2. Pão de Sementes e Ossos

A visão de sua casa era privilegiada: podia ver toda a colina onde Vilarejo ficava, via cada uma das casas de madeira enegrecida postas em duas filas, uma de cada lado de um caminho marcado que chamavam de Rua Primeira, uma espécie de rua principal, via até mesmo a Orla norte depois do muro de troncos que ergueram ao redor de Vilarejo. A vila descia a colina do lado oposto ao do extenso lago congelado atrás dela. Roudinie mantinha a janela aberta, deixando entrar o ar da primeira manhã após a Noite Eterna, esvoaçando seus cabelos negríssimos e longos; não tinha o hábito de cortar os fios. Por mais que o vento ressecasse seus olhos verdes e lábios pálidos, ela não ligava, havia passado tempo demais dentro daquela casa, trancafiada nela pelo medo da Noite e para sua segurança que qualquer bocado de luz natural a atraía como um inseto hipnotizado por uma vela.

Aquele não era apenas o primeiro período diurno após a Noite Eterna, era também seu aniversário. Roudinie comemorava o primeiro dia de seus quatorze anos – idade que Cayden tinha quando foi banido. 

Ao pensar em seu irmão, seu coração enrugou como uma fruta seca, sugando toda a graça e felicidade daquele dia. Roudinie fechou as janelas e contentou-se com o uivar do vento por entre as casas. Apertou o xale rosa-coral ao redor de seu pescoço para conter o frio em sua alma; maior que o frio do clima hostil. Os sapatos de couro claro roçavam o chão a cada passo que Roudinie dava. Sentou-se na cama – que Cayden construíra para ela dois anos antes com madeira crua e ainda com casca – e tentou escutar o movimento fraco no andar de baixo da casa.

Aquele era o quarto que dividiu com seu irmão durante toda a vida. Roudinie ainda não tinha coragem de tirar os itens dele de lá, as roupas que ele não levou e os diminutos cavalos de madeira que Cayden fez para ela quando pequena. A ausência dele doía dia após dia, quando Roudinie acordava sozinha na cama gelada ou quando o último dia da semana chegava e ela não o ouvia no banheiro cortando o cabelo com uma tesoura cega.

As telhas gemiam com o peso da neve acima de sua cabeça. O telhado curvo do chalé velho deveria fazê-la escorrer para o chão, porém a calha segurava a neve que se acumulou nos quatro meses que passaram. Roudinie sabia que a neve derreteria o suficiente para pingar por dias pelas pontas das telhas, mas teriam de dar um jeito naquele dia mesmo ou o peso afundaria o telhado. 

Por fim Roudinie lavou o rosto com a água gelada que a mãe colocava para ela em uma tigela de argila cinzenta no banheiro. Deixaria os cabelos soltos naquele dia, caindo pelas costas como uma cascata de breu. Vestiu as calças de lã grossa tingida de preto e um par de blusões de mesma cor, voltando a colocar o xale ao redor dos ombros. Deixou o quarto meio iluminado pela luz diurna que entrava pelas duas janelas e desceu as escadas, parando no último degrau. Os pais já haviam saído para seus afazeres no Vilarejo – arrumar o que havia quebrado durante a Noite, conseguir mais alimento e toda a sorte de coisas que precisavam após tanto tempo presos em casa – e deixado um bolo rudemente decorado com frutinhas vermelhas secas e creme. Roudinie suspirou e bateu palmas um par de vezes, felicitando a si mesma. 

...

Aproveitaria a ausência dos habitantes da vila para levar uma fatia do bolo à Cayden, junto de um pão grande; ele certamente teria fome após a sua primeira Noite Eterna sozinho. Arrumou tudo dentro de um pote quadrado com tampa e enfiou em uma bolsa de lona. Colocou uma touca de pele de urso na cabeça, prendeu uma capa longa de couro preto nos ombros por cima do xale e calçou luvas grossas. Pendurou a bolsa no ombro direito e saiu pela porta dos fundos como um roedor sorrateiro. Em dois minutos alcançou a entrada de Vilarejo e embrenhou-se na floresta. 

A primeira manhã depois da Noite era sempre estranha e lenta, como se toda a vida ainda não tivesse voltado ao normal. As árvores congeladas estalavam com o vento rude, redemoinhos de neve se formavam aqui e ali e arbustos cobertos de neve pareciam-se com punhados de chantilly aos pés dos troncos brancos. Roudinie parecia um pequeno pedaço de carvão no meio de toda a neve; a ideia de roupas escuras era justamente destacar-se em um mundo tomado de gelo e branco. Roudinie se arrependia de não ter coberto o rosto, sentindo o vento rasgando a pele de tons cadavéricos. 

Um percurso que normalmente levaria duas horas, estendeu-se por três. A neve a prendia até as panturrilhas e o esforço de caminhar nela fazia seus pulmões gritarem de cansaço. Avistou a casa de Cayden ao longe, a madeira cinza contrastando contra a neve. Caminhou com mais vontade até ela e, respirando como um boi exausto, Roudinie parou cerca de três metros distante da casa, encarando a porta amarela que batia com o vento, pendurada em uma só dobradiça. O receio de que Cayden tivesse mudado de lugar a assombrou intensamente. Arrastou os pés que queimavam com a dura caminhada e segurou a porta com as duas mãos, abrindo-a o suficiente para olhar lá dentro. A sala continuava vazia como sempre foi, porém com uma avalanche de neve formando-se a partir da janela aberta como um rombo na parede de madeira. Roudinie entrou na casa escura e andou cautelosa por ela, procurando vestígios de Cayden. 

O colchão onde ele dormia – embaixo da escada – ainda estava lá, o travesseiro e os cobertores continuavam aos pés da cama improvisada e uma panela com resquícios de comida descansava no canto da lareira. Roudinie olhou na cozinha, abrindo o armário que ela sabia que Cayden usava como geladeira e surpreendeu-se com a quantidade de comida estocada, estranhando os sinais de abandono e as coisas dele ainda na casa. Roudinie sentia o peito apertar a cada indicativo de que Cayden sumiu. 

Estava claro que ele não havia ido embora por vontade própria. 

Saiu da casa e olhou ao redor, sentindo-se perdida. Procurava por indícios de seu irmão – vivo ou morto – e nada encontrou. Deixou a bolsa de lona cair e gritou o nome dele, andando por entre as árvores sem rumo. 

Dava a décima volta pela casa quando deu de cara com Leonid, o filho do Ancião de Vilarejo, uma espécie de líder, alguém que encabeçava a vila. O garoto era alto demais, magro demais e vazio como um tronco oco. Os olhos negros dele pareciam dois poços sem fundo e o cabelo cor de areia estava constantemente ensebado e grudento, o rosto encovado a amedrontava e Leonid estava sempre por perto, parecendo segui-la a todo canto; demasiado desagradável. Ele vestia roupas maltrapilhas e sujas, arrastava os pés meio tortos pela neve e Roudinie tinha a impressão de que ele começaria a babar a qualquer instante. Ele era uma espécie de “pau-mandado” do Ancião, o que o tornava menos tolerante para ela. 

— Leonid! M-mas que... surpresa. 

Roudinie ofegava de cansaço e desespero, desejando se livrar dele o quanto antes. Uma das mãos dele estava escondida atrás das vestes escuras e largas demais para o corpo descarnado, enquanto a outra pendia morta ao lado do tronco. A mão escondida a preocupava imensamente. 

— Eu vi você saindo. — Ele disse com uma voz arrastada e grave. 

— É! Eu... eu estava procurando lebres. 

— Com um pedaço de bolo?

Ela olhou para o pote que caiu para fora da bolsa, espalhando o bolo e o pão pela neve.

— Oras, era meu lanche da caçada. 

Leonid oscilava com o vento, entreabrindo a boca como se ponderasse algo com muita atenção.

— Por que estava chamando o banido?

— Cayden. O nome dele é Cayden. — Roudinie rosnou; odiava que o chamassem de Banido. 

Leonid pareceu intimidado com a hostilidade dela. Deu um passo para trás e baixou o olhar para seus próprios pés. Por um momento, Roudinie sentiu pena dele, mordiscando o lábio inferior enquanto pensava em desculpar-se com Leonid. 

— Eu só estava com saudades dele. — Roudinie disse em baixo tom. 

— E o pão que você deixa para ele desde a primavera? 

Aquilo a pegou de surpresa. Então Leonid sabia... 

Desde quando? 

— Não sei do que está falando. 

Roudinie deu as costas para ele e se ajoelhou na neve para pegar o pote e a bolsa, deixando a comida lá. Se Cayden voltasse, ele poderia pegar o pão; a neve o conservaria bem. 

— O Ancião sabe. 

Ela engoliu em seco, sentindo que um tijolo descia por sua garganta. Certamente seria banida quando voltasse para o Vilarejo. Se ao menos soubesse onde Cayden estava...

— Ele disse que se você aceitar ser minha noiva, ele não bane você também. 

— E se eu não aceitar? — Seu estômago revirava com a ideia de se casar com Leonid ou qualquer homem da família dele. 

— Então ele disse que eu deveria dar um jeito. 

Roudinie parou de tentar recolher o bolo numa falha tentativa de deixá-lo apresentável para Cayden e olhou por sobre o ombro. Fitou Leonid por um segundo, vendo-o com o braço erguido e um martelo alaranjado de ferrugem em sua mão, até que ele a desceu agressivamente e a atacou a primeira vez. Roudinie sentiu o impacto seguido de uma dor lancinante no topo de sua cabeça, uma dor que vinha em ondas e a cegava. Levou uma das mãos ao couro cabeludo e tocou o ponto onde o crânio afundara, apavorando-se. Leonid tremia, mas já havia começado; que terminasse o quanto antes. 

O garoto a atacou sucessivas vezes, montando o corpo para alcançar melhor a cabeça – achatada naquele momento – e, quando seu braço começou a arder com o esforço, ele parou e voltou a se levantar. 

O martelo se recusava a se soltar do crânio e quando Leonid puxava, erguia o corpo de Roudinie. Leonid soltou o martelo e Roudinie foi ao chão, de rosto enterrado na neve e sangue respingado ao redor de si, encharcando o pão à frente dela com sangue, pedaços de massa cinzenta e lascas de ossos. Os cabelos negros pareciam serpentes desprendendo-se da cabeça aberta no topo, espalhados pelo chão.  

Nervoso, Leonid torcia as mãos no tecido das roupas velhas, pensando se aquele teria sido o jeito certo. Tirou a capa dela e a vestiu, feliz pela nova vestimenta. Pensou por alguns instantes e decidiu levar toda a roupa de Roudinie, tirando peça por peça com cuidado para não as sujar mais ainda com o sangue fresco. Daria aquelas roupas para a irmã mais nova, que certamente amaria ter novas peças além das vestes esfarrapadas que usava. 

Leonid deixou o corpo nu de Roudinie para trás, sorrindo feliz com as roupas em suas mãos – a irmã iria gostar muito das roupas –, vez ou outra levando as peças até o rosto e inspirando fundo o cheiro de Roudinie.  Aquele realmente fora o jeito certo. 

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