Três

Eu sonhei a vida inteira com o momento em que a minha mãe chegaria para mim e me diria... " filha, eu tenho orgulho de você, você se parece tanto comigo."            Não custa sonhar, não é? Me lembro de quando completei os meus sete anos de idade e entrei em seu quarto pela primeira vez. Foi uma viagem fantástica. O cômodo parecia uma mansão dentro da nossa cobertura, se é que vocês me entendem. Tudo lá dentro era grande demais, luxuoso demais, até um simples porta retratos não tinha nada de simples. Havia fotos do casal em cada móvel daquele lugar e até na parede tinha um imenso quadro deles sorridentes e abraçados. Eles realmente se amavam de um jeito que não sobrava amor pra mim. Mas foi quando  entrei no seu closet que eu me perdi. Havia vestidos e mais vestidos de todas as cores e tipos de tecidos que se podia imaginar, com brilho, sem brilho, com alça, com mangas longas e mangas curtas... Enfim,  cada um mais deslumbrante do que o outro. Os sapatos maravilhosos  chegavam a encher os meus olhos de fascinação e de repente eu já estava passando minhas pequenas mão pelos tecidos macios, pelos couros caros dos sapatos e no minuto seguinte,  havia algumas peças espalhadas pelo chão e eu estava vestindo algumas delas, passando a sua maquiagem e usando as suas joias.            Meu Deus, diante do espelho eu me sentia espetacular. Eu era ela e aquilo me fascinou de jeito que pela primeira vez na vida, eu queria ser igualzinha a minha mãe. Tudo desandou quando a porta do quarto se abriu e minha mãe entrou nele, me encarando como se o mundo estivesse se acabando. Ela gritou muito, muito, muito alto pela babá, que chegou esbaforida no quarto e empalideceu ao me ver ali dentro com todos aqueles acessórios em cima de mim.

  ― Como pode deixar essa... essa... criatura entrar aqui?  ― Berrou, apontando para mim, sem nem ao menos apreciar o que sua filha tinha feito. Eu sei, foi a maior bagunça, mas não era isso que contava. O que eu queria que ela visse ali era a sua filha, querendo imita-la.

  ― Senhora, eu...

  ― Você é paga para ficar de olho nela Ester. Ela não deveria estar na escola agora?  ― Estrela engoliu em seco. Havia tanta raiva naquelas palavras que eu cheguei a ter medo que aquela mulher demitisse a única pessoa que me amava naquela casa.

  ― Me desculpe, senhora! Não vai voltar a acontecer. ― Estrela baixou os seus olhos.

  ― É bom que não aconteça Ester. Porque aquilo ali, vai sair do seu salário, cada centavo. ―   Rosnou.  ― Agora tire essa criatura daqui.  ―Isso sim machucou.

Foi exatamente naquele dia que eu percebi. Eu não era desejada,  não era amada e jamais seria e a pergunta saiu da minha boca de uma forma petulante e eu posso dizer até, agressiva.

  ― Porque me teve, se não queria ter filhos? Porque não me abortou?  ― As lágrimas caíram imediatamente no meu rosto. A mulher me encarou, ela parecia estarrecida.

  ―  Você está vendo tudo isso aqui?  ― Ela aponta para os quatro lados do quarto.  ― Seu avô exigiu um neto, para me entregar a herança. Uma troca de favores, querida. Se não fosse a exigência daquele velho idiota, você nem existiria e a minha felicidade seria completa.

Me lembro que Marina Belini de Alencar morreu naquela manhã.

Duas batidinhas na porta me despertam. Eu respiro fundo, me ajeito na minha cadeira e seco as lágrimas que nem havia percebido que derramei e com uma respiração audível, falo.

  ― Entre. ― A porta se abriu e o sol que iluminou o meu dia, entrou vestindo um jeans branco e um jaleco da mesma cor. ― Doutorzinho. ― Digo deixando transparecer todo o meu entusiasmo, mas ele permanece sério e para em pé diante da minha mesa.

  ― Me disseram que a senhora queria falar comigo.

  ― Senhora está no céu Heitor.  ― Falo levantando da minha cadeira e sorrateira, contorno a minha mesa, parando bem atrás do meu funcionário. Ele permanece quieto, inabalável. 

 ― Queria falar comigo?  ― Pergunta ainda com um tom sério.                                       "Eu queria mesmo era devora-lo, mas não posso. Não ainda."

  ― Sim. Tenho alguns arquivos de alguns clientes nossos. Você sabe  ― Enquanto falo, meus dedos coçam de vontade de se arrastar por suas costas largas, mesmo que fosse por cima do tecido. Heitor  se vira, limpando sua garganta. Tenho vontade de rir, mas mordo o lábio inferior de uma forma provocante e lhe lanço um olhar  pidão.

  ― Você podia ter mandado deixar tudo no meu consultório.  ― Diz firme. Dou de ombros. 

  ― E perder a chance de ver o meu melhor funcionário?  ― Ingado com tom de brincadeira. Ele arqueia as sobrancelhas sugestivamente.

  ― Hoje é o meu primeiro dia aqui Marina. Nem sabe como eu trabalho ainda. ―  Rebate. 

"Ah, mais eu queria saber fofinho. Você que não deixa." Penso e me afasto, só um pouquinho.

  ― Nem preciso ver. Eu sei que você é bom no que faz.

"Senti o duplo sentido na minha frase. Sentiram também? "

Ele revira os olhos e solta um suspiro alto.

― Aonde estão os arquivos? ― Pergunta quase sem paciência. Sorrindo amplamente eu levo as minhas mãos a sua cintura, fazendo-o girar de frente para a minha mesa e de cara já sinto a firmeza do abdômen do homem por cima do tecido.

 ― Bem aí na sua frente.  ― Sussurro provocativa perto do seu ouvido. Ele se inclina um pouco para pegar a pequena montanha de pastas de papel e a minha imaginação voa alto. Olho aquele bumbum empinado e deliberadamente deixo a minha mão escorregar pelo seu jaleco e atrevidamente seguro firme a popa da sua bunda apertada em seu jeans e a  aperto gostoso na palma da minha mão. Só que não! Uma pena! Heitor se vira para mim, segurando as pastas em suas mãos e me olha carrancudo.

  ― Mas que merda é essa Marina?  ― Pergunta baixo, porém exasperado, olhando com receio para a porta. É, acho que o meu olhar faminto deve ter me denunciado. Maliciosamente eu levo a unha comprida do meu indicador a boca e a seguro entre os dentes, deixando o meu sorriso de satisfação surgir.

  ― Só estava verificando o material. Agora pode ir trabalhar, Heitor. ― Pisco um olho e contorno a minha mesa, voltando para a minha cadeira. Eu me sento lá, cruzo as pernas e Heitor me dá as costas saindo da sala em seguida. Assim que a porta se fecha, eu solto uma risada  gostosa. Não, gostosa mesmo é aquela bunda redonda, que imagino ser dura, bem na palma da minha mão.

O que gente? Só imaginação, eu hein, não me julguem.

― Aqui Marina, esses foram os atendimentos de hoje.  ―  Lua diz entrando na minha sala, segurando uma prancheta.  Afasto a lista de medicamentos que o doutorzinho me exigiu e começo a ler as duas folhas de papel ofício preenchida com alguns nomes mimosos dos animais atendidos na loja.

Aí vocês podem estar se perguntando, como a Marina partiu de direito para dona de uma loja de pets? E eu lhes respondo... Não sei. Acho que o fato de eu querer tanto ter um animalzinho de estimação quando criança e de ouvir um NÃO bem redondo e rasgado da minha madrasta malvada... Ok, exagerei, da megera da minha mãe.

Bom, é a única explicação plausível pra isso no momento. O fato é que eu me sinto mais a vontade perto dos bichinhos, embora eu não entenda porra nenhuma do assunto. Mas sou muito boa com administração, então não sou tão inútil assim.

  ― Nossa, pelo jeito vocês tiveram um dia cheio.  ― Comento verificando a lista. Lua sorri satisfeita.

  ― Sim. Isso é bom, faz o tempo passar mais rápido.

  ―  E falando em tempo...

  ―  Nem vem Marina, não vou falar nada sobre ontem a noite.  ― Ela diz erguendo as mãos.

  ―  Nem se foi bom?  ― Insisto. Ela sorri. Mas é um sorriso tão grande, que já diz tudo.

  ― Bom foi pouco. Carlos quase enlouqueceu e eu quase infarto com o orgasmo que eu tive e... isso é tudo o que vai saber.  ― Ela corta a conversa e me relaxo na minha cadeira de couro, girando a caneta entre os meus dedos.

  ― Pelo menos eu sei que você foi comida da maneira que merecia ser comida. ― Falo e ela gargalha alto. O som da sua risada chega a fazer um eco dentro da sala.

  ― Pelo amor de Deus, Marina. Você devia medir as suas palavras.  ― Ela rosna achando graça do meu comentário.

 ― Pra quê? ― Dou de ombros.  ― Sou uma mulher livre para falar o que penso.  ― Ela meneia a cabeça, fazendo um não lento pra mim. Lua se levanta e pensa em ir até a porta, mas antes que saia, eu a chamo de volta.

  ― O que vai fazer esse final de semana? ― Ela olha para trás, encontrando os meus olhos. ― Nada. Carlos estará viajando.  ― Abro um sorriso largo.            ― Quer sair pra curtir comigo? Sou nova aqui e ainda não conheço ninguém.  ― Ela dá de ombros.

  ― Tudo bem. Tenho um lugar que você vai gostar.  ― Ela pisca um olho e sai, fechando a porta. Suspiro e volto a trabalhar.

Trabalhar em uma loja de pets é gostoso. Não tem estresse e eu fico perto desses serzinhos sempre que posso. Confesso que em alguns momentos de crise de ansiedade, ou quando o meu passado vem me assombrar, eu fico aqui, bem perto deles e nós conversamos praticamente a noite toda, até que o cansaço me vence e eu adormeço em um cantinho no chão.

Os animais são os melhores ouvintes que o ser humano pode ter e hoje é um dia desses.

Estou na merda! A saudade dos meus amigos, da Estrela, a única mãe que eu conheço de coração e do meu país está me consumindo por dentro. Eu sei que eu escolhi afastá-los e escolhi ficar distante, que é uma maneira de me afastar do meu passado, mas porra, precisa doer tanto assim? Me afasto da minha mesa e vou até uma janela do meu pequeno escritório e olho através dela o Rick montar na sua moto. O céu já se encontra escuro e eu imagino que apenas eu estou aqui agora. Respiro fundo e resolvo sair da minha caverna.

O pequeno corredor que tem alguns quadros de bichinhos completamente espertos, fazendo pose para a câmera, agora está vazio. A recepção que tem um belo  balcão redondo, com tons de amarelo e laranja e algumas patinhas vermelhas espalhadas em seu comprimento, também está completamente vazio e já não tem mais o barulho costumeiro do banho ou dos animais dentro da sala de banho e tosa.  Lentamente me aproximo da porta e levo a minha mão a maçaneta, girando-a devagarinho e a abrindo em seguida, eu entro no cômodo, que é um dos maiores que eu tenho aqui na loja, encontrando alguns filhotes de  cachorro enjaulados. Assim que me ver, eles abanam seus rabinhos e parecem abrir um sorriso para mim. Sorrio também, mas em seguida sinto as lágrimas pinicarem os meus olhos. Me lembro da primeira vez que eu fui em um mercado livre com a Estrela. Eu nunca havia me sentido tão livre e tão feliz com tão pouca coisa.  A ajudei com as compras e no final dela, encontramos um homem encostado em um canto de parede, tomando conta de uma caixa de papelão, que continha alguns filhotes lá dentro. Na frente da caixa estava escrito, "filhotes para adoção."  Eu enlouqueci. Queria muito ter um daqueles, ele seria o meu irmãozinho, o meu amiguinho, a minha companhia naquele imenso casarão. Estrela concordou comigo, desde que eu tivesse a responsabilidade de amá-lo,  alimentá-lo, de levá-lo para passear e que não o deixasse fazer bagunça na casa. Cara, eu era a criança mais feliz do mundo naquela manhã, até chegar a parte da tarde e o senhor Duran, o meu pai, descobrir a existência do animal.  Foi um Deus nos acuda. Ele berrava para um lado, eu chorava para o outro e a Estrela por me defender quase foi para o olho da rua. Eu tive que escolher entre aquele bichinho e a minha mãe de coração. Entenderam o meu dilema? Agora eu posso ter todos os animais que eu quiser, nem que seja por questão de horas e ninguém pode tirar isso de mim. Tiro um dos filhotes de dentro da gaiola,  o ponho em meu colo e me acomodo no canto da parede. Esse será o meu ouvinte dessa noite.

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