Capítulo 1. Começo do inferno

Para a minha infelicidade a manhã estava ensolarada e um calor de 23° graus marcava presença no lugar, caso fosse o contrário, eu inventaria alguma desculpa para a minha mãe para faltar a aula hoje, o primeiro dia de aula pós férias não era tão importante como o restante, mas minha mãe insistia em me fazer ir e assim conhecer pessoas novas, o que para mim não era uma boa ideia já que eu tinha um alguém que eu me importava mais que tudo, e esse alguém era o meu melhor amigo Brendon, como também ninguém entrava no meio do semestre. 

O sol queimava de uma maneira gostosa a minha pele, eu sempre preferi os dias frios e úmidos porque neles eu podia liberar toda a minha tristeza sem que ninguém percebesse, e para mim, os dias melancólicos eram os melhores porque eu podia ser quem verdadeiramente sou. Me levantei da cama ainda cambaleando por causa do sono e me permiti dar uma olhada na janela 一 e lá estava ela, Emilly Harrison com toda a sua glória parada de frente ao seu espelho.

Eu não era um pervertido em olhá-la, até porque essa não foi a minha intenção. Me levantei da cama ignorando a preguiça que insistia em permanecer no meu corpo e ao passar pelo espelho percebi o quão acabado eu estava logo no início das aulas depois do recesso. Meu nome é Ryan Travis, eu tenho dezessete anos e sou o homem mais infeliz do mundo.

A água gelada que caía sobre o meu corpo me fazia querer voltar para a cama e eu não estava nem um pouco afim de ir, mas era necessário. Logo após sair do banho, coloquei o meu uniforme da escola e fui de encontro aos meus pais que já me esperavam na cozinha para tomarmos café da manhã como era de costume. 

一 Bom dia, filho 一 Disseram em uníssono e as vezes eu me perguntava se aquilo era ensaiado ou apenas coincidência. 

一 Bom dia 一 O meu desânimo foi percebido, mas eu não fiz questão de disfarçar e então, suspiraram juntos. 

Sentei na mesa sem ao menos olhar para eles, eu não queria que eles me interrogassem a essa hora da manhã, eu estava cheio de dizer para todos o que estava acontecendo, então eu pouparia o ouvido dos meus pais. Às vezes os meus pais me davam medo, a preocupação excessiva deles às vezes me fazia revirar os olhos, mas de certa forma eu entendia eles, eles eram os meus pais e era normal que se preocupassem tanto comigo.

一 Ansioso para a aula? 一 Meu pai indagou bebericando o seu café. 

一 Talvez eu esteja e talvez não, que diferença isso faz? 一 Dei de ombros.

一 É o seu último ano filho, só aguente um pouco mais 一 Minha mãe pediu me dando o seu olhar de conforto, mas se ela soubesse de tudo o que eu passo naquele maldito lugar ela não me pediria isso.  

一 Não precisa se preocupar comigo, mãe. 

Meus pais me olharam como se quisessem descobrir o que estava acontecendo e eu tinha certeza de que me perguntariam se não fosse uma batida na porta que nos chamou a atenção. 

一 Eu atendo 一 Minha mãe foi a primeira a terminar o seu café e por isso foi a primeira a se retirar da mesa, e a única que estava livre para abrir a porta. 

Da cadeira em que eu estava sentado, dava para ver toda a porta da frente, e para a minha surpresa, era Brendon que estava batendo na porta. Quando olhei o relógio, já se passavam das seis e vinte da manhã, e se eu demorasse um pouco mais eu iria me atrasar, mas eu não estava ligando muito para isso. Brendon acompanhou a minha mãe até a cozinha onde eu estava e assim que me viu, fizemos a nossa batida. 

一 Você gostaria de nos acompanhar, Brendon? 一 Meu pai perguntou ao garoto apontando para a mesa com pães, leite e queijo. 

一 Obrigado tio, mas eu tomei café da manhã com a minha mãe 一 Agradeceu o convite. 

Desde que eu me entendo por gente Brendon é o meu melhor amigo, nos conhecemos no jardim de infância e desde então não nos separamos mais. Meus pais sempre gostaram bastante do Brendon, ele esteve comigo nos meus piores momentos e para mim ele era mais que um amigo, ele era um irmão. 

一 Cara, se você não terminar isso agora vamos nos atrasar 一 Me alertou e então, coloquei todo o pedaço de pão restante na boca e segui para o banheiro para escovar os meus dentes.

Freneticamente eu passava a escova por eles, me fazendo sentir um pouco de dor, mas eu ignorei completamente, eu sabia que não estava escovando os meus dentes direito, mas agora eu queria sair, ou os meus pais continuariam a conversa de antes. Saí do banheiro e fui de encontro ao Brendon que já estava na porta de casa, me despedi dos meus pais, peguei a minha mochila e assim, fomos em direção ao inferno.

Brendon caminhava alerto pela calçada, talvez pelo quase fatídico acidente de alguns meses atrás onde Mark, namorado da Emy, assim que nos viu na calçada a caminho da escola quase nos atropelou propositalmente. Brendon não era diferente de mim, era filho único, também era atormentado pelo grupo popular assim como eu tinha certeza de que gostava da Helena, a melhor amiga da Emilly e a garota mais insuportável do mundo. 

一 Quer desistir de ir? 一 Quebrei o clima chato.

一 Não podemos, vai que tenha chegado alguém novo 一 Ele disse sorrindo baixo.

一 Corta essa, ninguém gostaria de entrar naquele lugar 一 Fiz pouco caso. 

一 Qual é, aguenta só um pouco, eu sei que você consegue 一 Me encorajou. E aquela foi a segunda vez que ouvi aquela palavra só nessa manhã. 

一 É, você tem razão. 

一 E como foi as suas pequenas férias? 一 Ele indagou animado.

一 Passamos metade dela juntos, creio que você saiba como foi 一 dei de ombros.

Não tínhamos para onde ir como também não tínhamos outros amigos, então a nossa única opção foi jogar vídeo game e assistir séries que repetimos milhares de vezes, ir para a piscina com os meus pais e a sua mãe e morrer de tédio nos dias que sobraram. E assim se resumiu as minhas férias, assim como a dele, nada tão legal, mas também nada tão ruim.

一 Eu sei mas queria saber a sua opinião 一 Insistiu.

一 Meu caro amigo Brendon, passar as férias na sua campainha foi a melhor coisa que me aconteceu 一 Ironizei e ele gargalhou.

一 Você é idiota cara 一 Ele falou me dando uma leve empurrada e em seguida abraçou o meu pescoço. 

一 É por isso que você é o meu melhor amigo 一 Retribui o seu pequeno elogio.

Eu não tinha percebido que para a minha infelicidade já tínhamos chegado à escola, se não fosse pelo suspiro insatisfeito do Brendon eu realmente não ia perceber, minha reação não foi diferente da dele, pois para mim tudo o que envolvia ela me deixava infeliz.

一 É, precisamos entrar 一 Ele chamou e eu respirei fundo antes de colocar o pé na escola. 

一 Então vamos lá. 

O pátio da escola estava lotado de crianças e adolescentes, hoje todas as turmas começam as aulas, captei vários rostos conhecidos assim que meus olhos passaram por todo o lugar daquele pátio grande. A diretora já tinha começado o seu discurso ensaiado e infelizmente todos tinham que ficar até o final daquilo, se eu não soubesse quem já estava na sala, com toda certeza eu iria para lá. 

一 E se a gente for para a sala? 一 Brendon propôs parecendo que tinha lido a minha mente.

一 Olhe por todo o pátio e veja quem não está aqui 一 Pedi e assim ele fez

Sua cabeça girava a quase 360° graus procurando algo e quando finalmente não encontrou, ele me olhou com um olhar de desgosto e finalmente ele tinha entendido que Mark e sua turminha já estava na sala de aula, já que eles sempre passavam por cima da direção e todos os que supostamente deveriam ser um nível a mais que nós, os estudantes. 

Depois de longos e torturantes trinta minutos, finalmente a diretora tinha acabado o seu discurso e explicado a mesma coisa do início do ano, que os professores passariam os assuntos e esses seriam o que estudaremos nos últimos seis meses restantes. Brendon parecia ansioso ao caminhar do meu lado para a sala, talvez fosse por estarmos quase na reta final para terminar essa tortura de ensino medio. Quando chegamos na sala tivemos a confirmação do que comentamos a alguns minutos antes 一 como se fossem donos da sala, Mark, Emilly e a sua maldita turma já ocupavam todo o fundo da sala, e assim que os olhos de Mark encontraram com os meus, um olhar de escárnio foi dado de sua parte, eu sabia que ele iria aprontar alguma coisa. 

Eu quase permaneci imovel na porta da sala se não fosse por Brendon que me puxou até o lugar que costumava ser nosso e que ninguém nunca sentada, já que de acordo com o Mark e sua turma, tínhamos alguma doença contagiosa e que se alguém ousasse sentar ou tocar em nós acabariam pegando a mesma coisa que supostamente ele e seu cérebro minúsculo tínhamos. Eu nunca entendi o real motivo do Mark me atormentar desde o quinto ano do fundamental I, já ouvi de muitas pessoas que tudo aquilo não se passava de inveja, mas eu não tinha nem a metade do que ele tinha, então inveja não era o caso. 

Eu estava distraído com os meus próprios pensamentos até uma bola de papel ser arremessada contra a minha cabeça, diferente das outras que já jogaram essa doeu mais do que o normal e eu só entendi o motivo quando o papel se desfez na minha mesa e dentro dele tinha uma pedra. Mark e seus amigos riam da minha cara assim como todos da sala, enquanto o Brendon fazia cara de choro, e nem sequer tinha sido nele, ao olhar novamente, Emilly parecia estar triste, e o seu olhar para mim foi como se fosse de pena, e assim que Mark percebeu que nos encaramos, ele puxou Emilly pelos cabelos com brutalidade e eu tinha certeza de que aquilo tinha doído. Para a minha sorte, o professor de geografia entrou na sala, e aquela pequena gritaria que tinha se formado na sala, eu não entendia o porquê daquilo tudo acontecer comigo.      

一 Bom dia alunos! 一 O professor nos cumprimentou assim que colocou a sua bolsa na mesa.

Ninguém da sala respondeu e isso era algo tão comum que os professores e a direção já estavam acostumados com a falta de educação da turma,  assim que no discurso, o professor Marcos também anunciou que as cinco aulas seriam de trinta minutos e quinze de intervalo, o que foi um alívio para mim, minha cabeça onde foi acertado a pedra doía e eu não estava com coragem para tocar no local.

O professor começou a aula e disse o assunto que ele começaria e que em poucos dias pediria um trabalho em dupla que ele mesmo escolheria. Eu nunca gostei quando os professores escolhiam, porque sempre eu caía com alguém que me odiava tanto quanto eu, mas eu tinha que aguentar ou não ganharia nota. 

A todo o instante eu ouvia uma piada direcionada a mim e que de fato, todos da sala sabiam e até alguns professores, eu cogitava a ideia de voltar mais cedo para casa, mas eu tinha que deixar de ser um garotinho chorão como eu costumava ouvir e erguer a minha cabeça. 

Para o meu alívio, às aulas se passaram rápido e eu basicamente arrastei Brendon até a árvore que costumamos a ficar, eu tinha perdido totalmente a fome e para evitar confusão, eu preferi não aparecer no refeitório e para a minha má sorte, Mark estava na árvore encostado como se estivesse a nossa espera. Brendon conseguiu voltar ao contrário de mim que fui fechado por Luke e Pedro, e para piorar a minha situação, Mark também me fechava.

一 Não quero você olhando para a minha gata 一 Ele me empurrou e apontou na direção da Emilly que estava de cabeça baixa.

一 Ela não é invisível para que eu não olhe 一 Respondi a altura e no mesmo instante me arrependi, Mark deu um murro no meu estômago me fazendo cair de dor no chão. 

Olhei para o lado e várias pessoas viram a cena, até mesmo o Brendon que agora estava caído no chão e ao seu lado estava Luke e Pedro que desapareceram atrás de mim numa fração de segundos. As pessoas não ousavam se meter nas brigas do Mark, e o lugar em que estávamos não tinha uma única câmera,  mas talvez isso não mudaria muita coisa, já que a direção só se importa com status e não com o bem estar dos alunos. 

一 Dá próxima vez será pior 一 Mark proferiu as palavras assim que eu recuperei o fôlego e antes que eu pudesse olha-lo, algo foi colocado na minha cabeça e só depois que uma casca de banana caiu, eu percebi que o objeto desconhecido era o lixo.

Eu me sentia a pior pessoa do mundo por não conseguir revidar, isso acontece a anos comigo e eu nunca tomei uma atitude em relação ao que ele fazia comigo. E novamente o que Mark me disse uma vez veio a tona 一 eu realmente era frouxo e não conseguiria me salvar ou salvar o meu melhor amigo caso acontecesse algo. Tirei a lixeira da minha cabeça e ao olhar para o lugar em que o Brendon estava, pude ver o rapaz ainda deitado no chão, caminhei ainda com dor até a sua direção e quando eu me aproximei percebi que ele chorava. 

一 Vamos pegar as nossas coisas para voltar pra casa, cara 一 Chamei dando um empurrãozinho. 

一  Até quando isso vai acontecer? 一 Ele perguntou e eu senti pena, nenhum de nós dois merecíamos isso.

一 Aguenta só um pouco 一 Repeti as suas palavras de mais cedo. 

一 Não vai demorar muito, vai?

一 Não irmão,  não vai. Agora vamos.

Ofereci a mão e ele pegou sem hesitar, minha blusa não estava melada como eu pensei que estaria, olhei para trás e percebi que só papéis e casca de vegetais tinha dentro, o que me deu um alívio já que eu não gostaria de explicar para a minha mãe como sujei todo o meu uniforme. Quando ele se levantou seguimos para dentro da sala e para a minha sorte não tinha ninguém lá,  faltavam apenas 8 minutos para o fim do intervalo, e eu não queria ficar nem um minuto a mais nesse lugar.

Como dois foragidos, saímos da escola sem que ninguém percebesse, do lado de fora eu me sentia livre, ainda ocorrerá duas aulas para que o dia do turno manhã termine, mas como ninguém sentirá nossa falta, tenho certeza de que não vai mudar muita coisa. O caminho silencioso de volta para casa foi o melhor, nenhum de nós dois ousou a comentar o acontecido na escola, esse tipo de coisa era o que eu evitava falar até com ele que sempre via.

Nos despedimos assim que chegamos em frente a minha casa e para a minha sorte os meus pais não estavam, assim que tranquei a porta, passei pelo enorme corredor antes de entrar no meu quarto e decidi que hoje eu não sairia dele para encontrar com os meus pais no jantar, joguei a bolsa de todo jeito na cama e peguei uma roupa qualquer no guarda-roupa e fui para o banheiro. 

Parei em frente ao espelho e tive uma pequena visão da parte de trás da minha cabeça, o motivo da dor era uma pequena ferida que se formou no local em que a pedra foi acertada, ele ia pagar por tudo o que fez comigo, porque eu acreditava na lei do carma. Procurei e procurei novamente e finalmente achei a caixinha de lâminas do meu pai, eu tinha prometido a mim mesmo que pararia com isso, mas novamente eu não consegui, eu sou o ser mais fraco da face da terra.

Um corte, dois cortes, três cortes seria o suficiente para hoje. O sangue pingava na pia do banheiro e o corte queimava o suficiente para que eu não molhasse na água agora, eu fingia ser forte, mas a realidade é que eu não era. As lágrimas que eu evitei o dia todo finalmente saíram dos meus olhos, as vezes eu me perguntava se vivia ou sobrevivia, mas eu não podia dar um fim na minha vida e deixar os meus genitores sofrendo, eu os amava mesmo sem demonstrar, e quero ver a felicidade deles mesmo que eu esteja morto por dentro.

Entrei no chuveiro e o sangue se misturava com a água que caía no meu corpo, a ardência era suportável comparado com o meu coração que doía, não era errado um homem chorar, mas era errado ser uma pessoa desprezível como o Mark, mas eu era fraco demais para fazer algo e ajudar outras pessoas que passam pela mesma situação que eu. 

O sangramento parou e eu estava pronto para sair do banho, passei sabonete por todo o meu corpo evitando o meu pulso, desliguei o chuveiro, me enxuguei de uma maneira cuidadosa e coloquei a minha roupa, meus pais só chegariam na parte da noite, e eu sei que dependendo do dia, eles não me chamariam para jantar, e assim seria melhor.

Verifiquei pela última vez à porta da frente e quando vi que estava trancada fui para o meu quarto ignorando tudo, e quando cheguei, percebi que o carro do Mark estava estacionado na frente da casa da Emilly, fechei a janela com um pouco de força, depois a cortina teve o mesmo destino e em seguida me joguei na cama, a manhã para mim foi a pior, mas infelizmente eu ainda teria o restante dos dias, e eu teria que ser forte para aguentar tudo de cabeça erguida.

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