1.2 Sunfalls

Louisa entrou em sua sala de aula e escolheu o lugar de sempre: nos fundos da classe onde ninguém sentava. Assim ela podia rabiscar a última folha do caderno ou copiar os poemas e textos bonitos sobre amor que encontrava em seu livro de literatura. Às vezes trocava as tampas das canetas coloridas ou arrumava e desarrumava tudo em sua mesa até algum professor chegar. Lou admitia que tinha problemas para se concentrar, mas tentava ao máximo. Se não tinha a atenção chamada pelos professores por não prestar atenção na aula, então era um dia perdido. 

Observava, distraída, os alunos de sua classe se empenharem em brincadeirinhas idiotas, juntarem as mesas para fofocar ou qualquer outra coisa. Suas mãos começaram a doer levemente, junto de um ardor. Louisa esfregou-as e cruzou os braços na esperança de que a ardência passasse. Ela convivia com a maldita sensação desde pequena, mas nunca quis falar a ninguém. Não gostava de contar as coisas sobre si para os outros, apenas para Henrik e Chris, pois seu pai, Saul, era deveras rígido, o que a fazia engolir seus problemas do que contar a ele e sua mãe tinha preocupações demais com a sorveteria para que tivesse mais coisas na cabeça. Louisa sequer considerava o ardor um problema, pensava ser apenas algo hormonal ou coisas do tipo, tendinite, quem sabe...

O professor da primeira aula entrou e Louisa iniciou o enorme esforço para se manter atenta, falhando miseravelmente.  

Lou girava a caneta preta na mesa, distraída. Estava realmente tentada a ouvir música com os fones de ouvido, mas não faria isso. O professor à frente era substituto e estava explicando algo que todos ali já haviam estudado. Ela olhou pela janela, vendo o dia lá fora tão claro e livre...

— Louisa! 

Ela olhou para frente, sobressaltada. O professor a encarava, provavelmente tendo perguntado algo que ela não escutara. Ela viu o nome dele escrito bem grande na lousa com giz vermelho: Mr. Fraser. 

— Sim?

— Ah, esqueça. Você não vai prestar atenção nunca. — Disse ele, desistindo dela e continuando com a aula. 

— Talvez não preste mesmo. — Sussurrou ela.

Fraser se virou para encará-la, com o giz ainda na mão. 

— O que disse, senhorita?

— Nada. — Respondeu Lou, rezando para que ele realmente não tivesse escutado.

— Deixe-me refrescar sua memória: “talvez não preste mesmo”. Percebi muitos sentidos nesse comentário. — Disse ele, sendo o mais sarcástico possível na última frase. 

Fraser largou o giz e limpou as mãos na roupa, nervoso. Não era a primeira vez que levava Louisa para um café com a diretora por causa de falta de atenção nas aulas. Ele mandou Louisa guardar suas coisas e segui-lo. Fechando a cara, Lou guardou seu material na mochila e a pôs no ombro rudemente, seguindo Fraser para fora. 

No corredor, Fraser mexia com nervosismo em seu cabelo ralo, andando rápido. Ele parecia estar na casa dos cinquenta anos, andava com a postura rígida e os lábios crispados o tempo todo, como se avaliasse tudo a toda hora. 

Chegaram à sala da diretora, que logo pediu para Louisa entrar enquanto Fraser voltava para a sala de aula. Louisa sentou na cadeira em frente à diretora, que estava em uma enorme poltrona marrom escura. Ela sempre repassava The Godfather em sua mente quando entrava ali, pensando em Don Corleone enquanto a diretora passava-lhe um sermão. Louisa, muitas vezes, passou noites encarando o espelho de corpo inteiro em seu quarto encenando partes icônicas do filme que amava. Ela nunca se lembrava do nome da diretora e sempre se referia a ela como a “poderosa chefona da escola”, jamais na frente dela, claro. Chamava-a assim não por ser diretora, mas por ter uma semelhança incrível com Don; as bochechas meio cheias, aquela expressão de estar sempre desgostosa, a boca ligeiramente aberta e muito fina e um buço que Lou sabia que ela nunca tirava, o que causava risos entre todos os alunos. 

— E então, Louisa? Entendeu o que eu disse?

— Ahm... Entendi, claro, mas poderia repetir só para reforçar a ideia? 

— Você não ouviu nada não é? — Disse a diretora, cansada. 

— Ele estava passando matérias que eu já sabia. — Disse Louisa, encolhendo-se. 

A diretora estava prestes a responder quando o alarme de incêndio disparou, interrompendo-as. Louisa sabia que não havia um incêndio de fato, pois provavelmente fora algum aluno quem fez soar o alarme. Ela tentava esconder o sorriso, sabendo que seria salva daquela vez, que poderia ir para a sorveteria de sua mãe e passar o resto do dia lá. 

— Saia daqui, vá lá para fora com o restante dos alunos. — Instruiu a diretora, saindo apressada da sala. 

Louisa correu escola afora e permaneceu na frente dela junto dos outros alunos que ainda esperavam alguns saírem. Ela teve um vislumbre azul no meio da multidão e logo Chris estava com ela, sorrindo e oferecendo-lhe a mão. 

— Chris, não me diga que foi você. 

— Eu já estava à beira de ser assassinado pelo calor daquela sala, tive que tomar providências. 

— Então vamos embora antes que vejam que não tem fogo nenhum e nos mandem entrar. — Sugeriu Lou, sorrindo e saltitando ao irem embora. 

Louisa o puxava para a rua, tagarelando sobre sorvete e Henrik. Chris a parou, segurando a mão muito pequena dela, virando-a para si. Ele sorria com os lábios fechados, olhando em volta. 

— Estamos no meio da rua, vamos continuar aqui até alguém nos atropelar? — Disse Louisa, encostando a ponta de seu nariz no queixo dele. 

— Farei uma oferta irrecusável a você. — Disse ele, imitando a voz de Don Corleone. 

Louisa riu, levando a mão à boca. Ela não gostava de como sorria, embora não soubesse dizer porquê exatamente.    

— O que quer então? 

— Poderíamos ir para o Muro. — Sugeriu ele. 

Quando diziam “Muro”, se referiam ao muro do cemitério no qual ficavam sentados à sombra das árvores, vendo o riacho correr por trás dele. Sunfalls não tinha muitas opções para os jovens; nem para os adultos, nem para ninguém.

— Hmm, o Muro... Sou uma moça de família, Chris. Não posso ficar frequentando muros com os rapazes da cidade. — Brincou ela, desvencilhando-se dele. 

— Que rapazes? Eu sou o único rapaz com quem você deve frequentar o Muro, mocinha. 

— Vamos logo para o incrível Muro com M maiúsculo. 

Chris levantou o braço para que ela o pegasse, como um cavalheiro. Caminharam por toda a rua da escola até uma pequena parte de um campo de girassóis. Atravessaram a parte e chegaram ao cemitério, dando a volta nele até chegar na parte do muro que eles tanto gostavam de ficar. Lou deixou sua mochila no chão, encostada ao muro e subiu nele, sentando-se com uma perna de cada lado. Chris pegou seus binóculos antes de subir, pois gostava de observar o horizonte, dizendo ser mais bonito daquele ponto. Cerca de cinco quilômetros dali havia um penhasco com uma mata densa abaixo dele.

Chris ergueu-o e observou a estrada atrás da cidade, do lado contrário ao do penhasco, onde passava a rodovia larga que dava acesso à Sunfalls; e levava para longe dela. Em frente à cidade havia um ponto de ônibus, onde um passava por ali três vezes ao dia. E estava quase na hora do segundo passar.

— Chris, você me trouxe aqui para ficar olhando o além pelo binóculo? 

— Só estou dando uma olhadinha rápida. 

Louisa cruzou os braços e Chris baixou o binóculo, deixando-o pender do pescoço pela corrente fina. Ele se arrastou para mais perto dela de modo que Louisa ficasse com os joelhos encostados nos de Chris. Ele pegou uma mecha do cabelo dela e a enrolou em um dos dedos, entretido.

— Eu vi você indo para a sala da diretora hoje. O que houve?

— Eu não consegui prestar atenção, como sempre. E o professor do primeiro tempo era o Fraser, então já sabe.

— Imaginei que fosse algo assim mesmo. — Disse Chris, evitando sorrir. 

— Não é minha culpa, Chris. Só não consigo.

— Hey, não tem problema, docinho. — Disse ele. 

— Se meu pai descobrir que me chamaram a atenção de novo na escola, ele vai ficar muito puto. 

— Adoro quando você fala palavrão. — Chris riu, inclinando-se para trás e deitando no muro grosso. 

Louisa sorriu e pegou o binóculo, observando a rodovia. O ônibus das onze da manhã chegara, parando lentamente no ponto. 

— Olha, o ônibus das onze. Vamos ver se alguém vai descer aqui!

— Ninguém quer vir para Sunfalls, querem ir embora de Sunfalls. 

O ônibus parou, soltando uma fumaça negra pelo escapamento. Após um minuto, ele se foi. 

E havia alguém no ponto de ônibus. 

— Alguém desceu aqui em Sunfalls! 

Chris ergueu-se repentinamente, olhando-a de modo confuso. Ele puxou o binóculo que estava preso a ela. Louisa estava com o rosto colado no dele, ainda com a corrente do binóculo presa em seu pescoço. 

— Tem mesmo alguém lá. Deve ser louco, coitado. — Disse Chris.

— Me deixa ver!

— Mas eu quero ver também. — Reclamou ele.

Chris e Louisa colaram suas cabeças, dividindo o binóculo, usando uma lente cada um. Louisa fechou o olho direito para que a lente funcionasse melhor no olho esquerdo. Ela via uma pessoa de costas para eles no ponto de ônibus com uma grande mala preta aos pés. Louisa achava que fosse uma mulher, pois a pessoa tinha longos e cheios cabelos pretos, mas eram estranhos, como se fossem feitos de corda. 

— Olha que cabelo estranho... — Disse ela.

— Eu acho que são dreads.

— Que? Dreads? 

— Sim e pelo brilho devem ser de lã. É como enrolar mechas do cabelo com a lã.

— Legal! Talvez eu faça isso também! — Ela disse animada.

— As roupas daquela pessoa são estranhas.

A pessoa no ponto de ônibus se tratava de um garoto que usava calças pretas cheias de fivelas e correntes, com botas que pareciam do exército e blusa preta de mangas compridas. Os cabelos – ou dreads – eram muito longos, mais ou menos na altura dos quadris. Eram muito bonitos e a parte de cima estava presa, deixando à mostra as laterais raspadas da cabeça. Louisa se sobressaltou quando o “forasteiro” olhou por sobre o ombro.

Diretamente para eles.

Ele cravou os olhos em ambos, como se os visse, e deveria de fato ver pois nada os escondia. Ele parecia ter a idade de Chris, embora tivesse um ar mais maduro. Usava muita maquiagem preta contornando os olhos e Louisa se pegou pensando de que cor eles seriam. A pele dele era tão clara que beirava o cinza e havia alguma coisa muito estranha nele, talvez o jeito ou aquele olhar tão... selvagem. Lou pensou ter visto um lampejo vermelho nos olhos dele, mas talvez fosse apenas um reflexo do sol. 

O forasteiro pegou sua mala e seguiu seu caminho, sumindo por uma das ruas da cidade. 

— Que sinistro. — Disse Chris, assobiando em seguida.

— Quem será que é? 

— Eu não sei, mas se ele decidiu vir para cá de livre e espontânea vontade, normal ele não é.

— Talvez ele só goste de lugares sossegados. — Lou disse dando de ombros. 

— Não parece. Tem algo muito estranho com ele. Deixa para lá, vamos comer sorvete de graça!

Louisa riu ao vê-lo arregalar os olhos ao falar do sorvete. Jenna não aceitava que Chris pagasse quando ia à loja e servia-o feliz, pois gostava dele. 

— Sorte sua que minha mãe acha você um cara bom para mim. 

Chris sorriu e pulou do muro, ajudando-a a descer. 

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