Capítulo 3

Os dois outros dias passaram como um sopro forte, Heitor começara a acostumar-se com o frio e, como se o clima tentasse pregar-lhe uma peça, o sol nasceu maior e mais quente que nunca. Ao debruçar-se para ficar sentado em sua cama Heitor notou que o gelo acumulado do lado de fora da janela redonda agora derretia. Um sorriso quase involuntário imprimiu-se em seus lábios. Não precisaria mais andar embrulhado em camadas de panos como fizera desde que chegara.

Levantou-se e rumou para a cômoda ao lado da janela, pegou sua velha boina e pôs-se à frente do espelho na porta do guarda roupa.

“Não” — Pensou o menino passando as mãos pelos grossos fios de seu cabelo escuro. — “Desculpe, velha amiga.”

Posou-a de volta acima da cômoda e vestiu sua velha jaqueta de couro preta. Seguiu, então, para o corredor e desceu os degraus que rangiam como se sentissem dor a cada pisada. Logo pôde ver Antonella, sua mãe, pousada à frente do balcão que separava a cozinha da pequena sala de estar, olhando fixamente para um pequeno envelope.

— Já em pé, querido? — A mulher disse guardando o envelope no bolso do avental.

— O que era isso, mãe?

— Nada de mais querido. — A mulher arregalou os olhos azuis que pareciam duas pedras de diamante. — Onde está seu uniforme?

Heitor estava tão cansado do dia anterior que esquecera o início do ano letivo e Antonella só fez dar um sorriso tímido.

— Dia dez, amorzinho. Nada de desculpas, vamos. Vá trocar!

Heitor sorriu também e virou as costas a mãe, seguiu pela escada que gritava e entrou no pequeno quarto. Agora, mais acordado, notou que a mulher deixara o uniforme em cima de uma cadeira de madeira próxima à cama.

Apressou-se em se vestir e ouviu algumas vozes no andar abaixo. Não teve dúvida de que era dona Valentina, a velha dissera dois dias atrás que o visitaria todos os dias e cumpriu a promessa até agora. Sempre trazendo-lhe doces e outras guloseimas, mas Antonella não parecia contente com as visitas da mulher.

Heitor, já vestido, desceu a escada novamente e encontrou a mãe conversando com Valentina na sala, as duas tomavam uma xícara de café, mas só uma parecia feliz com a conversa.

— Heitor, querido! — A velha levantou a xícara para chamar a atenção de Heitor. — Trouxe algumas coisinhas para seu primeiro dia de aula!

Acenou com a cabeça para um saco posto em cima da mesa de centro e Heitor sorriu. Lembrara do que sua mãe tinha o dito dois dias atrás.

— Querido — Disse Antonella torcendo o pescoço para enxerga-lo às suas costas. — Vou ter que ir mais cedo para a padaria, eu vou deixar uns trocados com você para pegar uma carruagem até o colégio...

— Tudo bem — o garoto caminhou até a cozinha para servir-se do bule de café. — Acho que vou... — O garoto parou de falar assim que viu uma foto em cima do balcão, haviam outras fotos dentro de um envelope aberto, todas mostravam um rapaz que Heitor conhecia muito bem.

— Você o quê? Querido? — Antonella disse de costas, olhando para Valentina que mantinha um sorriso malicioso no rosto.

— Eu... Bem... Vou a pé... — Heitor não falou sério, não fazia a menor ideia de onde o colégio ficava, se esforçava para esconder o espanto.

— Tudo bem. — Antonella levantou-se, colocando a xícara e o pires sobre a mesinha e Valentina o imitou. — Vou indo, tome cuidado no caminho e tenha um ótimo dia de aula...

A mulher saiu pela porta seguida por Valentina, que dera um sorrisinho para Heitor antes de sumir pela porta.

O menino voltou a olhar para as fotos no balcão e tirou-as do envelope. Eram todas fotos de um homem de cabelos escuros, como os de Heitor; óculos quadrados, uma pequena barba também muito escura e um sorriso generoso. Em algumas fotos estava abraçando Antonella, ambos pareciam muito felizes. Era seu pai.

O que aquilo significava? Heitor nunca soube que sua mãe ainda tinha retratos de seu pai, todo esse tempo ela vinha escondendo... Ela ainda olhava para a foto às vezes... Isso parecia algo que Heitor deveria saber. Heitor imaginou como sua mãe poderia estar se sentindo. O próprio Heitor sentia-se vazio sem a companhia do pai e, nesses momentos, uma dessas fotos poderia ter sido reconfortante.

O garoto deu mais uma olhada à porta de entrada, que permanecia fechada e puxou mais uma foto do maço, seus pais sorriam no que parecia ser um restaurante. Pôs, então, no bolso da jaqueta e subiu para o quarto onde pegou sua mochila e partiu para o colégio a pé, sem fazer a mínima ideia de onde ficava.

O frio não estava mais tão severo hoje, a neve (por algum milagre) começara a derreter de ontem para hoje e Heitor notou pela primeira vez que havia um parque dois quarteirões ao lado da biblioteca. Não notara antes com o horizonte monótono; esbranquiçado de neve. Pensou por alguns minutos e decidiu perguntar para uma senhora que andava devagarinho pelo parque onde ficava o colégio.

Aproximou-se devagar e mesmo assim mais rápido que a pobre senhora, chamou-a e a velha se virou em um susto contagiante.

— Oh, você querido?

Heitor reconheceu a velha, era Janeth Joel, o menino fizera uma entrega em sua casa que não era muito longe dali.

— Olá! — o menino deu um sorriso forçado. — Pode me dizer onde fica o colégio Alvorada? Creio que não sej...

— Você estuda lá?! Olha só, meu querido, se tiver sorte estudará com minha neta. Ah sim, vocês devem ter a mesma idade... quinze, certo? — A velha notou que o garoto não estava muito a fim de conversar, então continuou: — Certo, é meio longe, precisa seguir essa rua até o final...

A velha apontou seu dedo que mais parecia um galho murcho de uma árvore muito branca e Heitor despediu-se com um aceno.

Com certeza iria chegar atrasado, não podia nem ver o fim da rua, mesmo assim seguiu-a até o fim. Repetindo em sua cabeça: “Vamos a pé... Heitor idiota! ”.

Quase quarenta minutos depois chegou ao colégio que não pareceu muito grande. A entrada estava uma senhora magricela, altíssima (seu corpo de louva-deus lembrava o de Valentina) e um vestido vermelho chamativo pousava sobre seus ombros que mais pareciam cabides. Cruzava os braços e fitava o garoto com um olhar severo, ele sabia que levaria uma bronca e mesmo assim forçou os olhares mais sínicos que podia.

— Bom dia, eu... bem, sou novo e me perdi no caminho...

— Isso são horas? Qual o seu nome, garoto?

Heitor respondeu e a mulher continuou fitando-o das pontas dos dedos ao cabelo engomado e de repente virou os olhares para suas costas, onde um garoto vinha correndo, visivelmente atrasado também.

— Afonso? Isso são horas? Vocês dois, francamente. Espero que seja a última vez e — A mulher notou que um sorrisinho nasceu no rosto de Afonso que suava feito um porco. — não pensem que eu vou deixar por isso mesmo. Seus pais serão notificados.

— Ah, qual é?! Meu pai tem mais o que fa...

— Disse alguma coisa?

— Não...

— Agora, entrem!

Os dois se entreolharam e andaram esbarrando-se para dentro do colégio, evitando ao máximo olhar para trás.

O colégio era bonito por dentro, uma pequena floresta encontrava-se à esquerda, limitada por um muro branco altíssimo, seguido por um pátio de concreto repleto de mesas de piquenique e à direita uma escadaria que provavelmente levava às salas. Os dois seguiram para as escadas e procuraram nas listas em um quadro de cortiça o número de suas respectivas salas.

“Olha aqui, mesma sala. O que eu te disse Heitor?! ”

O garoto lembrou da velha com quem falara minutos atrás, provavelmente estudaria na mesma sala que sua neta Angelina.

— Vamos, cara. Quer continuar batendo um papo com a velha diretora?

— Aquela era a diretora...?

O garoto parou de falar quando Afonso deu as costas e subiu os degraus correndo e fazendo o um gesto com a mão para que o seguisse. Foi o que fez, subiram três andares e pararam em frente a primeira porta à esquerda com o número 35 parafusado abaixo de uma pequena janela de vidro.

Afonso bateu na porta e Heitor sentiu um pequeno desconforto quando a porta escancarou-se e todos os alunos já estavam sentados com olhares curiosos para os dois. O professor estava com algumas folhas nas mãos e olhou furioso para os dois meninos.

— Agora, Afonso? Elo visto tem um novo integrante na “gangue-dos-sem-futuro? ”

— Não quis chegar atrasado eu...

— Calado! Você acha que pelo fato de seu pai ter muito dinheiro não precisa estudar?

— Eu só...

— Calado! Sentem-se!

Afonso lançou um olhar raivoso contra o professor e entrou na sala, Heitor foi logo atrás. Envergonhado e um pouco chateado consigo mesmo pela confusão logo no primeiro dia de aula.

Caminhou olhando para o chão, enxergando os calcanhares de Afonso e parou quando o menino parou.

— Aqui. — Disse apontando para duas mesas e ao lado.

Heitor sentou-se olhando para os lados e Afonso logo sentou-se também, logo atrás dele. O garoto correu os olhares pela sala que não estava mais olhando para ele, já que o professor recomeçara a aula:

“Como estava dizendo, antes dos dois delinquentes interromperem. Os Auranes tiveram uma gigantesca importância dentro do contexto em que Matarás...”

— Esse professor é o pior que eu já conheci. Homero, o nome dele... — Afonso cochichou à orelha de Heitor. — Dizem que já expulsou um garoto da sala porque ele não conseguia ler o trecho de um livro...

Heitor manteve-se atento a aula, mas uma pequena tosse chamou sua atenção. Ao olhar para o lado viu uma garota. Sim, era a menina que Heitor vira saindo da biblioteca de seu Héctor. Agora mais bonita que antes. Os cabelos curtos que paravam sobre os ombros tinham, agora, cachos castanhos e os olhos razoavelmente grandes davam um charme maior. Heitor só percebeu que estava distraído, olhando fixamente para a menina, quando Homero chamou seu nome.

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