3. Rosas Bordadas e Seda Negra

A terra dura se recusava a ser tirada aos nacos congelados pela pá de Emull. Cada vez que a fincava no solo eternamente endurecido era como se cavasse em um bloco de gelo; vez ou outra a pá rangia como se gemesse agoniada sempre que cravada na terra. Quase metade do dia havia sido gasto naquele trabalho e logo anoiteceria.

Emull tirava os longos cabelos grisalhos do rosto, apoiado no cabo da pá. Seu corpo fraco e velho estremecia com o frio que se embrenhava em suas vestes surradas e a barba criava alguns nós com o vento que o açoitava sem pena. A pele enrugada e queimada de frio se franzia com a tristeza de cavar uma cova para sua própria filha, tudo o que o sobrara. 

A cada punhado de terra dura que Emull tirava e jogava ao lado o fazia se lembrar do riso contido de Roudinie, de sua preocupação silenciosa com Cayden, sua juventude desabrochando como uma florzinha de pétalas negras e miolo verde e o lembrava de como ela os defendia da hostilidade dos habitantes de Vilarejo, que os crucificavam por conta do delito de Cayden. 

— Um delito imbecil, malditos sejam. — Emull resmungou contra o vento, sentindo-o enfiar todas as suas palavras de volta em sua boca rachada. 

As sobrancelhas franzidas tentavam proteger os olhos verdes da brancura da neve, do vento e dos cristais de gelo que ele levava consigo. O trabalho ainda estava na metade e ele sabia que precisaria esperar até o dia seguinte para finalmente enterrar sua amada filha, sua pequena Roudinie. 

A luz se esvaía e Emull parou de cavar. Apoiou a pá no ombro e se arrastou de volta para casa, olhando para as pontas de seus sapatos velhos com furos. Mal prestava atenção nos olhares que recebia dos vizinhos. Saiu da Rua Primeira e tomou o caminho de trás das casas, subindo a colina. Parou na porta dos fundos de uma das casas iguais – o Ancião dizia que ter casas iguais os igualava perante todos – e fitou a luminosidade fraca que saía por baixo da porta. Ele torceu a maçaneta redonda e a abriu, entrando rapidamente para se abrigar do frio. 

Debruçada sobre a mesa, estava Clematis. Ela tinha, entre as mãos pálidas na mesa, uma flor de papel amarelado, presente de Roudinie no último aniversário da mãe. Os cabelos negríssimos de Clematis estavam presos em um coque mal-feito que soltava mechas em sua nuca. Sempre fora uma mulher linda e Emull sentia-se desmerecedor de tal esposa, porém, naquele momento, ela era pura tristeza. Os olhos escuros mal se abriam, ocupados em chorar, e o corpo forte – do trabalho nas duras plantações que pouco rendiam – curvava-se sobre si próprio. Emull se aproximou a passos arrastados e sentou-se ao lado dela, tomando uma de suas mãos. O rosto arredondado de Clematis se voltou a ele, repleto de dor. 

— Não consegui cavar tudo hoje, vou ter que terminar amanhã. — Emull informou. 

Clematis tirou sua mão da dele de modo rude e repentino. Tremendo, subiu as escadas arrastando a barra de seu vestido preto de luto e, segundos depois, Emull a ouviu bater a porta de seu quarto. Cansado, ele suspirou e permaneceu sentado perto do fogão à lenha para esquentar-se antes de dormir. 

Dormir parecia um luxo sem tamanho naquele momento. Emull não poderia – não conseguiria – dormir enquanto sua filha esperava no quarto ao lado para ser sepultada. Mil imagens da curta vida dela pipocaram em sua mente; a alegria em ter mais um cobertor só para si, mesmo que sempre acabasse dividindo-os com Cayden para que se esquentassem melhor, os sons dela brincando ou fazendo qualquer outra coisa ecoando pela casa e a primeira vez em que Roudinie teve consciência da Noite Eterna.

Roudinie estava perto de seu quarto ano de vida quando notou a agitação em Vilarejo. Todos corriam entre as casas, carregando lenha e punhados de cenouras finas da plantação, falavam alto e com medo. Roudinie olhava pela porta da frente, sem entender o que se passava. Clematis a puxou para dentro e trancou todas as portas, tratando de cobrir todas as janelas com tapumes roídos. A garotinha pequena que parecia um bichinho de neve coberto de longos cabelos de piche o olhava indagativa. Emull sentou-se em frente à lareira enquanto Clematis cuidava de trancar a casa e puxou Roudinie para seu colo, tirando os sapatinhos rudemente confeccionados para que ela esquentasse os dedinhos no calor do fogo. 

— Por que está todo mundo tão apressado? — Ela o perguntou em baixo tom.

A voz infantil de Roudinie soava como um sino delicado, como o pio de um passarinho pequeno. 

— Está chegando a Noite, meu anjo.

— A Noite?

— A Noite Eterna. É quando ficamos muitos dias no escuro por causa das Mariposas. — A garota arregalou os olhos com o medo de ouvir falar das criaturas. — Elas encobrem o mundo com seu véu de agonia para que possam procriar. 

— O que é procriar? — Ela perguntou.

— Um dia você saberá. — Emull desconversou, encabulado. 

— De onde elas vêm? — Sussurrou Roudinie. 

— Vieram do céu há muito tempo. Não sabíamos o que eram aqueles incontáveis pedaços de seda flutuando do céu até nós e, quando nos demos conta, as Mariposas já estavam nos matando. 

— Ninguém ajudou?

Roudinie parecia entretida na história que Emull contava. Cayden ouvia sentado no topo da escada; fora proibido de ouvir desde que ridicularizou a Noite Eterna, ameaçando sair da casa durante ela para provar que nada o mataria, que as Mariposas eram só uma mentira para que tivessem medo e andassem na linha. Um garoto tão jovem e tão cético, tão cego...

— Não era possível. Nada as detinha, só a luz do sol e quando fizeram a primeira Noite Eterna não estávamos preparados, não sabíamos que isso aconteceria. 

Emull falava como se tivesse vivido na época da invasão, como um modo de fazer a narrativa parecer mais assustadora, ele achava, embora ele tenha nascido um século depois da invasão. 

— Demoramos para aprender a sobreviver, outros desastres aconteceram depois que elas apareceram e cá estamos nós, nos escondendo delas. E é isso o que acontece uma vez ao ano, por isso todos se trancam em suas casas. É importante que se lembre disso e jamais pense em sair ou abrir uma janela que seja durante a Noite, está bem?

Roudinie assentiu energicamente. O medo estampava seus olhos enormes de criança e a calava. 

Todos os anos, desde então, ela se empenhava em ajudá-los com os preparativos para a Noite Eterna. Roudinie não demonstrou nada quando Cayden foi banido, mas Emull sabia que, por dentro, ela se retorcia de medo por Cayden e por ficar sozinha. Ele sempre tinha sido sua companhia constante desde que Roudinie nasceu e sua ausência deixava um buraco quase do tamanho de seu ser. 

Durante dias procuraram por Roudinie após seu sumiço. Alguns diziam ser inútil, as Mariposas certamente a haviam matado. Outros tentavam, mesmo que desacreditados, manter as esperanças de que Roudinie estava perdida ou com o irmão, tomada pela saudade. 

Quando completaria uma semana desaparecida, acharam seu corpo. 

Roudinie não estava escurecida como todos ficam quando congelam na neve: sua pele mantinha-se branca, imaculada. Uma fina camada de neve a cobria e algum animal pequeno andava se alimentando do conteúdo de sua cabeça aberta. Quando Emull a virou, apegando-se a um último suspiro de esperança de que não fosse sua filha, olhos brancos arregalados o encararam, acusadores. O rosto angelical de menina que entrava na adolescência estava lívido e congelado, os lábios antes avermelhados tinham cor de mirtillo e Emull temia o que poderia ter acontecido antes que Roudinie fosse morta, afinal ela estava completamente nua. Ele tirou sua capa e a cobriu, aninhando o corpo duro em seu peito. Mal percebeu quando alguém a colocou em cima de uma prancha de madeira – que usavam para transportar feridos – e a levou embora. 

Faria três dias que Roudinie havia sido encontrada e entregue à mãe para que ela cuidasse de limpá-la e vesti-la para seu funeral. 

Emull deixou o calor da cozinha e subiu para o quarto de seus filhos, abrindo a porta com delicadeza para que não rangesse, fechando-a atrás de si. O quarto estava mergulhado no breu e Emull repreendeu-se por não ter levado uma vela. Sabia que tinha uma em cima do criado-mudo ao lado da cama – onde Roudinie estava – e tateou o ar à sua volta até achar a vela e o isqueiro velho. Acendeu-a e, sentindo o gosto amargo do medo e da tristeza tomar sua boca, encarou o corpo que descansava na cama. 

Roudinie usava um lindo vestido preto de rosas bordadas no corpete, todo feito de seda negra. O decote mostrava bastante do colo pálido e bonito. Os cabelos foram escovados e postos de lado sobre um dos ombros e a cabeça estava coberta com renda preta, conferindo um ar macabro ao rosto petrificado e branco-azulado de morte. Os olhos dela permaneciam abertos, pois não conseguiram fechá-los, e os braços continuavam esticados ao longo do corpo. Clematis calçou nela luvas delicadas de mesmo tecido que o vestido, mas não seria sepultada com sapatos, pois Clematis precisava deles. Doía-lhes o coração enterrar Roudinie descalça, porém não tinham opções. 

O corpo disposto na cama mal parecia ser sua filha, era mais como uma casca de lábios roxos. Emull ajoelhou-se na cama, estendendo as mãos para tocar a mão gelada e morta dela. Aquele era o vestido que Clematis estava guardando para o casamento de Roudinie, quando acontecesse. 

Jamais a veriam se casando. Jamais a veriam ter filhos. Jamais a veriam de novo. 

...

A cova estava rasa: pouco menos de um metro de profundidade. Teria de bastar, afinal o solo congelado não possibilitava muita coisa. Roudinie fora posta em um caixão rudimentar e pesado e Emull havia precisado de ajuda de Reinhart, que mal olhava para ele. Todos foram ao sepultamento dela, mas não se demoraram; não queriam envolvimento demais com aquela família. 

A última pessoa a prestar condolências com uma mirrada flor silvestre foi Anemony, filha mais jovem do Ancião. A garota de cabelos loiros e sujos deixou a florzinha fincada na terra recém revolvida, tristonha. Era amiga de Roudinie faria dois anos, pois a garota nutria uma paixonite por Cayden e mantinha a amizade com ela para que se aproximasse do garoto. Mal se falavam desde o banimento dele e Emull não sabia se os pêsames dela eram reais ou apenas fingimento, afinal de contas Anemony era filha do líder de Vilarejo, deveria portar-se com educação. 

A capa escorregou dos ombros mirrados dela, que a puxou de volta. Emull encarou o tecido de lã rosa-coral que usava por baixo da capa, sentindo o coração pular ao reconhecer o xale de Roudinie. 

Ou seria outro, apenas semelhante? 

Anemony passou por Emull e o presenteou com um cartão que ela mesma fizera, um cartão de pêsames feito com papel grosso e flores de camomila gentilmente costuradas na frente. Ela o encarava profundamente, transbordando pelos poros um quê de alguma coisa que Emull tentava captar...

...e se foi. Anemony se juntou ao irmão e caminharam colina acima até a casa onde moravam, um pouco mais acima do meio dela. A família do Ancião era demasiado estranha. 

Clematis encarava o monte de terra escura, amargurada, de feições retorcidas em expressões de pura dor. 

— Talvez devêssemos ir. — Ela murmurou.

— Sim, vamos para casa. — Emull acariciava os braços dela, amoroso. 

— Não. 

— Não?

Emull franzia o cenho sem entender o que Clematis queria exatamente. 

— Eu quis dizer ir embora de Vilarejo.

O desespero e ódio dela passavam para Emull, atravessando o tecido grosso de lã escura do xale. Clematis sabia algo, ele podia sentir. 

— Não viu a garota usando as roupas da nossa Roudinie? — Clematis rosnou.

— Eu... Tem certeza? 

Clematis assentiu devagar, rangendo os dentes. 

...

O negrume da noite o intimidava menos; sua alma estava fragmentada após ter seu filho banido e sua filha morta. Nada mais parecia medonho, nenhuma dor era o bastante. Seu interior estava vazio e Emull podia ver que estava sendo bem pior para Clematis. 

Teria ele de ser forte por ambos. 

...

Emull podia ouvir a esposa mexendo em coisas no andar de baixo e sabia que ela estava enfiando o que fosse essencial em uma bolsa de lona grande. Alguma coisa estava terrivelmente errada e Clematis estava certa quando culpava o Ancião e sua família pela morte de Roudinie.

Emull olhava a noite muito escura pela janela, morto por dentro, fitando a Mariposa em pé no telhado da casa em frente, do outro lado da Rua Primeira. Nem mesmo a criatura fantasmagórica que retribuía seu olhar, enrolada nas próprias asas e tremulando com o vento forte o amedrontava. Perder seus filhos o transformara em algo pior do que uma laranja bichada e podre. Trincava os dentes tentando conter o ódio que se apoderava dele enquanto sustentava o olhar impassível da Mariposa. 

Se havia algo pior do que Mariposas, esse algo certamente se tratava dos habitantes de Vilarejo.

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