4. Lasanha Sabor Ciúmes

Henrik ouvia Chris falar desde que chegaram da escola. Já passava das quatro da tarde e ele não parava, ainda falando do cara novo na cidade. Henrik estava melhor da insolação que o acometera após horas jogando lacrosse debaixo de um sol cruel. Seu rosto já estava menos vermelho, pois ficou o dia todo passando cremes à base de aloe vera. 

Chris estava sentado à sua frente na bancada da cozinha com uma incrível cara de louco. Henrik desviou os olhos dele e observou seu reflexo na tela apagada de seu celular; cansado, vermelho e dolorido, com bolsas abaixo dos olhos vermelhos. Os cabelos claros como os de Louisa estavam secos e feios por causa do maldito sol e sua boca cheia estava queimada. 

— Olha, cara, que paranoia toda é essa? É só um garoto novo na cidade, nada demais. Ele não vai tirar a Lou de você. — Disse Henrik, cansado. 

— Você não está entendendo. Ele disse que matou um cara!

— E você acreditou? Ele foi sarcástico com você, Chris. Se toca.

— Que seja, mas ele ficava lançando uns olhares pra Lou.

— Chega. Fique calmo, ou eu terei um AVC se tiver que te aguentar por mais uma hora que seja. Eu não vi o tal Zya, afinal não saio daqui nem no sol de final de tarde, então vou esperar ele aparecer por aí para tirar minhas conclusões. E você parece o resto da cidade, julgando pela aparência só por que o cara usa maquiagem nos olhos.

— Dá um ar muito tenebroso a ele, sem falar da pele cinza que tem. Ele disse que na cidade dele era tipo chuva toda hora, então dá para imaginar porque ele tem aquela cor. — Disse Chris, servindo-se de mais uma porção de lasanha. — E um olho é de cada cor. 

— Quero só ver o que meu pai dirá quando vir isso. Se bem que é só o tal Zya Gaesh ficar na dele que está tudo bem. 

— Esse cara ainda vai trazer problema para todo mundo aqui em Sunfalls. — Resmungou Chris de boca cheia.

— Ah, se você diz. Só não me mete em perrengue não, Chris. Ainda mais com um... — Henrik se interrompeu, pensando em alguma palavra que não soasse tão ofensiva. 

— Forasteiro ex detento. — Completou Chris, destilando veneno. 

— Forasteiro... Coitado, está até apelidando-o e não faz nem um dia inteiro que o Zya está aqui. — Disse Henrik, bufando.

Louisa entrou na cozinha, pegando apenas a parte em que Henrik citava Zya. Ela usava um vestido de cor salmão com sutis babados na saia. As alças tinham pequeninas borboletas, tão pequenas que só se podiam ver de perto. Ela sentou junto de Chris, entrelaçando seus dedos nos dele. 

— Do que estavam falando? — Perguntou ela.

— Estávamos falando do seu amiguinho. — Respondeu Chris.

— Esse seu ciúme é muito idiota. Como se eu fosse largar você e me jogar nos braços de um desconhecido com cara de malvadão.

— É que o Chris sabe que é feio demais e, com um bonitão da cidade aqui em Sunfalls, ele se sente ameaçado. 

Henrik alfinetou Chris, sorrindo. Adorava irritar o amigo, pois ele perdia a calma facilmente. 

— Vai se ferrar, Newton. 

— Henrik, você não quer levar um prato de comida para o Zya? Ele não saiu de lá o dia todo e talvez nem tenha comido. — Pediu Lou. 

— Hmm, deixe-me pensar. O que vou ganhar em troca? 

— Eu não vou enfiar o dedo nessa sua pele queimada se você for. 

Henrik estremeceu e se levantou, preparando rapidamente um grande e belo prato de comida. Louisa ria, vendo-o tão desesperado com medo de que ela tocasse a pele vermelha dele, pois Henrik sabia que ela o faria. 

— Você é louca, Lou. 

— Obrigada, irmãozinho. 

Henrik vestiu uma camiseta, franzindo o rosto com a agonia do tecido em cima da pele. Alisou o cabelo curto para que não ficasse tão bagunçado, pegou o prato de comida com uma tampa de vidro em cima, talheres e saiu para a tarde já sem sol. Henrik andou apressado para o celeiro, via uma das portas estava aberta e ele entrou. Subiu as escadas com cuidado para que seus braços não raspassem na madeira ou para que não deixasse o prato cair. O celeiro estava escuro, mas as luzes do quarto estavam acesas. Henrik bateu à porta uma só vez e uma voz grave disse para entrar. 

Quando ele entrou, viu Zya parado aos pés da cama terminando de se vestir. Seus dreads longos estavam presos em um enorme coque atrás da cabeça e Henrik achou estranho o fato de ele usar maquiagem preta nos olhos; ainda mais quando acabou de sair do banho e não a borrou. Zya encarava Henrik, que o encarava de volta comicamente. Zya percebeu nele o mesmo olhar de Louisa sobre sua aparência, pois provavelmente não viu gente diferente em Sunfalls em toda sua vida. 

— Sim? 

— D-desculpe é que... Você usa maquiagem. — Gaguejou Henrik, parado em frente à porta, do lado de dentro. 

— É maquiagem definitiva, sabe. — Explicou Zya.

— Não, não sei. Definitiva, tipo...?

— Tipo tatuagem. 

— Você tatuou os olhos? — Perguntou Henrik, chocado.

— Os olhos e outras coisas que não irei te mostrar. — Disse Zya, divertido. — Você é...?

Zya terminava de vestir uma blusa vermelha de mangas compridas, mas não a vestira rápido o bastante: Henrik olhava intrigado para as cicatrizes de queimaduras severas que ele tinha nas palmas das mãos e antebraços. Parecia que a pele cinzenta dele fora derretida, retirada e colada com esmero de volta ao corpo. Zya reparou os olhares e tratou de se cobrir rapidamente. Henrik desviou os olhos para o rosto dele e sorriu, erguendo o prato que trouxera.

— Eu sou Henrik. Trouxe um pouco de lasanha para você. Lou mandou, pois ela acha que você não comeu nada hoje. A propósito, sou o irmão mais velho dela. 

Zya olhou com vontade para o prato, inclinando a cabeça para o lado. 

— É muita gentileza, Henrik. 

Henrik colocou o prato na mesa e os talheres ao lado, se afastando alguns passos. Sua primeira impressão de Zya fora que ele era um cara quieto e estranho, com aquela tal maquiagem definitiva e as cicatrizes de queimaduras. Henrik pegou-se pensando no que as havia causado.

— Ah, custava nada ser legal um pouquinho. — Respondeu Henrik, colocando as palavras em uma ordem “caipira”. 

— Vejo que está com queimaduras de sol. 

Zya falava baixo, sem mudar a expressão. Sentou-se à mesa e tirou a tampa do prato, agradecendo aos deuses por aquela comida que lhe parecia ótima. 

— Eu jogo lacrosse na escola e fiquei tempo demais nesse sol escaldante daqui de Sunfalls. 

— Interessante. — Comentou Zya com a boca cheia, indicado a cadeira à sua frente para que Henrik sentasse. — Fala um pouco daqui, por favor.

— Falar daqui? Bom, não tem nada aqui, como você deve ter visto. Só milharais, campos de girassóis e um cemitério. 

— Não tem ninguém diferente aqui? Do tipo que faz coisas estranhas?

Zya tentava tirar de Henrik alguma informação que pudesse ser útil sobre alguém que pudesse ser como ele, ter dons diferentes e difíceis de esconder. 

— Tipo um doido? Tem a Samira, ela é meio fervorosa demais, sabe. Às vezes ela sai por aí gritando versículos da Bíblia e dizendo coisas horríveis sobre o inferno. 

— O inferno não é tão ruim assim. — Sussurrou Zya, agradecido por Henrik não ter ouvido. 

— E ela cuida do filho e do sobrinho. O filho dela é o Genesis, e o sobrinho, Aiden. Eles são caladões e tem umas desavenças com o Chris. 

— Não imagino porque eles teriam desavenças com o doce Chris. 

Henrik riu diante à ironia de Zya. De fato, Chris não era fácil. 

— O povo daqui olha feio para o Chris e para o pai dele. Eles são hostilizados aqui. O pai dele, o Marco, é metalúrgico e tem o corpo coberto de tatuagem, o que faz as pessoas de Sunfalls acharem que ele é um marginal, e o fato de o Chris ter pintado o cabelo e colocado brincos faz com que pensem o mesmo dele. Ele é difícil de lidar, mas não é por nada. Nem leve para o lado pessoal. — Tagarelava Henrik, feliz. 

— Não levo. Caso contrário, eu não teria chegado nem na metade do caminho sem ter dado uns belos tapas nele. — Brincou Zya, mas com o olhar sério.

— Ele e eu já saímos no tapa feio, mas aí ficamos mais amigos depois disso. 

Zya se pegou pensando em Aksu, seu único amigo verdadeiro. Sentia falta dele, até mesmo das vezes em que saíam no soco por motivos idiotas. 

— A senhora Jenna me cedeu o celeiro, mas não sei nada sobre vocês, os Newton. 

— Bom, meu pai é pastor da igreja aqui, o nome dele é Saul. Minha mãe você já conhece, é dona da sorveteria. Minha irmã é a Lou, que você também já conhece. E só. Qual é a sua idade, se me permite perguntar?

— Tenho vinte e três anos recém-completos. E você?

— Tenho dezesseis e alguns meses. A Lou tem quinze e o Chris, a mesma idade que eu.

Zya ficava pensando como Henrik gostava tanto de falar, pois o fazia pelos cotovelos. Talvez fosse algum hábito de Sunfalls. 

— De onde você vem, Zya? — Perguntou Henrik.

— De um lugar chamado Ghonargon. Fica longe daqui. 

— Eu nunca ouvi falar desse lugar. Mas se você veio de lá é porque existe, então como era lá?

— Cinza, escuro, chuvoso e perigoso. Bem diferente de Sunfalls.

— Isso explica muita coisa.

— Como? — Indagou Zya, terminando de comer. 

— Sua cor, seu jeito esquisitão e coisa e tal. 

— Obrigado pela parte que me toca. Só me diga que não irão me apedrejar aqui e está tudo bem. 

— Se você for levar uma pedrada, com certeza será da Samira. Ou do Chris também. 

— Mal cheguei aqui e já fiz um inimigo, que ótimo.

— Ele vai se cansar de você logo menos, relaxa. — Disse Henrik, pegando o prato vazio. — Vou voltar para casa agora, mas você pode ir lá se precisar de alguma coisa.

— Pouco provável que eu vá. — Respondeu Zya, direto.

— Imaginei isso. Então, boa noite, forasteiro! 

Zya assentiu  e sorriu enquanto Henrik saia; um carinha deveras estranho e tagarela. 

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