Capítulo 2

Mais uma vez a vida é uma cadela comigo, nunca vou me achar digna de ser feliz, pois ela me arranca tudo de bom que aparece em minha vida e mais uma vez me arrasta pela lama, aquela mesma lama fedida daquele barraco, não sei quantas rasteiras vou ter que levar para desistir de vez. Incontáveis, esses são os números de rasteiras que essa puta barata me deu. Quantas vezes tenho que me lembrar de suas últimas palavras para não voltar para a escuridão, me agarro a elas sempre que fraquejo, sempre que minhas pernas travam e meus pés tentam parar, quando eu só quero ficar em minha cama e nunca mais sair, eu me lembro.

“Você é forte, Sil, nunca vi nada e nem ninguém mais forte que você, estarei lá por você aonde quer que esteja, levante-se e olhe sempre para a frente.“

— Serei forte e Sil, aguentarei o máximo que puder, por vocês, meus filhos e pelo John, mas principalmente por você que me mostrou o quão forte podemos ser, não perca o brilho sorria, por mim, não se perca em sua dor, por seu pai, seu irmão que ainda é tão novo e precisa de ti.

Ela lutou por três anos, três anos de incontáveis idas ao hospital do câncer, incontáveis quimioterapias, tentativas frustradas de transplantes de medula, três anos vendo-a definhar, perder os lindos cabelos, o peso e o seu brilho, três malditos anos lutando contra algo que no fim a venceu, derrubou e por fim a tirou de mim.

“Não perca o foco Sil, continue cuidando do seu irmão, você pode fazer isso por mim? Cuide também do seu pai, ele é maravilhoso! Não se esqueça de sorrir por mim...” 

— Não me sinto forte agora mãe... Não sou forte, nunca fui, covardia não pode ser confundida com força — falo ao acordar de um sonho com ela.

Como sorrir? Para uma vida que tudo que eu recebo de bom trata de logo me arrancar? Ninguém verá meu sorriso, ninguém verá alegria em mim, além do Daniel que perdeu sua mãe e também sofre por sua falta, meu pai... Esse só sabe trabalhar, também perdeu o brilho, a vontade de viver, naquele dia não perdi apenas uma mãe, perdi uma amiga, mas percebo que estou perdendo também um pai. Já se faz um ano que ela se foi e a cada canto dessa casa tem lembranças suas, de momentos felizes ou momentos em que ela buscou trazer um sorriso nem que fosse mínimo aos meus lábios.

É tarde de sexta-feira eu e Dan acabamos de chegar da escola, estou no meu último ano escolar e ele em seu quinto ano, é raro seus sorrisos, acho que minha tristeza só aumenta pela tristeza dele, subimos e guardamos nossos materiais escolares, ele não sobe as escadas correndo como antes, seus ombros encurvado mostram que ele não está feliz com o horário do almoço, esse é o horário mais doloroso para todos nós, pois é o horário que ela vinha almoçar em casa, às vezes escuto o som da porta se fechando e as chaves sendo colocadas no aparador, chego a levantar para ir ver, mas a realidade bate e desisto, desço para almoçar e Nice não diz absolutamente nada ao ver minha expressão fechada, ela já se acostumou, eu sempre fui calada, mas estou muito mais taciturna que antes, não ofereço ajuda, sempre que chego e vejo que a pia tem alguma louça suja eu lavo, e ela não diz nada, acho que tem medo da minha reação.

Passa alguns minutos e ouço coisas se quebrando no quarto do Dan, corro escada acima com o coração acelerado e o que vejo transforma minha alma quebrada em caquinhos pela milionésima vez, o Dan joga seus brinquedos preferidos, seu notebook no chão, e empurra sua estante de brinquedos e livros a derruba, entro no quarto desvio dos objetos, os porta-retratos de vidro quebrados e o abraço, ele esperneia e tenta me ferir, mas sou mais forte e o seguro, então ele chora e se agarra a mim.

— Shiiii... Shiiii...— o abraço forte e choro junto a ele que se acalma aos poucos, cansado.

— Estou esquecendo ela Sil... Estou esquecendo seu rosto...— ele volta a chorar.

— Até o papai está morrendo Sil... Não quero perder o papai também...— Meu coração partido se quebra pela milionésima vez e se junta para consolar o meu irmãozinho do coração.

Estamos sentados no chão do seu quarto, junto todas as minhas forças e me levanto com ele que dorme cansado de chorar, não suporto vê-lo assim, ele que por tantas vezes tentou tirar um sorriso meu, agora precisa que eu o faça sorrir, não me sinto pronta ainda, mas preciso ficar, preciso mudar, por ele, por mim, e também pelo meu pai.

Preciso me reconstruir, para erguê-los, preciso jogar minhas dores para o canto mais escuro da minha alma para tentar amenizar as dores deles, vou sorrir mesmo que minha alma chore e sangre. Acabo dormindo em sua cama abraçada a ele e acordo com um carinho em meu rosto, abro os olhos e vejo as lágrimas nos olhos amorosos do meu pai, não vejo maldade neles, só a dor e a tristeza de ter perdido seu grande amor.

Dan ainda dorme agarrado a mim, John faz sinal para que eu o siga e sai do quarto, eu o acompanho, ele entra no escritório, eu entro logo em seguida, confio nele sei que seu coração é bom, fecho a porta e o encontro sentado atrás de sua mesa, ele parece tão cansado, mais velho e com olheiras, entendo sobre morte em vida já estive lá, mesmo aos dezenove anos sei como é se sentir assim.

Olho para a janela incapaz de me ver refletida em seu olhar que se tornaram poços profundos de dor.

— Sei que não tenho sido um bom pai... Tenho estado ausente...

Dou um sorriso amargo, não o culpo.

— Eu gostaria de estar ausente...

Ele concorda com a cabeça.

— Nice me ligou... Vim correndo, mas cheguei tarde... — ele suspira.

— O senhor não chegou tarde, ainda dá tempo, e é bom que seja rápido, ele sente a falta dela, sentimos a falta dela, mas precisamos nos reerguer, senão por ela, que seja por ele.

Ele disfarça uma lágrima, tentando parecer forte.

— Está difícil... Sil. — Ele olha pela janela.

— Parece que ela vai chegar a qualquer momento nos abraçar e dizer que somos as pessoas mais importantes do mundo. — Pela primeira vez meu sorriso sai verdadeiro.

— E éramos... — Pelo menos eu fui amada por uma mãe verdadeira.

— Às vezes esqueço e faço o percurso que fazia para buscá-la na clínica e a dor é tão grande quando eu não a encontro me esperando que me falta ar.

— Eu sei um pouco como é essa dor, e eu nunca vou me esquecer do dia em que ela me contou como me encontrou, por que foi nesse dia que eu descobri o que era ser amada.

Me perco nas lembranças.

" Estávamos acampando na mata do outro lado da comunidade quando vimos duas mulheres descerem de um antigo carro meio enferrujado e um homem mal encarado, graças a Deus ele não nos viu, eles abriram um cava rasa e jogaram o corpo de uma criança, seu corpo, dentro e jogaram algumas pás de terra." 

" Eu sei, ela pensou que havia me matado."

Foi minha resposta.

" Então quando eles foram embora não pensamos duas vezes em verificar o que havia acontecido com aquela criança, e quando a vimos nos apaixonamos por você, era uma menina magrinha, com marcas de espancamento por todo corpo, me perdoe querida mas foi você quem pediu."

" Eu sei, ela sabia ser cruel, não apenas com o fio..."— Meu corpo inteiro tremeu em repulsa.

" A senhora me salvou duas vezes, ela ia me vender, como a mãe da Bruna a vendeu para um americano endinheirado, ele sempre comprava meninas de algumas mães usuárias desesperadas por dinheiro."

Ela fez uma careta indignada.

— Vamos nos mudar daqui… — Sou arrancada dos meus devaneios com a declaração. — Comprei uma casa um pouco mais afastada da cidade, vamos nos refazer, o Dan precisa de nós.

Isso encheu-me de esperança, escuto a porta ser aberta e Dan entra com os olhos vermelhos de lágrimas.

— Pensei que você tinha ido embora também Sil...— me diz triste e eu o abraço.

— Eu nunca vou embora Dan. — prometo sabendo que promessas nem sempre são cumpridas.

— Filho... — nosso pai exclama e nos abraça, eu sinto nesse abraço o abraço dela e isso me conforta.

**********

Uma semana depois estamos entrando em uma casa grande numa rua arborizada, com casinha na árvore, balanço e até uma piscina.

Nessas duas semanas o Dan pareceu mais feliz, voltou a acordar cedo e me olhar dormindo. 

Nosso pai está mais leve e parece que está saindo com alguém, tenho quase certeza que é do trabalho.

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