3. Sorte de Olhos Azuis

A luz prateada do dia nublado entrava pelo buraco no telhado, de onde ainda pendiam telhas e lascas de madeira pontiagudas, bem no centro da sala. A parte de baixo da casa era feita de um único cômodo grande, escura e com paredes descascadas que um dia foram de um azul escuro penetrante, chão de madeira ressecada e riscada e janelas obstruídas com cortiça bege e velha. Mesas de escritório se apoiavam nas paredes, bambas e enfraquecidas pelo tempo. Uma cadeira de ferro com assento e encosto de tela estava empurrada a um canto, sozinha. Abaixo do buraco no teto, um tapete se desfazia pelo tempo, sujeira e água que se acumulava nele, desfiando e apodrecendo. O canto que um dia foi a cozinha não estava em melhores condições, tendo uma geladeira completamente enferrujada com a porta pendendo, onde uma família de ratos morava, um fogão no mesmo estado e os armários estavam no chão, quebrados. A escada de alvenaria estava inteira, com seu corrimão de ferro seguindo degrau por degrau para cima.

No andar de cima – que mais parecia um sótão – a sujeira não era tão presente, e o chão em volta do buraco tinha grades velhas protegendo-o para que ninguém caísse na sala. Algumas lascas de madeira do telhado tocavam o chão, rangendo com o vento forte lá de fora. Era como se algo tivesse caído do céu para dentro da casa, abrindo um enorme rombo nela. 

Algumas roupas estavam penduradas em uma arara no canto do sótão-quarto, objetos pessoais e móveis em bom estado o mobiliavam e as paredes não estavam tão deterioradas. 

Como se alguém vivesse ali. 

Escondido nas sombras, um colchão de casal fora colocado em cima de engradados de plástico para que não tivesse contato direto com o chão. Em cima da cama improvisada, travesseiros e edredons limpos se misturavam. O lugar ainda tinha resquícios de ter sido moradia de uma mulher muito jovem: os móveis eram femininos e desenhos delicados cobriam as paredes, desde passarinhos até retratos orientais e lagos com carpas coloridas. 

Zya encarava o teto, deitado na cama. Fitava as chamas pintadas nas telhas, intercalando tons de vermelho e laranja. O desenho fora feito com tinta spray, o que dava um ar enevoado à pintura. Seu peito subia e descia com a respiração tranquila, enquanto o som do vento uivando gelado fora da casa o fazia estremecer. Zya puxou o edredom e se cobriu com ele, virando para a parede. Seus cabelos negros se espalhavam na cama, se destacando nos lençóis vermelhos. A luz diurna se esvaía rapidamente, dando lugar a uma noite chuvosa, pois já caíam alguns pingos grossos. Zya fechou os olhos firmemente, mentalmente cansado. Passou o dia inteiro sem saber o que faria, andando de um lado para o outro em seu esconderijo em ruínas. Por fim, despira-se e deitou na cama, desistindo de fazer qualquer coisa naquele dia. 

Ele ergueu uma das mãos e tocou a cicatriz grosseira que o cortava da maçã do rosto até o queixo, seguindo-a com as pontas dos dedos. Ainda sentia a dor de ter reimplantado dentes – em um cirurgião que mais parecia um açougueiro, mas que era conhecido seu. O tal açougueiro não tinha caninos do mesmo tamanho que os de Zya e teve de usar maiores, dando um aspecto vampiresco a ele após ter reconstruído o que fora estragado. Quando os tocava com a língua, sentia um arrepio percorrer sua arcada dentária ainda sensível, arrepiando sua pele. Fazia alguns dias que os havia implantado e agradecia pela sensação horrível de dor e sensibilidade estar diminuindo, mas ainda estava lá, cutucando sua gengiva. 

Lembranças de meses antes se arrastaram faceiras para sua mente, devagar. Zya se deixou lembrar-se de tudo, sem se forçar a espantar tais pensamentos. 

Ao recobrar a consciência após o acidente de trem, Zya se pôs para fora dali o mais rápido que podia, arrancando o pedaço de ferro que estava fincado em sua boca. Ele se arrastou para fora do vagão após pegar um casaco grosso de lã marrom escura de uma mala que se abrira e espalhara tudo no corredor. Já era noite quando ele acordou, sentindo-se quente e com fagulhas passeando por seu corpo. Logo que sua mente se clareou, elas sumiram e Zya sentiu as dores absurdas do acidente. Mexia a língua bifurcada pela lasca de metal, avaliando os estragos feitos no interior da boca. 

Algumas pessoas – sobreviventes – se juntavam ao redor de uma fogueira improvisada enquanto eram atendidas por médicos que esperavam meios de levar a todos ao hospital mais próximo. Estavam no meio do nada, com a companhia de animais e cadáveres presos dentro do trem. Zya se arrastou até estar próximo às pessoas ao redor da fogueira e se deixou ser examinado por um enfermeiro com ares de exaustão quase extrema, com o rosto escondido em uma máscara hospitalar com pontos escuros de sujeira. A dor nublava fortemente sua visão, fazendo Zya beirar o desespero. Sentia o sangue brotar do ferimento horrendo e escorrer por seu pescoço e peito, com as bordas da pele rompida queimando. A única coisa que o tal enfermeiro poderia fazer ali, sem materiais, era limpar o corte com soro e tentar estancar o sangramento com gaze, rezando para que não infeccionasse. 

Após ter sido levado – sem saber como, pois voltou a perder a consciência – para um hospital público de Ghonargon, teve a pele suturada e nada mais. Ele sabia que aquele lugar estava à beira de ser fechado e não tinham cirurgiões que restaurassem seu rosto, então teve de procurar por conta própria por alguém que o “ajeitasse”. Saiu do hospital e foi ver seu antigo conhecido “cirurgião açougueiro” que o ajudou sem nada cobrar, pois estava em débito com Zya havia algum tempo. Com exceção da cicatriz irregular e grossa, não se percebia que seu maxilar fora quase partido em dois. Zya permaneceu com o homem por alguns dias, percebendo que perdera boa parte do paladar após o acidente. Quando se viu livre dos cuidados de seu conhecido, Zya pensou em procurar por Aksu ou até mesmo Louisa, mas não podia. Tinha medo de ser visto e se dar mal. Decidiu esconder-se na casa abandonada de Kenya até que se sentisse seguro para sair e procurar por amigos. O lugar o trazia lembranças que rasgavam seu peito, mas com o passar dos dias tal rasgar foi diminuindo e os olhos negros que apareciam em sua mente deram lugar aos azuis límpidos e inocentes que o fitavam com curiosidade. Não negava que sentia uma culpa avassaladora por não a procurar, sabia que ela deveria estar odiando-o, sem saber o que havia acontecido, mas sentia que não era hora de se arrastar cidade afora ainda. A casa de Kenya era longe dos pontos mais movimentados, ficando em uma rua onde tinha poucas casas, pois o forte dali eram galpões alugados. Precisava procurar por Aksu, deixar que o amigo o ajudasse como sempre fazia sem sequer pensar duas vezes.  

Ainda com a mão no rosto, sentia os ossos despontando na pele. Não se importava em comer direito, alimentando-se com besteiras que roubava escondido do mercado decrépito ali perto. 

Deixando os olhos fecharem com o sono, Zya adormeceu pensando em quando a vida seria menos rude com ele. 

Pensando em quando a sorte lhe sorriria de novo, fitando-o com olhos azuis.

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