Capítulo Cinco: O subterfúgio

Capítulo Cinco

O subterfúgio

Cavalgamos de Castelo Alado para dentro da floresta da maneira mais rápida que conseguimos, tentando não chamar muita atenção para os nossos suprimentos e nossas armas.

Lorena ficou para trás, já que Princesa e Eniark eram mais rápidos. Corremos até adentrarmos o suficiente na floresta e só então Kieran diminuiu o trote de Eniark, já olhando para trás para ver por onde Lorena encontrava-se. Com um suspiro resignado, revirei os olhos e dei-lhe um tapa na cabeça.

— Ei! – reclamou. – Por que você me bateu?

Estava zangada pela forma abobalhada com que Kieran olhava para o caminho esperando Lorena aparecer.

— Porque você é um idiota!

Kieran estava acariciando a área onde o havia estapeado, com um olhar magoado, mas tinha merecido. Ele estava querendo ser idiota com uma garota que não se interessava nem pelo seu gênero, quanto mais por ele.

No fundo, confesso que me sentia traída. E franzi a testa para mim mesma, ao perceber isso.

— O que foi que eu fiz? – perguntou, magoado.

Dei por mim, percebendo que estava magoada que Lorena tivesse se esforçado para ter minha amizade, só para então demonstrar que não era bem isso que queria. Ela me cativou, quis mostrar que ficaria do meu lado e, então, parecia que minha mãe estava certa o tempo todo: só queria estar comigo para ser minha primeira opção, se algum dia eu quisesse uma companheira e, com isso, subir de status.

E o que Kieran tinha feito? Sabia o que tinha acontecido e continuava agindo normalmente com ela, quase como um cachorrinho de olhinhos pedintes. E parecia não estar fazendo nada para mudar seus sentimentos.

— Não seja legal com ela! – ralhei com ele. – Ela não merece isso!

Ele olhou-me, magoado, mas concordou, entendendo o meu pedido.

Eu estava contrariada em ter sua companhia para essa viagem, mas se era para Kieran estar comigo, era bom que Lorena também estivesse. De uma forma ou de outra, protegeria Kieran de algo ruim. Ao menos fisicamente.

— Desculpe – pediu. – É... força do hábito.

Balancei a cabeça, rindo. Homens eram idiotas quando gostavam de alguém.

— Mude isso – pedi. – Aproveite e veja se conhece uma elfinha legal pra você – abriu a boca para falar alguma coisa. – Por favor. Não comece. Só não fique todo besta com ela, tá? Ela realmente não merece isso.

Devo tê-lo magoado com a minha sinceridade, mas não me importei. Quanto mais duras minhas palavras fossem, menos sofrimento Kieran teria em longo prazo. E só para obrigá-lo a se decidir sobre o que deveria fazer, sacudi as rédeas de Princesa, fazendo-a trotar mais rápido.

Foi com um sorriso que identifiquei Kieran ao meu lado. Olhei para ele, que estava ostentando uma carranca. Gargalhei.

— O que foi? – perguntou-me.

— Nada, Kie – disse, rindo. – Devem ser os meus nervos.

Naquele momento, identificamos o trote do cavalo de Lorena se aproximando. Ela estava bem mais rápida que nós para nos alcançar e seu cavalo parecia quase morto quando puxou as rédeas para acompanhar o nosso trote mais lento.

— Temos um problema – disse, parecendo urgente.

Kieran e eu paramos para olhá-la. Estava fazendo um meio circulo atrás de nós, parecendo tentar escutar os barulhos da floresta.

— Qual o problema? – perguntei, antes que Kieran o fizesse.

Ela continuou naquela vigília, até se dar por satisfeita e me encarar.

— Estamos sendo seguidos.

Princesa relinchou baixinho, parecendo entender o que nós estávamos conversando. Bateu os pés na terra, mostrando que queria correr. Acariciei seu dorso, acalmando-a.

— O que nós devemos fazer? – Kieran perguntou.

Como esperado, Lorena tinha um plano.

— Acho que devemos nos separar – Lorena sugeriu. Eu achava a ideia péssima, sempre que um grupo se separava, todos morriam. Ao menos em filmes de terror. – Kieran devia cavalgar mais pra perto das duas fadas que estão nos seguindo, servir de isca. E eu posso encontrar um esconderijo e proteger a princesa.

Arqueei minhas sobrancelhas, na mais feição de ceticismo que eu conseguia. Via aquilo como uma tentativa dela de estar sozinha comigo, não em me proteger.

— Proteger a princesa? – ironizei.

— Sim – Lorena respondeu, ciente da minha incredulidade. – Minha prioridade nessa missão é proteger a princesa.

Virei-me para ela, na minha melhor pose de governante, um pouco do que minhas aulas com minha mãe haviam me dado de conhecimento.

— Sua prioridade na missão é o que eu achar que deve ser – exigi. Ela chegou a mostrar uma feição confusa, pela minha hostilidade. – E o que eu acho é que você deveria dar meia volta para Castelo Alado, mas como se recusa, sua prioridade é a proteção de Kieran, que também não devia estar aqui. – Kieran abriu a boca para reclamar, mas olhei-o e ele se calou. – Se alguém vai servir de isca, esse alguém serei eu. O que você acha disso, Kie?

Como o esperado, respondeu a mesma coisa que eu, quando ele foi sugerido:

— Nem a pau.

Com um sorriso de que não haveria discussões, continuei:

— E o que você acha de se dividir?

Ele franziu a testa, tentando entender onde queria chegar, mas estava apenas me divertindo com a incredulidade que via em Lorena.

— Péssima ideia. Nunca dá certo.

— Isso aí – concordei. – Até porque eu tenho uma ideia melhor.

Cinco minutos depois, estava colocando fogo em um grupo de gravetos, fingindo que estávamos ali acampando, não fugindo. Kieran não estava convencido pela funcionalidade, mas isso era só o começo do meu plano.

Lorena estava percorrendo o redor da clareira, tentando descobrir por onde elas estavam nos vigiando agora.

— Kie, você consegue pegar umas frutas pra gente? – pedi.

Kieran concordou, contente em ajudar com algo. Podia dizer que ele não estava muito confortável com a nossa viagem, mas não seria convencido de que deveria voltar, portanto eu nem tentava.

Quando percebi que havia sumido pelas árvores, aproximei-me de Lorena. Ao perceber que estava próxima demais, Lorena se afastou. Revirei os olhos e pude vê-la arregalar os dela quando eu apoiei-me em seu ombro.

— Sem discussões – disse em seu ouvido. – Preciso que você volte e dê-lhes uma desculpa. Tente lhes dar uma pista errada e, depois disso, volte até nós – afastei-me dela e pude ver em seus olhos que ela não estava feliz com sua missão, mas sabia que não iria questionar em voz alta, sabendo porque eu lhe havia sussurrado. E também sabia que não se arriscaria a falar em meu ouvido. Sorri, vitoriosa. – Você não pode pegar algo para comermos, Lorena? – perguntei-lhe, apenas para o caso de ter alguém nos vigiando por perto.

Encarou-me, enquanto eu dava um passo para trás. Tinha um bocado de raiva, frustação e ainda um pouco que mostrava que ela ainda estava tentando me entender.

— Claro. – Disse-me, porém.

Mesmo totalmente contrariada, vi-a subir em seu cavalo, o arco em uma mão e a rédea na outra. Lançou um último olhar resignado em minha direção e sumiu pelo caminho de onde viemos, por onde acreditava que encontraria quem nos seguia.

Kieran surgiu momentos depois, os braços cheios de azuetes e mais algumas espécies de frutas que eu não conhecia, mas já havia visto nas mesas comuns no café da manhã. Ele lançou um olhar ao redor, parado bem no começo da clareira. Pude vê-lo tentar entender o que estava acontecendo.

Devia ser uma cena engraçada, eu parada sozinha, no meio da clareira, minhas mãos unidas no meu quadril, apenas encarando meu plano maléfico e como ele estava prestes a dar muito certo.

— Onde está Lorena? – perguntou-me.

Olhei-o e, com um arquear de sobrancelhas, pude ver que havia entendido que aquilo fazia parte do meu plano.

— Foi caçar – respondi.

Kieran disfarçou a curiosidade e caminhou até seu cavalo com as frutas. Entendera que não comeríamos ali.

— Ah – falou, jogando todas as frutas na bolsa que havia amarrado à cela.

Foi no momento seguinte, e no mesmo segundo, que montamos em nossos cavalos. Não foi planejado, mas nos entendíamos assim.

— O quanto você se sente confortável em usar a terra? – perguntei-lhe.

Sabia que o conforto de Kieran era muito maior que o meu. Ela me respondia, sim, mas desde o acontecimento da planta carnívora, eu havia entendido que não eramos melhores amigas.

— Um bocado. – Disse-me.

Com um sorriso esperto, controlando Princesa, continuei:

— O suficiente para esconder os nossos rastros?

Ele se assustou com a ideia, mas depois pareceu entender. Concordou avidamente.

Trocamos sorrisos e começamos a correr. Não me preocupei com a magia, mas chamei a terra algumas vezes e pedi que respondesse Kieran, apenas para dar-lhe um pouco mais de energia, caso fosse necessário.

Olhei para trás, algumas vezes e admirei-me ao ver a terra esconder as pegadas de nossos cavalos e os galhos que quebravam-se voltando ao seu lugar.

Corremos rápido demais. Tanto Kieran quanto eu tínhamos cortes em nossos rostos e pescoços, desprotegidos na corrida. Duas horas nela e decidimos parar em no lago das lilases e avaliar o estrago.

Eu tinha um talho no supercílio que estava sangrando um bocado. Dois na bochecha direita. Lavei-os e não me preocupei em tentar curá-los com o fogo. Coisas pequenas, assim, podiam curar-se ao seu próprio caminho.

— Lorena ainda virá nos encontrar? – Kieran perguntou.

Ele estava lavando seus próprios machucados, um no pescoço e um na testa, e não me encarou, fazendo a pergunta. Suspirei, chateada.

— Sim – disse-lhe. – Se ela conseguir.

Esperava que  não encontrasse nossos rastros, já que haviam sido encobertos, mas Lorena sabia o caminho que estávamos tomando, então não surpreendi-me ao vê-la chegar ao lago depois de algum tempo. A hora do almoço já havia se ido e nós decidimos, por ideia de Kieran, comer por ali. Sabia que só esperava que Lorena nos alcançasse, como o fez. Ela desmontou de seu cavalo e sentou-se entre eu e Kieran, pegando um montante de frutas para comer.

— Mandei-as para Estâmia – disse. – São duas, mas elas estão pensando em chamar reforços. Parece que, infelizmente, foi onde o Líder Tharlion disse que iria.

Meneei a cabeça. Reforços era ruim, mas indo para o lado errado, talvez não interferisse.

— O que você lhes disse? – perguntei.

Estava mastigando e demorou um pouco para responder, engolindo toda a fruta, acredito que com sementes e tudo.

— Disse-lhes que saímos para caçar – respondeu. – Que, depois de um tempo, vocês me enganaram e dispararam na frente. E perdi o rastro, mas que pude identificar que estavam indo na direção de Estâmia – pegou mais algumas frutas para comer e continuou. – Disse que tentei segui-los, mas não consegui. Sugeri que elas deixassem eu ajudar a procurar vocês, estava disposta a levá-las pelo caminho completamente errado, mas elas pediram que eu retornasse à Castelo Alado. Pedir reforços. Acredito que em algum momento, perceberão que não fiz isso.

Kieran e eu rimos, eu um pouco envergonhada por tê-lo feito, o que até surpreendeu Lorena.

— Bom – Kieran disse. – Uma pena que elas não tenham deixado você ajudá-las a nos procurar.

— Esta aí uma verdade – concordei. – Se elas fossem mais espertas, poderiam ter nos achado. Seguindo você, talvez.

Lorena pareceu se preocupar com a possibilidade por alguns segundos, mas, se estivesse sendo seguida, já teria percebido, com seus instintos muito mais apurados que os meus ou os de Kieran.

— Não o fizeram – afirmou, por fim.

— Sim – concordei. – Por isso que digo que elas não são tão espertas.

A brincadeira aliviou um pouco a tensão que havia entre nós três e a viagem se seguiu sem muitos problemas, tirando algumas pequenas tiradas um pouco irônicas entre Lorena e eu.

Atravessamos todo o território de Rosa Velada durante a tarde. Foi um dia cansativo e sem muitas surpresas. Não vimos uma sequer ninfa durante o trajeto, o que estranhei. Era uma das espécies que eu tinha curiosidade de conhecer, porque as imaginava tão diferentes de nós...

— Por que não vemos ninfas? – perguntei a Kieran.

Kieran olhou ao redor, quase como se estivesse se perguntando a mesma coisa. Depois suspirou, parecendo aliviado.

— Ninfas são sensíveis e não querem ser vistas ou notadas – respondeu. – O que é bom, porque nós também não – ri baixinhos. – Também não teremos problemas nos faunos. Vivem todos na cidade e só saem de lá uma ou duas vezes por ano... Pra tentar convencer alguma ninfa do quanto são ótimos reprodutores.

Nós rimos e tive a impressão que ouvira uma quarta risada juntando-se a nós. Kieran levantou o dedo, como se quisesse que eu prestasse atenção, mas essa foi a única espécie de contato que tivemos com uma ninfa.

Pegamos o caminho do rio ao meio da tarde e, pouco antes do sol se pôr, chegamos em um pequeno declínio de terreno, onde encontramos uma caverna, atrás de uma pequena cascata. A entrada se abria um pouco além da queda d’água, mas imaginei que quando o fluxo fosse maior, ela ficasse totalmente escondida. Não houve nenhuma discussão sobre parar ou não, todos nós tomamos o caminho da caverna sem nem pestanejar.

Se nós estávamos cansados e famintos, nossos cavalos estavam muito mais. Foi com muita boa vontade que eles nos deixaram à entrada da caverna e voltaram um pouco para beber água. Deixamos um bocado de frutas separadas em um canto para que pudessem comer quando voltássemos.

Lorena recolheu alguns gravetos secos no entorno da margem do rio, que se seguia revoltoso em direção ao mar. Eu nunca havia pensado muito sobre ele, sabia que passava por trás do castelo e essa era toda a informação que tinha. Agora, porém, recordava-me de tê-lo visto cruzar toda Lammertia, com diversos ramos passando em cada província. E todos eles vinham de um determinado ponto. Aquele, descrito no livro. A nascente das montanhas da transição.

A lembrança do que me esperava fez com que sentisse-me um pouco desconfortável, então tentei me distrair com alguma coisa. Fiquei contente ao ver Lorena entrar na caverna, os braços cheios de gravetos, tão contente em encontrar distração que sorri-lhe. ela pareceu arisca, estranhando meu comportamento.

— Peguei tudo que consegui – ela despejou os gravetos, uma quantidade bem considerável, no círculo de pedra que Kieran tinha criado antes de sair para tentar convencer os cavalos a entrar na caverna e comer.

Engatinhei do ponto onde havia me encolhido até o circulo de pedras e os gravetos.

Queime – pedi.

E, no segundo seguinte, as chamas começaram a lamber os gravetos. Lorena pareceu bastante desconfortável. Olhei-a e senti que estava com medo do meu poder, mas nada lhe disse.

Tharlion dissera que eu deveria ter medo. Dissera que, se não me cuidasse, o fogo poderia me consumir ou me governar. Que tudo o que deveria aprender era ser mais forte e mais poderosa que o fogo, mostrar-lhe que merecia seu respeito, então ele me obedeceria sempre que eu quisesse e não lutaria contra mim. O fogo me responderia, se quisesse queimar algo, mas se me descontrolasse e o fizesse por raiva ou qualquer outro sentimento, não me acharia digna e lutaria contra mim.

Também fui alertada que poucos elfos tinham nascido com o dom claro do fogo. A maioria conseguia utilizar, como Kieran, para coisas pequenas, mas muito poucos o usavam como Tharlion e eu. Ele deixou no ar que éramos os únicos, atualmente, que conseguiam. Algo me fazia crer que os do fogo foram os que mais sofreram na grande guerra dos etorns.

Kieran entrou na caverna com as rédeas de seu cavalo e o de Lorena nas mãos. Levantei o olhar das chamas para ele.

— Princesa se recusa a entrar – avisou, parecendo cansado. – Conversei com ela, mas parece gostar demais do rio.

Lorena resignou-se e foi à entrada da caverna, talvez checar Princesa. Fiquei feliz que a noite tivesse caído para que pudéssemos nos esconder um pouco melhor e ter descanso.

— Não podemos deixa-la lá fora – Lorena disse. – Ela é branca, muito visível e facilmente reconhecida. Já devem ter dezenas de fadas à nossa procura agora.

Era uma lógica inegável. Olhei novamente para o céu, estrelado e límpido. Fazia um bom tempo que não via nuvens e não me lembrava de ter visto, algum dia, chover de verdade. Respingos eram comuns, mas chuva? Mal me recordava do barulho.

— Princesa – chamei. – Venha comer.

Cinco segundos depois, Princesa trotou alegremente para dentro da caverna e foi direto para a pequena pilha de frutas. Lorena, mais tranquila, foi até a fogueira e começou a espetar as caças que havia recolhido durante nossa viagem. Kieran bufou.

— Era fácil assim? – perguntou-me.

Não me dei o trabalho de responder, minha cabeça longe, maquinando.

— Kieran... O que você acha da gente tentar dificultar a procura pela gente? – questionei, pensando que seria melhor começar bem devagar para não assustá-lo.

Kieran sorriu e parecia bastante disposto a fazer o que fosse necessário, mas estava preocupada. Ele nunca tivera a necessidade de usar seus poderes em larga escala e, se eu que já o havia feito não sabia exatamente quais eram os meus limites, tinha medo que Kieran não conseguisse se controlar. Depois que os acessei, tudo estava muito mais complicado. Eu queria usá-los o tempo todo e sabia que não era possível.

Mas parecia ser necessário agora.

— O que você está pensando? – perguntou, seu sorriso dizendo-me o quão ansioso estava.

Sorri e levantei-me e caminhei até a entrada da caverna. Kieran me acompanhou sem pestanejar.

— Você sabe que tem sempre um elemento que se sobressai? – indaguei. – Quando a gente o usa, parece que ele é o mais forte? – Kieran concordou com a cabeça. – Tenho a ligeira impressão que nós dois podemos ter dois elementos, um dos elfos e um das fadas.

Não tinha mais a ligeira impressão, tinha certeza. Só queria ir devagar para que entendesse o que eu havia aprendido sozinha. Sua resposta, porém, surpreendeu-me.

— Eu sei.

Sorri mais ainda, orgulhosa, pegando em sua mão. Já nos preparando a ligação que talvez fosse necessária para o que queria. Não havia muito de técnica, era só chamar e esperar pela destruição, entretanto, estava disposta ao risco.

— E tem sempre um desses dois que se sobressai. Mesmo que ambos sejam fortes, um é mais.

Kieran concordou com a cabeça, mais uma vez.

— O seu é o fogo – afirmou. Concordei. – Eu, às vezes, acho que o meu é a terra, mas... – meneou a cabeça e seu olhar foi à cascata. – Quando eu posso usar a água... Ela parece tão mais...

— Você? – perguntei. Ele concordou e então pude ver a ligação. Kieran era tão sutil, carinhoso, tranquilo... Em alguns momentos, podia se revoltar, mas na maior parte do tempo, só estava ali, tomando o curso que haviam lhe dado sem questionar. Ele era como um rio. Já eu... Sorri e balancei a cabeça ao perceber a minha ligação com o fogo. – O que você acha de tentarmos uma coisa bem grande agora? E você poderá ver o quanto que a água obedece você... Porque pretendo usar o ar para ajudar.

Ele meneou a cabeça, tentando entender o que eu queria. Olhou para a água, como se avaliasse a situação.

— O que você pretende?

Respirei fundo e soltei.

— Chuva – soprei. – Não nuvens, não precisa. Só peça para a água do rio subir e cair como chuva e veja se isso acontece.

Atrás de nós, o barulho de Lorena afiando um dos gravetos para espetar o coelho parou.

— Isso é impossível – resmungou. – Ninguém nunca controlou a água assim

Olhei para em sua direção e ela olhava para nós dois de boca aberta. Neguei com a cabeça e peguei Kieran pelos ombros, olhando em seus olhos assustados.

— Nunca existiu ninguém como nós antes – lembrei-a, antes de me voltar para Kieran – Tente só um pouco. Eu vou te ajudar.

Ele concordou com a cabeça e soltei-o, postando-me ao seu lado, com uma das mãos em seus ombros.

— Ok – murmurou. Eu não fiz nada, não queria ajudá-lo, na verdade. Precisava ver até onde ele poderia ir sozinho. – água, você pode subir só um pouquinho e chover aqui?

Foi impressionante ver um montante de água da cachoeira se soltar, em gotas e fazer um pequeno caminho no ar para, então chover... em Kieran.

— Desculpe – tive que murmurar, depois de uma crise de risadas ao vê-lo encharcado pela pequena poça de água que precipitou de sua cabeça. – Desculpe, Kie. – repeti, novamente, ao ver sua cara de decepção. – Vamos tentar novamente? Mas... Chover de verdade, em um grande raio de proteção ao redor da gente, até amanhã de manhã?

Kieran concordou com a cabeça. Sentei-me no chão e respirei bem fundo. Kieran me acompanhou.

— Loucos – ouvi Lorena dizer. – Geniais, porém loucos.

Sorri levemente, fechando os olhos

— Vento – sussurrei. Uma rajada dele passou por nós quase instantaneamente, trazendo algumas gotículas da cachoeira. – Vento, você me ajudou muito na última viagem, mas preciso de algo um pouco mais. – continuei a sentir o vento lambendo meus cabelos. – Preciso que você seja o mais forte que conseguir nessa região, próxima a nós e evite que alguém possa nos encontrar com facilidade, enquanto estivermos aqui.

Assim que terminei de falar, senti a falta de ar usual e abri os olhos, respirando com dificuldade. Do lado de fora, podia ver as árvores balançando com violência e a água parecia correr com mais rapidez. Tudo o vento. Pisquei demoradamente, agradecendo a ajuda.

Senti fome e soube que eu precisava de um pouco de comida para ficar bem, devido à descarga mágica que soltara.

— Que legal! – Kieran exclamou.

Ele estava encarando o vento lá fora com algum brilho de curiosidade no olhar. Sorri-lhe levemente e segurei sua mão.

— Sua vez – sugeri.

Eu tinha medo que Kieran não fosse capaz por ainda não alcançar a maioridade, e sabia que isso o deixaria bastante decepcionado. Então, sussurrei a água, pedi que ela identificasse Kieran como seu e o ajudasse no que queria.

— Ok – murmurou. – Água, eu pedi-lhe que chovesse aqui agora há pouco. Gostaria que chovesse na área que o vento ventar, chovesse forte, para nos proteger.

Meu coração meio parou de bater no segundo em que nada aconteceu, mas o alivio logo veio quando a água começou a cair forte. Nem havíamos visto como havia subido, mas começou a chover muito. E, como o esperado, a cachoeira, com mais água, fechou a entrada na caverna.

Olhei para Kieran e achei que ele estava meio tonto e pálido. Encostei minha mão de leve em seu braço, tomando-lhe a atenção.

— Você está bem? – perguntei.

Ele demorou um pouco para conseguir concentração o suficiente para concordar com a cabeça.

— Só cansado – sussurrou.

Sorri-lhe.

— Ótimo – Lorena murmurou. – Vocês dois, malucos, venham comer – chamou-nos. O coelho estava assando e não demoraria muito para ficar pronto. – Estamos umas três horas de cavalgada de Agulha Erudita, então vamos nos alimentar, dormir bem e partir com o sol.

Concordamos com a cabeça e atacamos frutas, esfomeados pela magia.

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