2- Crianças

Arthur e sua irmã percorrem o Caminho do Bosque na carroça lentamente, evitando fazer barulho. Ainda próximo do início, encontram Marlon caminhando.

  • O que aconteceu? Por que estão na carroça de Weller?
  • Venha com a gente. Eu te explico no caminho.

Marlon sobe na carroça que volta a se mover.

  • O que está acontecendo? Escutei um barulho alto e estranho.
  • A vila foi invadida. Precisamos encontrar os nossos amigos e nos agruparmos no final desse caminho. Meu pai e Cleuziou estão nos arredores da vila procurando sobreviventes.

Marlon escuta. Fica um tempo parado, pensando e juntando cada palavra da frase: “A vila foi invadida” e “procurando sobreviventes”. Pensa “Que história absurda! Totalmente fora da realidade! Nunca houve história de invasão no Vale de Sheear. Vivemos tão longe de tudo, a floresta é tão perigosa, e nossa vila é tão pequena que não há esforço que recompense uma invasão. Não!”. Estas palavras foram repetidas por seus pais e outros adultos da vila em toda sua vida.

  •  Arthur, se quiser desistir da brincadeira, não precisa inventar uma história cabulosa.

Ao terminar de falar, Marlon encara o amigo. Percebe que está calado e com uma expressão estranha. Seus olhos estão tristes. Sua irmã estava acuada e agora com lágrimas no rosto.

  • Então é verdade? - Marlon se vira para trás, na direção de sua Vila, pensando na sua mãe.
  • Você me ofende com essa dúvida.

A resposta de Arthur fez o diafragma do amigo travar a respiração. Foi uma resposta seca. Um sinal de conflito na amizade. Seu amigo geralmente evita conflitos. Pensou que era melhor não questionar, deixando um silêncio no ar por um instante.

  • E a minha mãe e o meu pai?
  • Não sei sobre eles - encarou o amigo, desviou o olhar fitando a roda da carroça girando, não sabia bem o que dizer, mas, voltou a encarar o amigo - Lá atrás, estão Cleuziou e meu pai procurando sobreviventes. E é o que temos que fazer agora! Vamos encontrar o seu irmão e o Renan. Depois nos encontramos com eles.

Marlon sente uma inquietação interna, seguida de um vazio. Ainda possui dúvidas sobre a veracidade da história. Assim, sua mente estava confusa, rejeitando qualquer plano de ação. Se for verdade, talvez seria a coisa correta pular da carroça e tentar salvar a sua mãe? Bem, talvez era melhor primeiro encontrar o seu irmão.

  • Não sei onde eles estão. Quando você começou a contar na árvore, eu fui para direita e eles seguiram reto.
  • Não se preocupe. Cleuziou me contou onde eles estão.
  • Aonde está Laron?
  • No alto do Grande Carvalho.
  • E Renan?
  • No lago de Sheear.
  • Como ele sabe?
  • Olfato.

"Impossível!", pensou Marlon. "O mundo me engana? De repente tantas novidades que contrariam a realidade? Pensando bem, Arthur nunca foi de ficar inventando lorotas. E Bryan sempre ganha na brincadeira tão rápido, de forma suspeita. Ele e Cleuziou são irmãos. Podem possuir um segredo."

Depois de percorrerem um trecho do caminho, encostaram a carroça entre as árvores. Os três desceram e entraram em uma trilha. Passaram por um caminho inclinado para cima, com o chão de terra um pouco claro. No canteiro da trilha haviam muitas flores vermelhas pequenas, contrastando com a mata verde escura. O aroma era mais frio e agradável. Em poucos minutos, o percurso virou uma descida, cheia de grandes pedras, com raízes de árvores as envolvendo. Toda aquela natureza bela e exuberante acalmou a alma das crianças. Ailin parou de chorar. Finalmente sentiram o cheiro de água. Os sons pareciam ter um efeito mais profundo e contínuo. A terra foi ficando mais escura.

Marlon observa Arthur olhando dentro do lago. Não era possível ver muita coisa. Sua água era bastante turva.

  • Aonde ele está?
  • Renan! - Grita Ailin.
  • Renan! - Grita Marlon.

Arthur franze os olhos. Observa peixes na água turva. Folhas grandes verdes flutuando sobre o lago. E, algumas plantas com o caule atravessando a água com suas raízes plantadas no chão submerso. Entre essas plantas, estranhamente havia uma ponta pequena de bambu verde para fora. Arthur começa a andar e olhar pelo chão próximo ao lago. Se agacha, observa o chão mais perto. Sorri! Olha para Marlon e Ailin e ri mais alto.

  • Que safado!

O silêncio permaneceu. Arthur fica pensativo observando as plantas. Então fala:

  • Não tem jeito.

Tira a roupa e entra no lago extremamente gelado em um pulo, submergindo todo o seu corpo de uma vez. Sua pele enruga, o frio desce nas articulações e o seu queixo treme. O maior frio era sobre os seus ombros. Desconfortavelmente, nadou até o bambu. Ao abrir os olhos, vê Renan submerso no fundo de olhos fechados, tapando o nariz, e, com a boca no outro lado do bambu, utilizando-o para respirar. Ficou surpreso como ele conseguira ficar esse tempo todo nesse frio sem se mexer. Pela imagem cômica e a raiva por fazê-lo sentir esse frio, Arthur toma o bambu em um bote! Renan abre os olhos no susto. Fica sem ar e se levanta para fora d'água desesperado. Respira assustado e se depara com o amigo revoltado.

  • Como você me achou?
  • Vamos! Precisamos achar o Laron. Explico quando estiverem juntos. Estamos com pressa!
  • Você não pode me dizer agora no caminho?
  • Estou com frio.
  • E?
  • E você é o culpado!

Marlon pensa, "ele está deixando-o curioso para não ir embora?". Ailin pensa, "Dois patetas!". Arthur veste a sua roupa rápido, ainda molhado, enquanto Renan sobe em uma árvore.

  • O que está fazendo?
  • Pegando a minha roupa.

Renan desce com uma bagageira de pano. Abre-a e retira uma toalha e roupas.

  • Você tinha toalha?
  • Sim.
  • E porque não me avisou?
  • Te aviso quando encontrarmos Laron.
  • Você não estava com isso quando começamos a brincadeira.
  • É claro que não! Deixei aqui em outra ocasião. Não queria levantar suspeitas.

Arthur balança a cabeça sorrindo e com raiva, enquanto sua irmã e Marlon riem. Arthur e Ailin suspendem o riso de cabeça baixa e triste. O garoto pensou: "até nesses momentos ele faz palhaçadas engraçadas que me tiram do sério". Assim, os quatro seguem de volta para a carroça, passando pelo belo caminho de pedras e flores.

O barulho da conversa despertou a atenção de uma miniatura de mulher que voava por ali. Ela se esconde e começa a observar as crianças.

Ao avistar o meio de transporte, Renan pergunta:

  • Vocês roubaram a carroça de Weller? Agora vocês foram longe demais!
  • Não roubamos - disse Ailin. O senhor Weller não precisará mais dela.
  • Por que?

  • Quando encontrarmos o Laron, contamos para vocês dois - disse Marlon.

  • Agora é sério, vocês vão me contar o que aconteceu! Eu não vou ficar andando com um bando de marginais... - Renan parou de falar puxando o ar de boca aberta. Ele viu uma espada, machados e um escudo. Em um pique de alegria, empunhou a espada e a observou com uma profunda admiração. Sua face era a expressão da felicidade! A alegria era tanta, que esquecia de respirar. Sentiu o peso da espada. Esticou o braço, levantando-a acima da cabeça, apontando-a para o céu, e, declarou: "Eu sou Finn MacCool!"
  • Cadê a sua moral ética de não pegar as coisas dos outros, senhor MacCool? - questionou Arthur.

Renan sorriu com a pergunta. Sentia-se cínico, mas engraçado. Achou graça do sarcasmo do amigo e da situação. A fada olhou com olhar apático e de desdém, e então voou embora. Já Marlon, que sorria, subitamente, passa a segurar a respiração - nervoso. Haviam pequenas gotas de sangue no cabo da espada. Percebendo que a situação é séria, sua mente deixou de estar vazia e se preenche com preocupações. Seu foco passou a ser achar o seu irmão - o mais rápido possível. Se questiona sobre o que Arthur e Ailin já passaram - até há pouco tempo estavam tristes. O que há na cabeça desses dois? O que eles sabem?

  • Vamos! Precisamos encontrar o Laron logo.

Em menos de 10 minutos, chegaram na trilha do Grande Carvalho. Dessa vez, o chão era coberto por folhas secas. Andaram por 5 minutos em uma descida, onde encontraram as raízes da grande árvore germinando pelo chão - a partir dali, não havia mais nenhuma outra árvore no caminho, somente terra e raízes. Foram caminhando, em direção à origem das raízes. Caminhando mais e mais. As raízes ficaram maiores e mais grossas. Caminharam até que a largura de suas raízes ficaram maiores do que eles. Escalaram um dos ramos e prosseguiram por cima dela. Cada vez mais o caminho se inclinava, tornando-se vertical. Ailin ficou admirada pela forma incomum e gigante que as raízes faziam.

  • Como vamos achá-lo? - Pergunta Renan.
  • Ela tem razão, Arthur. Não há rastros! O tronco é muito duro para pegadas - disse Marlon.
  • E agora? Temos que ir rápido! Meu pai está esperando!
  • Calma, Ailin. Precisamos subir até encontrar o vento. Lá em cima não há tanto lugar para se esconder. Já estive lá.
  • Vento? - Perguntou Renan olhando para cima. Percebeu que a árvore era muito alta! Ficou com medo da subida, mas continuou para não se envergonhar perante aos seus amigos.

A árvore era tão áspera e grande que sua casca formava entradas fáceis para mãos e pés, as quais ajudavam a escalar. No meio da subida, perceberam que já haviam folhas verdes. Aquele ramo era de tronco e não de raiz. Ele era tão grande que tocava o chão. Depois de 5 minutos subindo, as crianças chegaram a uma parte meio plana da árvore. Era o centro do tronco principal. Havia uma brisa circulando seus corpos. Era possível escutar o eco dessa brisa passando pelas folhas. Também já era possível ver boa parte da floresta. Estavam acima das demais árvores. A vila também era visível. Mas, a visão era tão pequena, que não era possível ver a invasão. Eles estavam cansados.

  • Falta pouco - diz Arthur.
  • Para qual dos dois lados? - pergunta Renan
  • Vamos nos dividir - diz Marlon.

Haviam dois troncos mais grossos que eles poderiam subir. Renan e Arthur foram para um deles. Marlon e Ailin foram para o outro. Embora os troncos fossem se afastando enquanto subiam, era possível ver uns aos outros. Já estava bastante alto, ao ponto de dar medo da morte. Mas, ao mesmo tempo, era agradável ver os amigos todos juntos ali.

Arthur e Renan encontraram o Laron em pé em um dos galhos, abraçado ao tronco - ele os encara desentendido, com seus olhos amarelos, misturados com a cor do mel. Seu cabelo escuro e ondulado, descia até as orelhas. Arthur pensa "Finalmente! Ele não cansa de ficar em pé?"

  • Como me achou?
  • Longa história. Lá embaixo eu te conto - diz Arthur.

Arthur, antes de descer, pensa, "eles não sabem que este pode ser o nosso último momento no Vale de Sheear". Olha para Marlon e Ailin no galho do outro tronco. Observa como o amigo é atencioso à sua irmã. Também observa o ingênuo Renan - é esperto e inocente ao mesmo tempo. Todos são seus amigos de infância. Apesar de tudo, estava tendo um momento agradável. O cheiro parecia com o mesmo cheiro da árvore em que ele estava contando de olhos fechados na brincadeira. Assim, aproveitou para sentir todo o ambiente. Observou a expressão concentrada de seus amigos. Gostou da visão alta, do vento, das folhas, dos galhos e das suas expressões silenciosas e encantadas. Nesse momento de prazer, também surgiu a tristeza e o seu senso de responsabilidade:

  • Precisamos descer. Lá no Caminho do Bosque, conto tudo.

Na descida, Renan estava indo muito devagar. No momento, era a criança mais nova do grupo, e o mais lerdo, o qual estava atrasando a todos. Para aliviar a tensão e pressão que sentia por ser o primeiro da fila, ele se agarra em uma das ramificações menores e a escala, permitindo que seus companheiros passem à sua frente. Enquanto escalava, percebeu que havia um fruto amarelo no ramo que ele se segurava. Era perigoso pegá-lo, pois o galho se inclinava horizontalmente. Precisaria se pendurar até lá. Na sua cabeça, vinham duas palavras "morte ou fruto", "morte ou fruto", "morte ou fruto". "Morte!", sorri enquanto se movimenta pendurado na direção do fruto, repetindo apenas "morte" nos seus pensamentos. Se deixou levar pela recompensa. Pendurado apenas pelas mãos, chega à fruta. Ao arrancá-la da árvore, a miniatura da mulher desperta de seu sono. Saí de sua cama voando com suas asas de libélula, abrindo o telhado de sua casa, que se fecha automaticamente como uma tampa. A sua casa fica no alto do grande carvalho, escondida junto ao tronco.

A fada, ao se deparar com Renan, raivosa, pergunta com rancor:

  • O que pensas que estás a fazer?
  • Levando a fruta mágica para - antes de terminar de falar, ao ver a fada com seus longos cabelos loiros, perde o foco e fica de boca aberta.
  • Essa fruta é minha! Devolva-me!

Renan fica uns 5 segundos escutando "devolva-me", mas seu cérebro apenas tenta digerir aquela imagem fantástica! A fada é incrivelmente bela! Sua asas são transparentes, seus cabelos eram loiros e seus olhos eram azuis radiantes. Sua cabeça começa a pensar devagar - havia deduzido antes que a voz da fada fosse de Ailin, por isso demorou para se recompor.

  • Renan! - grita Arthur lá embaixo, fora de visão, despertando o amigo.

  • Te devolver?
  • Sim, seu ladrão! - Fala em tom ríspido, com uma expressão nervosa.

Encantado, ele tenta conversar.

  • Eu encontrei a fruta na árvore. Ninguém é dona desta árvore! Ela pertence à grande Deusa Nantosvelta. Esta, assegura que todos possam comer o que vem de sua floresta.
  • Você não sabes o que fala! Espera, você disse comer?
  • Sim. Estou com fome. Se quiser, podemos dividir.

A mente da fada travou por alguns instantes. Começou a conversar consigo mesma: "Comer? Ele vai comer e dividir? Está se dando de bandeja? A sorte bate à minha porta? Isso nunca aconteceu antes, por isso fiquei sem reação. É uma criança corajosa por escalar até aqui, e, bondosa por dividir sua comida. Sua alma é de ouro!". A fada muda o seu tom e sua expressão.

  • Você já comeu a fruta da alma?
  • Nunca. Que nome mais estranho para uma fruta!
  • Dizem que ela fortalece o espírito, tornando uma pessoa mais rápida e forte. Eu a cultivo para dar de presente para quem aceitar fazer uma missão.
  • Que missão, minha dama?
  • És um cavaleiro?
  • Ao seu dispor - Renan responde sorrindo, fazendo uma covinha no canto da boca. Ele sabe que não é um cavaleiro. Mas, espera que ela peça alguma ajuda. Então, ele sorri pelo cinismo amigável entre os dois.

Uma alegria enorme tomou a fada. Renan se apaixonou ainda mais pelo seu belo sorriso. Pensava que aquela beleza era suprema tanto quando está com raiva, quanto quando está feliz. Enquanto estava hipnotizado, escuta o seu nome ser gritado: "Renaaan!".

  • Estou indo! - Respondeu no grito.

O menino olha para fada, pensa que queria ficar a sós com ela. Mas, também sabe que algo importante está acontecendo com seus amigos. Então ele fala:

  • Fada, vamos descer para contar a missão para os meus amigos. Eles poderiam ajudar.
  • Está bem! Mas não fale nada com eles por enquanto. Primeiro preciso ver como eles são. Essa missão pode ser perigosa. E eu também não posso me expor para qualquer pessoa. Guarde a sua fruta. Estarei escondida dentro de sua camisa. Te avisarei quando puder falar com eles sobre mim. 

A fada diminuiu um pouco mais o seu tamanho e se escondeu dentro da camisa de Renan. Este ficou em euforia e envergonhado. Era muita coisa especial para um só dia. A menina que ele acabou de se apaixonar estava escondida em sua camisa. O menino guardou a fruta na bagageira de couro e desceu da árvore com extrema alegria. Não conseguia parar de sorrir.

  • Renan, o que é tão engraçado? - pergunta Arthur.
  • Te conto depois.
  • Não fique de segredinhos.
  • Hipócrita!

Os dois riem. As crianças desceram e foram para a carroça. Andaram até o ponto combinado com o pai de Arthur e Cleuziou.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo