4. Migrar Para Sobreviver

O saco onde levavam os poucos itens que puderam carregar pesava nas costas de Emull. O vento passava uivando por seus ouvidos e o homem se curvava cada vez mais, protegendo o rosto do gume afiado da ventania. Clematis cobria o rosto com um trapo amarelo em uma falha tentativa de se proteger do frio. Ela se preocupava com seu marido, afinal de contas ele era um homem de idade avançada e carregar peso em uma viagem de algumas horas no frio e neve era extremamente nocivo para Emull. Afundavam até os tornozelos na neve que ainda não havia se compactado, forçando as panturrilhas magras e fracas a trabalhar. Os músculos queimavam com o esforço e os estômagos vazios roncavam alto de fome. 

— Temos que parar, Emull. — Clematis pediu, tentando falar acima do som do vento. 

— Não. Precisamos ir mais longe, só mais um pouco. 

— Estou com cansada e com sede! Por favor... 

Emull olhou para trás sem parar de andar. Respirou fundo e, diminuindo os passos até parar, colocou o saco de lona no chão. Clematis o alcançou com dificuldade, respirando ofegante, abrindo a boca para abocanhar mais ar. Estavam em meio à floresta congelada tendo como abrigo os galhos baixos dos pinheiros ao redor. Os galhos próximos do chão formavam um telhadinho redondo em volta do tronco escuro, possibilitando um descanso embaixo das folhas, protegidos do vento e da neve. O céu de chumbo acima de suas cabeças ameaçava cair a qualquer momento, o que os apressava para achar algum abrigo resistente – e livre de Mariposas – o quanto antes. Não poderiam permanecer embaixo de árvores o tempo inteiro. 

— Vamos descansar aqui, então. — Ele disse, largando o saco de lona aos pés do Pinheiro.  

Inspirar um ar tão gelado os causava arrepios e má respiração, uma sensação estranha de mucosa enrugando e congelando os acometia. Clematis parou ao lado dele e encarou o esconderijo que Emull decretara como abrigo daquela noite, estremecendo de frio. 

— E se passarmos um dos cobertores ao redor do pinheiro, prendendo nos galhos, será que conseguimos criar um abrigo mais adequado? — Clematis indagou. 

— Não temos cobertor tão largo para isso. Ajude-me aqui, pegue galhos cheios e coloque em cima para formar um teto. 

Clematis fez como Emull pediu e logo tinham uma pequena toca. Ele fazia paredes com galhos fincados na neve ao redor do abrigo, cobrindo com muitas camadas de folhas para que retivesse o máximo de calor possível. Dentro do abrigo a luz era pouca – os galhos e folhas bloqueavam tudo que vinha de fora – e trataram de cobrir a entrada com mais galhos por dentro. Emull e Clematis cabiam sentados um do lado do outro com os joelhos junto do peito. Ela abaixou o capuz da capa escura, deixando os cabelos negros e longos penderem pelas costas, cobrindo seus ombros feito um manto. Mesmo com a tristeza fincada fundo em suas feições, Emull ainda a achava bonita. Não, Emull a achava gloriosa.

— Vamos dormir com dificuldade por conta do pouquíssimo espaço. — Ela comentou em baixíssimo tom. 

— Bom, amanhã prometo que encontro algo melhor. — Emull tomou uma das mechas de cabelo dela entre seus dedos, acariciando os fios. 

— Precisamos ir cada vez mais para o sul, encontrar um lugar quente onde possamos cultivar comida e animais e viver sem o medo constante de amanhecermos congelados. 

Os cabelos e barba grandes de Emull escondiam o rosto marcado pelos anos de trabalho duro e medo. Sua barba grudava-se em seu pescoço, oleosa. 

— Precisamos.

...

A noite chegou e, junto dela, a tensão e o sono inquieto. Clematis fitava o escuro ao redor de si, deitada abraçada com Emull. Suas pálpebras estavam tatuadas com imagens de Anemony usando roupas de Roudinie, o corpo sem vida de sua amada filha deitado na cama, a beleza morta dela à luz de velas. Pensava em como ela havia ficado linda no vestido e, se lembrando de tais coisas, percebia como o buraco em sua alma era maior do que pensava. Já não tinha mais esperança de encontrar Cayden, sabia que Roudinie levava comida para ele de tempos em tempos, mas sequer quis impedir – jamais odiaria Cayden por ter roubado um mísero pedaço de comida. Clematis odiava o Ancião por permitir tal absurdo de banir uma criança para o mundo hostil e congelado. Seu coração disparou de ódio e uma vontade de gritar até explodir a encheu, porém Clematis manteve-se calada, não queria chamar a atenção das Mariposas. 

Aconchegou-se em Emull, que resmungou adormecido. Fechou os olhos e tentou adormecer; não notaria possíveis Mariposas ao redor caso estivesse dormindo. Clematis não deixaria toda aquela desgraça passar batida. 

Um filho por  outro, certamente.

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