Capítulo Três

Nova Iorque

     Já era noite quando Lucy estacionou o carro numa das ruas menos movimentadas do Brooklyn. O céu estava escurecendo o que indicava um fim de tarde ainda mais frio. Depois de dirigir por algumas horas despistando qualquer rastro dos rastreadores, ela finalmente chegou ao esconderijo. Não era nada muito aconchegante, mas servia para dormir algumas noites.

   Observando o corpo deitado sobre o banco do carona Lucy se perguntou qual o motivo de os demônios se interessarem por uma nefilim tão comum. A primeira vista não havia nada de peculiar, era apenas uma garota de aparência simples numa cidade grande.

   Ao notar o fino rastro de sangue na testa da garota ela sorriu descontente com seus próprios atos. Era uma vantagem injusta já que em média um nefilim tinha força suficiente para apagar um vampiro em minutos de combate. Não valia a pena contar vitória sobre uma novata, por uma questão de sorte não era ela desacordada no carro de uma estranha e por si só já era um alívio.

   A antiga tempestade que a assombrou mais cedo agora não passava de um pequeno chuvisco, isto facilitava levar o corpo da garota para dentro da casa. O esconderijo era apenas um prédio antigo com manchas de mofo e ferrugem em toda parte. Nada muito atrativo, mas a imagem de abandono escondia bem as atividades realizadas lá dentro. 

    Ao entrar no Hall com a garota nos braços, Lucy observou os garotos com um ar de desaprovação. O jovem Éden estava largado no sofá com os pés sobre a mesa de centro enquanto Simon e Scott partilhavam de uma barulhenta disputa na mesa de sinuca. Uma nota mental foi feita e naquele momento Lucy prometeu a si mesma se livrar daquela mesa na próxima lua cheia.

   - O que houve? - O homem ruivo surgiu diante de si com vestes tão brancas quanto a neve dos alpes suiços, perfeitamente alinhadas comparadas ao resto da equipe. Marcos tomou a garota de seus braços retirando o peso extra de Lucy e a levando para um dos sofás cinzentos. - Loba? Bruxa? Que espécime trouxe pra nós hoje?

  Marcos examinou os olhos e os cabelos, tateando a pele sobre os braços e os dedos em busca de qualquer característica sobrenatural evidente.

   - Nefilim. Pensei que sabia reconhecer um dos seus. - Os olhos dourados analisaram a garota com um pouco mais de cautela. - Achei ela no estacionamento da faculdade. Foi atacada por um rastreador.

  Retirando um estojo de agulhas do bolso Marcos deu uma atenção especial a ferida afastando a carne escurecida em busca de qualquer pedaço de matéria escura sobressalente. 

  Como um nefilim, Marcos conhecia muito bem as regras de combate de sua espécie. Elas eram poucas e bastante diretas, dentre elas a mais importante de todas é jamais entrar em contato com qualquer coisa que tenha origem nas trevas. A matéria escura provinda da energia demoníaca é letal para os seres celestiais, um mero fragmento pode matar um nefilim em minutos.

  Com uma dosagem extra de cuidado ele enfiou uma das agulhas mais fundo testando a resposta à dor da garota, caso o sangue saísse preto significava que a matéria escura não havia adentrado no sistema da garota. Se continuasse vermelho ela estaria mais espalhada no sistema do que seus talentos poderiam removê-la.

    - Já é o terceiro esta semana. - Marcos comentou atraindo atenção de Éden. - Sebastian encontrou um lobo a dois dias em Manhattan. Estava dilacerado, garganta cortada e membros decepados, uma verdadeira chacina. Ela teve sorte de ter só uma ferida.

  Retirando a agulha do músculo ele sorriu em alívio ao ver sangue escuro sair do pequeno furo.

   - Por que ele não a matou? Rastreadores nunca deixam a vítima viva. - Éden se agachou  observando o rosto da jovem de perto. Pelo seu conhecimento dos últimos ataques eles poderiam ter deixado qualquer pista no corpo, mas para o seu azar sua teoria só seria comprovada caso ela fosse um cadáver. - Tem ideia de quem é?

   Marcos se sentou ao lado da garota segurando sua mão entre as suas.

   Uma curiosidade sobre os nefilins eram seus dons especiais. Graças aos talentos recebidos dos anjos regentes de sua linhagem cada nefilim tinha uma versão menos abrangente dos poderes de seu criador. Isto criou uma variedade de talentos extraordinários e igualmente perigosos.

  Como descendente do primeiro e único filho do arcanjo Miguel, o Justo. Marcos vinha de uma longa linhagem de manipuladores da mente, também conhecidos como ladrões de memórias. Marcos podia invadir qualquer mente que não oferecesse grande resistência e armazenar qualquer informação que desejasse. Isto também se aplicava à leitura de pensamentos, o que segundo ele, costuma ser um estorvo em determinados momentos.

    - O nome dela é Alice. Tem dezoito anos. Deve estar desabrochando e sem muita informação útil sobre isso.

  O despertar de um nefilim costuma ser bem agressivo, a energia dormente é armazenada ao longo da vida até a maturidade da própria consciência. Nessa fase de suas vidas os nefilins têm explosões de poder extraordinárias que podem se prolongar por semanas ou até meses. 

  O processo consiste em um amadurecimento da mente nas sinapses enviadas pela sua energia espiritual, a fonte de qualquer poder mágico que possam vir a executar. Nem todos os nefilins têm habilidades mágicas, alguns dons consistem em aprimoramento físico ou em alguma habilidade adquirida que jamais foi usada pelo portador. 

   Alguns possuem uma velocidade extraordinária e outros uma precisão de combate de um mestre sem jamais ter treinado com armas na vida. Mas seus dons não são imprevisíveis, ao nascer numa linhagem com determinado poder ela é passada para todos os descendentes sem jamais pular gerações. 

  Tal previsibilidade ajudou a seus líderes a montar um sistema social baseado nas patentes de seus progenitores. Quanto maior o título do anjo em território celestial maior a influência de sua linhagem sobre seu povo.

    - Qual a parte ruim? - Lucy perguntou temendo pelo pior.

    - Sua energia vital é muito intensa. Isso me perturba. Nem os nefilins mais poderosos tem uma energia tão intensa quanto a dela, nem mesmo os que acabaram de despertar. 

    - E o que isso quer dizer? - Os olhos dourados de Marcos encontraram os vermelhos de Lucy com preocupação.

    - Só um descendente direto de um Anjo teria uma energia tão forte quanto essa. - Sem esperar qualquer atitude de todos na sala, Éden se pôs de pé pronto para atacar a garota, porém acabou sendo impedido por Lucy que ficou diante dela como uma barreira física.

    - Está ficando maluco? - Alertados pela confusão Scott e Simon surgiram no cômodo ao lado, imobilizando Éden antes que o mesmo atacasse um de seus comandantes.  - O que pensou que estava fazendo?

    - Cumprindo as leis. - Os olhos castanhos a encararam com desprezo. - O Conselho determinou que qualquer descendente ou ser sobrenatural que tivesse ligação com Anjos Caídos devem ser mortos imediatamente.

  Todos presentes na sala tinham consciência das leis impostas pelo Conselho durante os longos anos de rebelião. Já tinham pelo menos cinco anos que a rebelião dos anjos caídos repercutiu pelo submundo, convocando sobrenaturais das mais variadas terras sobre a bandeira de Aziel. Determinando que todo e qualquer habitante de Imadris não é mais que uma bateria mágica para a corrupção do conselho. 

  Jamais houve nenhuma prova das teorias da rebelião, mas a cada dia milhares de sobrenaturais cruzavam a fronteira com grupos rebeldes em direção às Terras Livres.  Todos convencidos de uma teoria da conspiração e apoiadores do sistema da rebelião que defendiam as leis instituídas pelo criador do submundo.

   O anjo da morte, Aziel.

  Desde a sua morte seus herdeiros, os comandantes da morte, serviam ao submundo como seus protetores. A linhagem de Aziel defende o sistema do conselho e o comanda na intenção de realizar sua maior visão. Manter todas as espécies num só lugar, num sistema fechado onde todos prosperaram em busca da paz conjunta.

  Após serem banidos da mesa dos anciões por serem uma ameaça ao sistema, os anjos têm realizado ataques a vilarejos e cidades menores na fronteira. 

  Graças a sua resposta de guerra, Jhonatan, o primeiro comandante da morte, proibiu completamente qualquer cidadão de Imadris de manter ligações com os anjos caídos. Como retaliação às crianças nefilins mortas num vilarejo ao sul da fronteira a ordem final foi decretada junto a uma recompensa.

  Todo nefilim de primeira linhagem deveria morrer seja em território do submundo ou na terra. Cada cabeça entregue ao conselho valeria uma recompensa de cinco mil krones.

    Entre os povos comuns circulava uma lenda de que um anjo vingador vinha em nome das crianças nefilins mortas no ataque e matava todos os filhos de seus assassinos. A lenda se tornou verdadeira após a batalha do lago Cassol, onde sete nefilins escondidos em território rebelde foram brutalmente assassinados durante a noite.

  Não se sabe sobre que bandeira o anjo vingador luta, mas uma certeza era clara, ele jamais perdia o seu alvo. Não importava onde se esconda.

    - Ela sobreviveu a um ataque de rastreador. Estamos a meses caçando a fonte destes ataques e a primeira chance de obter pistas que nós temos você quer destruir. Ficou louco?! - Finalmente contido os rapazes o soltaram e éden se recompôs.

  Apesar do que diziam sobre os Daemons, Lucy sabia que deveria mantê-lo na linha. A inimizade natural de daemons e nefilins remonta a séculos. O sangue demoníaco em suas veias humanas era poderoso, mas ele não seria capaz de contestar as ordens de seu mestre, mesmo que viessem através dela.

     - Olha, vocês dois estão certos. Mas não adianta brigar agora. Enquanto o Sebastian não estiver aqui temos que manter a calma e continuar com nosso trabalho. Essas são as nossas ordens. - Marcos se impõe sobre todos e ambos baixam a guarda.

     - Descobriu algo sobre o ataque? O porquê de ela estar viva? - Marcos se voltou para Lucy que parecia ainda mais desapontada com a falta de respostas.

    - O que estão fazendo com a Alice? - Ao final de toda a confusão Scott pode finalmente notar a jovem adormecida sobre o sofá. Apesar do corte de cabelo ser diferente do que lembrava ele reconheceria aquele rosto em qualquer lugar.

    - Você a conhece? - Éden perguntou com uma expressão tão surpresa quanto o resto dos integrantes do grupo.

    - Ela mora com minha mãe e meu tio na Virgínia. Crescemos juntos. Nunca mais a vi desde que... Vocês já sabem. - Scott acariciou os cabelos de Alice com um ar protetor. Eles não  se viam há mais de três anos. 

   Desde a sua transformação em lobisomem ele precisou deixar seu lar para se juntar a alcateia mais próxima, era uma vida perigosa demais para envolvê-los. Mesmo sabendo que partiria o coração de sua mãe, ele as deixou. Quando pegou o último trem naquela noite ele tinha o rosto de sua irmã Nathalie na mente, sabia que Alice iria cuidar dela. Mas também lhe doía saber que deixaria, talvez para sempre, o conforto de sua prima e melhor amiga como companhia.

  Alice jurou odiá-lo para sempre, mas para sorte dele, ela não poderia gritar muito em sono tão profundo.

    - Temos que resolver isto antes que ela acorde. - Lucy exclamou exibindo as presas, precisava se alimentar e apesar do gosto de ácido que seria o sangue dela em sua boca o cheiro era absurdamente delicioso. Cheiro de anjo.

    - Não vão encostar um dedo nela! - Scott se ergueu com os olhos amarelados pela forma de lobo, as garras ameaçando se formar em suas mãos.  - Ela não sabe de nada sobre este mundo. E se o rastreador voltar? Temos que protegê-la. Não a assassinar enquanto dorme.

  Se contendo, Lucy se afastou deixando Scott de vigia, ele tinha razão quanto a proteção dela ser uma prioridade. Nenhum dos ataques anteriores deixou sobreviventes ou tempo para resgatá-los. O rastreador não tentou matá-la. Estava a levando para algum lugar.

  Lucy caminhou até o escritório com um pesar no coração, ao observar o mapa da cidade exposto sobre a mesa todos os locais dos recentes ataques estavam expostos. Dezenove marcas negras, mortes sem motivo em total carnificina, mortos por demônios inferiores incapazes de pensar ou controlar seus próprios instintos. 

  Nenhum dos incidentes tinha uma ligação direta, exceto pela espécie do assassino, eram todos desordenados e quase impossíveis de prever. 

   No início da investigação os padrões de ataque eram semelhantes aos de um lobisomem, depois aos de um vampiro e conforme mais vítimas se amontoavam ficava cada vez mais difícil de prever.  A certeza veio na noite que Lucy e Sebastian encontraram o corpo de Karina Monteiro.

  O rastreador estava rasgando a carne do abdomen da vítima quando Sebastian entrou pela janela da cozinha. As garras longas refletiam sobre a luz das lanternas pingando o sangue escarlate sobre o chão, bastaram alguns tiros para expulsá-lo, mas a vítima não pode ser salva. 

   Pegando a caneta azul Lucy faz mais uma marca no mapa, dessa vez sobre a universidade em Nova Iorque. A grande interrogação azul foi o motivo de seu foco pelos próximos vinte minutos. As engrenagens giravam na sua cabeça formulando qualquer plano possível para mantê-la segura. 

  Ela sabia o risco de expor alguém tão jovem ao perigo que o mundo deles representava, mas até o fim do despertar era perigoso demais envolvê-la. Eles viriam em hordas, atraidos pelo seu cheiro e pouco a pouco iriam acabar com tudo. 

   Com o passar das horas todos ficaram a postos para qualquer ataque surpresa até o pôr do sol. A prioridade era retirar o alvo da cidade antes do cair da noite, é quando as criaturas ficavam mais agitadas e sem o devido pessoal para proteger o terreno a posição do grupo ficaria comprometida.

  Por isso, assim que os detalhes estavam prontos Simon tratou das feridas da garota e ajudou Marcos a se certificar de que ela não se lembraria do dia de hoje como nada além de um sonho.

  Éden se prontificou em alertar o Conselho sobre os novos dados da missão enquanto Lucy e Scott preparavam o carro para a longa viagem de volta a Atlanta.

   - Tudo pronto para partir? - Simon perguntou trazendo Alice nos braços, com delicadeza ele a colocou no banco do carona tomando o cuidado de colocar o cinto de segurança.

   - Vou levá-la de volta a Atlanta. - Scott sentou no banco do motorista preparado para partir, Simon se posicionou na janela lhe entregando um frasco de vidro com um líquido escuro.

  - Faça ela beber isso antes de chegarem. Vai garantir o efeito do feitiço a longo prazo.

   - Vai dar certo? - Simon sorriu batendo no teto do carro com um sorriso maroto.

  - Acredito que eu entenda o suficiente de poções. Agora vão.

  Após a partida Simon e Lucy observaram a estrada com um pesar, um raio de sol atravessou a fresta das árvores e tocou a pele de Lucy fazendo a morena se sobressaltar.

  Há anos ela não se preocupava em ser tocada pelo calor do sol. Desde que fora marcada pelo Conselho, Lucinda adquiriu a habilidade de se locomover à luz do dia sem o risco de virar pó. Tal reflexo diante de algo tão inofensivo a fez se questionar se não seria um tipo de mau presságio. 

   - Sabe que isto é apenas paliativo, não sabe? - Simon sussurrou sabiamente conforme adentrava os muros da casa.

   - Prefiro pensar que fizemos o certo. - Lucy o acompanhou fechando a porta principal, se vendo sozinha com o mago ela observou os olhos lilases que brilhavam de um jeito místico na escuridão.

   - O certo para a garota ou para nós?

   - Que tipo de pergunta é essa? - Lucy o encarou perguntando-se os motivos de tal questionamento.

   - O anjo vai encontrá-la.

    - E o que quer que eu faça? - Os fatos eram claros para ela, tinha que se preocupar com a ameaça que estava presente. No momento que soube o que ela era, Lucinda se questionou sobre as chances de o anjo vingador ser atraído pela preseença dela.

  As chances eram altas, mas naquele momento ela só podia pedir aos deuses por boa sorte. Apenas um milagre salvaria aquela garota das mãos do anjo.

   - Só quero ter certeza de que fizemos a coisa certa. Não quero dormir acreditando que a enviamos para a morte.

   - Apenas faça o seu trabalho. Se o Anjo chegar até nós e ele vai chegar, morreremos cumprindo nosso dever. Até lá, sugiro que fique de boca fechada.

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