de onde uma voz grave e cansada ressoava tranquilamente.

— ...De todas as formas, querida Antonella. O mercado para nós está... bem, eu diria complicado. Eu receio que por conta das atuais desavenças e... — O homem quase careca notou a presença de Heitor e abriu um longo sorriso amarelado. — Ah, Heitor! Que bom vê-lo, garoto!

Heitor reconhecera o velho na hora. Este era seu Omar, um carroceiro que trabalhava para o pai de Afonso e que havia conhecido no mesmo dia que conhecera Afonso. O velho usava as mesmas roupas que, agora Heitor notou que deveria seu o uniforme de trabalho.

— Bom, creio que não se lembra de mim... — O velho ia começar a se apresentar novamente, mas Heitor o interrompeu.

— Lembro sim, senhor. — Heitor disse enquanto caminhava para trás do balcão e puxava algumas torradas de um pequeno prato. O sorriso de sua mãe havia diminuído desde que Heitor chegara na cozinha. E o garoto percebeu isso. Apoiou um dos cotovelos sobre o balcão, de modo que seus olhares emparelharam com os de Antonella e questionou:

–Por que tão sorridente, mamãe? — Heitor segurou o riso. Sabia que Antonella tinha uma “queda” pelo velho rapaz.

A mulher corou e, depois de respirar fundo, respondeu:

— Porque aquela velha abelhuda da Valentina não veio nos incomodar hoje. — Ao terminar a frase deu um sorriso longo que não lembrava mais o sorriso gentil de sempre.

Heitor ficou pensativo, a mulher prometera (por algum motivo) visita-lo todas as manhãs e até hoje tinha cumprido a promessa. Será que acontecera algo com ela? Antonella, como se pudesse ouvir seus pensamentos, continuou:

— Ela teve que resolver alguns problemas, sabe? Ela tem muitos negócios espalhados por aí... — A mulher virou os olhos para a mesa-de-centro da sala e Heitor notou que havia um pequeno pacote. — Ela pediu para o seu Omar trazer...

         Omar sorriu e deu espaço para o garoto, que voara em cima do pacote como um falcão. Os pedações de papel esvoaçavam com a mesma velocidade que Heitor rasgava o pacote como se houvesse ouro ali dentro. Finalmente conseguiu abrir e rodeado por balas de goma, chocolates e até um ursinho de chiclete havia um bilhete. Heitor pegou o papel e leu o conteúdo:

         “Querido Heitor, queira me desculpar pela minha ausência. Estou resolvendo alguns negócios aqui em Turca. Enquanto isso, aproveite os mimos que lhe mandei.

                                                                                Com muito carinho, Valentina. ”

Heitor não se importou com o recado, ele nem gostava da mulher a ponto de sentir sua falta. Correu para os doces e recolheu-os dentre os braços entrelaçados; como se desse um grande abraço. Antonella ergueu as sobrancelhas como resposta e Omar soltou um risinho sincero.

O garoto dirigiu-se para o corredor onde ficava a escada que dava ao segundo andar, mas sua mãe o interrompeu:

— Heitor, precisarei da sua ajuda na padaria hoje.

— Ah, qual é mãe? — O menino ergueu as sobrancelhas e deitou-as nas pontas.

— Seu Omar vai nos levar na carroça.

O velho sorriu de novo e Heitor começou a se irritar com a imagem de sonso que o velho estava tentado transmitir.

— Tá... — Heitor disse voltando a subir os degraus que rangiam como nunca.

Chegou no seu quarto com dificuldade, a quantidade de doces que carregava era tanta que tampava sua visão e o garoto precisara se deslocar de lado.

Pôs os doces sobre a cama e jogou a carta em cima da cômoda, girou os olhares pelo quarto e encontrou a boina, agora em cima do criado mudo e deu uma outra olhada pelo quarto, certificando-se de não ter esquecido nada. Foi até a janela e puxou sua mochila sobre os ombros e, ao olhar pela janela, viu o seu Omar preparando a carroça para partirem. No mesmo estante a voz de Antonella ecoou pela casa:

“Vamos logo, menino! Toda vez essa demora!”

Heitor tratou de ajeitar a mochila às costas e partiu para o andar de baixo onde sua mãe o esperava com um olhar severo. Disse para o menino se apressar e os dois saíram da casa, não havia mas a necessidade de usar jaqueta, cachecol ou gorro. O sol ardia sobre a estrada de paralelepípedos bem mais visível sem aquela neve toda.

— Apresse-se Heitor! Tenho duas entregas que precisam ser feitas pontualmente! — Berrou Antonella, acomodando-se ao lado de Omar, enquanto Heitor escalava a gigantesca roda da carroça com muita dificuldade.

Quando finalmente conseguiu se sentar no banco de trás, Omar sacudiu as rédeas e o velho cavalo disparou estrada a frente. As rodas de madeira faziam a carroça trepidar e mais de uma vez Heitor pesou que seria lançado para fora, olhava ao redor as casas e pessoas que passeavam distraidamente e do banco da frente ouviu, finalmente, Omar abrir a boca:

— Acredito que o risco seja mínimo, dona Antonella. — O velho ergueu os olhos quando percebeu a reação da mulher, que olhava de esguelha para o filho e depois voltava os olhares para Omar repetidamente. — Ah, sim! Tudo bem... Bom, Heitor. Como vai o colégio?

Heitor voltou a sentir um rebuliço na barriga que não sentia desde que saltara naquele lago gelado no dia anterior. Os dois provavelmente sabiam que o garoto havia “matado” as últimas aulas e estavam fazendo algum tipo de joguinho para tentar arrancar uma confissão.

— Bom... é... ruim não está, certo? — O garoto deu um sorriso evidentemente forçado e Omar pareceu perceber, mas não fez objeções.

— Creio que sim... Eu já estudei lá. Sabia? Quando era mais novo que você...

Heitor segurou a risada ao imaginar quanto tempo isso fazia.

— Chegamos — disse Antonella, levantando-se enquanto segurava a alça de sua bolsa sobre o ombro.

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