O Garoto das Dez
O Garoto das Dez
Por: G.S. Goméz
Capítulo 1

O clima gelado era cada vez mais notável. O velho ônibus bufava uma fumaça acinzentada muito densa e, com certeza, qualquer um que viesse atrás não poderia enxergar um palmo à frente do para-brisa. A vegetação era muito diferente de onde os dois estavam saindo. O que antes era verde-vivo, agora beirava o preto e branco da neve e das folhas murchas. Um sol fraco beijava as copas das árvores que pareciam não se incomodar e só faziam acumular mais neve.

Heitor e sua mãe vinham de um país vizinho, um país mais verde e mais quente. Mais aconchegante, talvez. Chamava-se: Brigada e em nada se parecia com o lugar que atravessavam agora. Por mais que fossem vizinhos, os dois países eram totalmente diferentes. Heitor notou que, enquanto saíam de Brigada, a vegetação tornara-se escassa e que o clima desértico perdeu espaço mais à frente para, por mais confuso que pareça, um clima de gélido, coberto por neve e de ar anuviado.

Fazia duas horas que tinham atravessado a fronteira para São Havier e Heitor já não podia sentir suas mãos, que congelavam mesmo mantendo-as nos bolsos do sobretudo preto que sua mãe o emprestara. Uma pequena boina cobria seu cabelo engomado e uma fumaça de vapor pairava sobre seus olhos sempre que respirava, encontrando-se com a janela embaçada do ônibus. Ao seu lado, sua mãe: Antonella cochilava completamente despreocupada, enquanto sua cabeça chacoalhava de acordo com o ônibus. A mulher era morena de olhos azuis-vivos e, ao acordar, esbanjou um sorriso gentil que ofuscou seu cachecol preto e sua boina de tricolina bege-acinzentado.

— Acordado, querido? — Antonella olhou para os lados, tentando entender onde estavam e voltou-se para o menino — Estamos quase em Romana, melhor ir preparando as malas.

As duas malas gigantescas estavam aos pés dos dois, ambas abertas pois, conforme o clima esfriava, os dois puxavam para si novas peças de roupas.

— Ficaremos muito tempo aqui? — Heitor perguntou enquanto tentava fechar a sua mala estufada.

— Vamos morar aqui, querido. — A mulher deu mais um sorriso e seus olhos quase se fecharam. Logo o ônibus começou a desacelerar.

“Podem desembarcar por aqui e por favor deixem os passes comigo!” Gritava o motorista enquanto se virava de seu assento para recolher os passes das pessoas que desembarcavam ao seu lado.

O frio parecia duas vezes pior do lado de fora do ônibus e a brisa gélida parecia travar as pernas de Heitor, que agora atravessava a rua para pegar uma carruagem com sua mãe enquanto carregava com dificuldade sua gigantesca bagagem.

— Vamos, querido! Está muito frio aqui fora... — Antonella dizia, ajudando Heitor a carregar a mala para dentro da carruagem.

O cocheiro não deu um pio o caminho inteiro. Pelo contrário, ignorou qualquer tentativa de diálogo que a mulher tentara e ao fim só fez estender a mão para pegar o dinheiro.

— Aqui estamos. Lar doce lar! — Eles olhavam para a casinha verde­-escuro do outro lado da rua enquanto a carruagem sumia ao fim da estrada de paralelepípedos. A porta surgia ao fim de cinco pequenos degraus e ao lado da porta uma janelinha branca dava um ar comportado à faixada.

Por dentro não era nada extravagante. As paredes tinham uma cor verde também, porém mais claras e o teto branco não parecia combinar com nada mais da casa.

Heitor subiu as escadas para o segundo andar, onde ficava seu quarto, e colocou a mala em cima da cama. Pôs-se a frente da pequena janela arredondada e congelou alguns minutinhos, apreciando a vista branca dos telhados cobertos de neve que se misturavam com o céu nublado.

O clima nada se parecia com seu país natal, mas não deixava de ser agradável. O branco para todos os lados lhe dava um ar sereno que Brigada nunca tivera.

“É, São Havier parece uma boa escolha para recomeçar” Pensou o garoto segundos antes de se virar para a porta onde sua mãe estava parada, apreciando-o.

— Que está pensando, Heitor? — A mulher apoiara a cabeça no batente da porta e cruzara os braços devido ao frio.

— Nada, mãe — O garoto colocava a boina em cima da cômoda, ao lado da janela redonda, e tombava os suspensórios para fora dos ombros. — Só... não via problema algum com Brigada.

O garoto agora sentara na cama de colcha verde, como todo o resto da casa, e sua mãe sentou-se ao seu lado.

— Estava cada vez mais difícil viver lá, querido. Já providenciei tudo aqui. — A mulher se levantou e seus olhos azuis brilharam por um momento. — Agora durma, amanhã é dia seis, ou seja: vamos cedo à padaria. O serviço não pode parar.

E com um sorriso jovial Antonella deixou o quarto de Heitor, que deitou olhando para o teto com uma miríade de pensamentos ricocheteando em sua cabeça; a respeito de sua nova vida em São Havier.

O céu de fevereiro parecia mais branco no dia seguinte. A janela redonda do quarto de Heitor estava coberta de neve. Pelo visto a nevasca aumentara durante a noite e o frio de agora parecia queimar a pele do garoto, que acordara com um susto.

“Heitor! Heitor, querido. Desça aqui!”. A voz de Antonella se espalhou pelo quarto e momentos depois, com ruídos de passos sobre o chão de madeira forrado em carpete, a mulher entrou no quarto de Heitor, que mais parecia um zumbi.

— Ainda deitado?! Vamos, temos visita! — A mulher saiu pelo corredor, deixando a porta do quarto bater.

O menino não teve muita escolha, levantou-se e prendeu novamente os suspensórios sobre os ombros. Pegou sua boina bege e rumou para o corredor, mas parou sob o batente da porta, voltou os olhares para a janela redonda e preferiu pegar um casaco de lã preta que ganhara de natal no ano passado e apoiou um cachecol sobre o ombro; para usá-lo quando fosse para a padaria com a sua mãe.

Caminhou sobre o chão velho que rangia com mais vontade hoje do que ontem. Uma brisa serpenteou a nuca de Heitor que não pôde esconder o calafrio e ao descer a escada no fim do corredor — que dava à sala-cozinha — conseguiu ver uma senhora de óculos, magricela e muito nariguda; de cabelos loiros tão desbotados que lhe delatavam a idade. Um sobretudo amarelo horrível e uma pinta um pouco acima de sua clavícula dava o toque final à convidada.

— Aí está ele! — Entusiasmou-se a senhora, vindo em sua direção e apertando-lhe as bochechas com força desmedida. — Que rapazinho bonito!

— Heitor, querido. Esta é dona Valentina, a mulher de quem comprei a padaria e o imóvel. — Antonella apoiava-se no balcão da cozinha e mantinha um sorriso fraco que contrastava com o olhar penetrante, quase dissimulado.

— Sempre disse. Ah! Sempre mesmo... veja! Os olhos de Erick, não? — O dedão magro e pontudo de Valentina cutucava agora o queixo do garoto, para que levantasse-o. — Não puxou os olhos tão cobiçados da mãe. Certo? — Completou virando-se para Antonella e tombando um pouco a cabeça, para que pudesse olhá-la sobre os óculos marrons.

— Puxou a paciência. — Antonella mordeu os lábios, parecia desconfortável com a inconveniência da velha. — Dona Valentina lhe trouxe alguns doces, querido.

A mãe olhou para a mesa onde os doces descansavam e voltou-se para a xícara de café que estava sobre o balcão. Bebericou e insistiu com um: “Vá em frente”.

Heitor fixou os olhos nos doces e, quando Valentina deu um passo ao lado, o menino decolou em direção à mesa. Antonella observava calmamente o menino se satisfazer enquanto tomava mais um trago do café. Valentina também ficou imóvel, com um sorriso dentuço acentuando mais ainda seu batom vermelho, quase rosa.

Não demorou muito e a velha voltou seu olhar para mãe de Heitor, para perguntar se estavam gostando de São Havier.

 — Chegamos ontem à tarde, não tivemos tempo de... sabe. Perambular por aí. — Antonella deu mais um gole do seu café, que expunha mais fumaça que o normal; devido ao frio absurdo.

— Claro, não recomendo que “perambulem” — A mulher fez as aspas com os dedos secos erguidos e um risinho irônico no rosto. — ...neste tempo. Não se preocupem, até as férias de verão o verde de Romana se fará presente!

A velha voltou a olhar para Heitor que, de boca cheia, notou-a.

— Muito obrigado, a senhora é formidável! — Algumas gomas saltaram de sua boca que parecia querer explodir.

— Oh! Que venham os dias em que mais cavalheiros, assim como você, surjam!

— Heitor, ponha o cachecol, nós temos que ir para a padaria, preciso de sua ajuda com algo. — Antonella mantinha os lábios rígidos, os olhos fixados na velha.

— Eu... bem, já vou indo. Espero que gostem da experiência aqui. Heitor, continue este cavalheirinho. — E, passando as mãos nos cabelos engomados do garoto, a velha se foi.

— Ela é muito legal, não?! — Mesmo com as bochechas esticadas era possível ver seu enorme sorriso.

— Hum... Vamos.

O clima pairava assustadoramente frio, mas o que mais espantava era o fato dos cidadãos parecerem indiferentes à densa nevasca que atordoava as calçadas e ruas. Heitor, mais de uma vez, sentiu o pé afundar uns quinze centímetros na neve e seus pés já doíam de frio quando finalmente chegaram a faixada da humilde padaria. A mulher atravessou a rua, dando algumas escorregadas no gelo e finalmente chegou a porta de vidro com uma plaquinha do lado de dentro escrita: “Fechado”.

Sacudiu a pequena bolsa de couro até encontrar as chaves e finalmente abriu a porta, ouvindo um chacoalhar de pingentes. Lá dentro havia um clima confortável. O ar tão quente que aqueciam os pulmões e aliviavam a quase hipotermia que o corpo de Heitor parecia querer ter.

— Os fornos. — Apontou Antonella, retirando seu sobretudo preto e sua boina bege-acinzentado e colocando-as em cima do balcão. Deu alguns passos em direção à vitrine e virou a placa para: “Aberto”.

— A senhora veio aqui mais cedo? — Questionou o menino ao observar que o calor no interior do estabelecimento se dava pelo forno a lenha acesso em brasas rasas.

— Pedi para um velho amigo adiantar as coisas.

A padaria era humilde, a faixada feita em vidro para que pudessem expor os belos pães que Antonella não tardou em assar. Duas fileiras cheias de pães e bolos se estendiam até o balcão onde ficava o caixa. Atrás do balcão havia uma porta marrom que levava ao estoque, uma sala escura que ficava aos fundos. Nada além de prateleiras. Uma outra porta estreita mais ao fundo levava à cozinha, também estreita e revestida de cerâmica azul-claro. Dois fornos se estendiam por uma das paredes, mas somente um estava funcionando.

O garoto esperou Antonella retirar a primeira fornada do dia para levar como encomenda para uma casinha que ficava duas quadras à frente. Uma velhinha muito gentil o atendeu, chamava-se Janeth Joel e não parou de falar um único momento. Coisas do tipo:

“Você tem a idade da minha neta, tem mesmo. Veja aqui uma foto, linda não é? Angelina, o nome dela. Um docinho!”

Quando e menino finalmente conseguiu sair havia mais duas entregas para serem feitas; a primeira um pouco mais longe. Próximo a um parque, um rapaz magricela atendera. Agradeceu e não falou muito mais. A última entrega não foi muito bem uma entrega. Heitor caminhava quando encontrou uma menininha muito pequena, ruivinha e de sardas que partiam do queixo à testa, cobrindo-a feito um morango. Esta disse que estava mesmo indo buscar a encomenda.

O garoto logo voltou para a padaria, apreciando cada centímetro da bela paisagem. As lojas eram todas diferentes. Na mesma esquina Heitor notou uma livraria, um boteco e uma floricultura com faixadas verde, azul e rosa.

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