Capítulo Quatro: A trindade

Capítulo Quatro

A trindade

Tinha marcado com Kieran, uma hora a frente, no lago. Ele achou que era mais seguro que visse Guilherme mais cedo e, depois, com a sua companhia, andássemos um pouco pelas árvores. Isso me dava uma margem de tempo para partir sem ele.

De todas as recomendações que meu pai fizera, aquela era a única que não estava tentada a seguir.

A carta para minha mãe estava em cima da minha cama, com uma linda história de como estava indo para um retiro élfico, no intuito de aprender a controlar o fogo. Tudo balela. Enquanto pegava minha mochila, pronta para sair, sentia o fogo correndo pelo meu sangue, sedento dessa nova aventura.

E agora era tudo uma questão de cuidado.

Lil estava ali, novamente com uma trouxinha e sabia que dessa vez não poderia dizer que ela estava fora, já que achava que teria conseguido me salvar de quebrar a minha perna. Felizmente, tinha mais uma carta na manga.

— Onde você pensa que está indo? – perguntei-lhe.

Ela colocou sua trouxinha nas costas e levantou voo, voando pelo quarto, para fora da janela e de volta. Pousou na cabeceira e bateu continência, dizendo que estava pronta para partir. Achei fofíssimo, mas não podia deixá-la ir. Se achava que era perigoso para Kieran, para Lil era um atestado de óbito.

— Você sabe para onde eu estou indo, Lil? – indaguei. Ela fez um círculo com as mãos, que eu logo identifiquei que era a visão dela da Terra. – Não, Lil. Estou indo para Alvorada. Nos elfos – ela pareceu decepcionada, sentou-se e cruzou os braços, zangada. – É, lá tem um monte de elfos que não são tão legais quando Kieran e o meu pai. Você não vai mesmo gostar. Volto logo – dei-lhe um tchau breve, para que ela acreditasse na história que eu estava contando para minha mãe na carta, mas ela não estava satisfeita, voou até mim e puxou-me pelo cabelo com toda a força que tinha, para que eu ficasse. – Ai, Lil! Isso doeu! – reclamei, passando a mão na área da raiz dos fios que foram puxados. – Não posso ficar, sua boba. Se eu pudesse ficava. Mas não se preocupe, vou ter ajuda, ok? Nos vemos logo.

Ela continuava não muito feliz, voou pelo quarto todo e conseguiu derrubar algumas coisas em sua revolta, enquanto eu terminava de me arrumar. Não me importei, embora estivesse preocupada.

Quando saí de meu quarto, o elfo já havia desaparecido. Como meu pai havia dito antes, era necessário isso. Nenhum elfo poderia se envolver na minha fuga ou acabaria se transformando em uma guerra. Roubando a princesa de seu próprio castelo? Quão criminoso isso soaria para as outras espécies? Não queria me transformar em uma espécie de Helena de Tróia.

— Vou caçar – avisei à azul que estava de guarda em frente da minha porta.

E foi bom que minha mãe tivesse me visitado antes porque ela parecia já ter sido informada disso, pela forma com que concordou com a cabeça e não me seguiu.

Caminhei pelo castelo sem esconder meu bom humor. Dei boa tarde para todas as fadas que passaram por mim e elas me olharam estranhando. Tudo bem que eu não costumava fazer aquilo, mas era sempre educada quando falavam comigo.

Saí para os jardins e declarei que aquele era um ótimo dia para fugir. Estava com o céu limpo, nenhum sinal de chuva ou de qualquer coisa que poderia me atrapalhar. Àquela hora, no dia seguinte, já estaria em Agulha Erudita, a caminho do feitiço que me permitiria ver Guilherme.

Caminhei até o celeiro, iria cavalgar com Princesa pela primeira vez desde que fora sequestrada. Somente isso já teria me deixado de bom humor, mas tudo que estava junto... Quase podia explodir de felicidade.

Sentia medo, sim. Minha última incursão na floresta ainda me provocava pesadelos, apesar da proteção do lenço amarelo que estava amarrado em meu pescoço.

Tinha tudo para dar certo, exceto o fato de encontrar Kieran no estábulo quando entrei.

Ele me olhou, os olhos acusadores e parecendo se sentir extremamente esperto ao encarar minha feição congelada e confusa ao vê-lo. Sorriu e voltou a selar seu cavalo, como se não houvesse sido interrompido.

— Achou que conseguiria sair sem que eu notasse, huh? – questionou-me. Não parecia ofendido nem surpreso. Estava, na verdade, se divertindo às minhas custas.

Suspirei, rendida, fechando a porta do estábulo atrás de mim. A luz do ambiente caíra consideravelmente, mas caminhei até ele sem dificuldade.

— Tinha esperanças que sim – confessei. – Não queria que você se metesse nessa confusão toda. É minha bagunça, só vai te prejudicar.

Ele apertou a sela um pouco demais, fazendo seu cavalo relinchar e bater com os cascos no chão. Afrouxou-a imediatamente, acariciando-o.

— Desculpe, Eniark – sussurrou. Tharlion havia lhe dado aquele cavalo marrom em sua visita e era a primeira vez que eu o vira. Kieran virou-se para mim, parecendo totalmente decidido. – Sua bagunça, pode ser. Você é cabeça-dura, não admite que precisa de ajuda, sai por aí sozinha e quase morre. E agora espera que eu simplesmente assista você fugir de novo, não fazendo nada? Tá maluca, Michelle?

Abandonei minha mochila no chão e comecei os preparativos para selar Princesa, que parecia muito animada com a expectativa. Mesmo assim, estava olhando-o de rabo de olho, enquanto tentava ganhar tempo.

— Não, Kie, não estou maluca. Apenas não quero que você se meta nisso. Se alguma coisa ruim acontecer com você por minha causa...

Falei demais. No segundo seguinte, Kieran estava no meu lado, mas ao invés de nos deixarmos ficar sentimentais, apenas começou a me ajudar a preparar Princesa mais rapidamente.

— Nada vai acontecer porque, dessa vez, estaremos juntos – prometeu, assim que terminamos. – São ordens do nosso pai.

A maneira com que disse aquela frase me soou engraçada, como se estivesse em uma missão oficial, mas ele não reparou no meu divertimento enquanto colocava a comida ensacada nas bolsas sob a cela de Princesa.

— Como se você realmente se importasse com ordens – brinquei.

Ele ficou sério instantaneamente. Antes mesmo que abrisse a boca, soube que eu tinha brincado com algo que eu não deveria.

— Eu nunca o desobedeci ou questionei – informou-me. – Mesmo quando estive sozinho na floresta, sem saber direito o que estava ali, eu sabia que ele não teria me mandado para lá se não fosse importante –fiquei envergonhada e virei o meu rosto. Kieran pegou-me pelo braço e sacudiu-me até que eu o olhasse. – Eu sempre fiz tudo que ele me mandou e as coisas deram certo até agora. Não vou começar a desobedecer. Em algo que ganha, nada se muda.

Concordei com a cabeça, mas ri da forma com que ele usara a expressão, tão repetida na Terra.

— Em time que está ganhando não se mexe – repeti, vendo-o franzir a testa. – É como é dito na Terra.

Kieran abanou o ar e foi terminar de equipar seu cavalo. Percebi que havia separado seu arco e uma aljava, tentando encontrar a maneira mais confortável de se carregar aquilo.

— Não importa – falou, por fim. – O importante é que se ele nos disse para ficar juntos, é isso que faremos.

Percebi que minha batalha estava perdida e me conformei com a ideia de que não havia nada a ser feito. O jeito era torcer para nada acontecer.

— Certo – concordei. – Como você soube que eu estava partindo?

Kieran bateu em seu bolso, enquanto amarrava a aljava em seu cavalo. Assim que ela pareceu segura o suficiente, ele pôs a mão no bolso e tirou um pedaço de papel muito parecido com o que eu carregava em meus bolsos.

Tharlion. Fechei os olhos, frustrada que eu não tivesse pensado que ele faria isso.

— Recebi uma carta, como você – debochou. – Mas a minha vinha com instruções para ser entregue antes da sua – riu de minha expressão. – Nós dois sabíamos que você tentaria partir sem mim.

Revirei os olhos e resolvi que talvez fosse melhor imitar Kieran e levar meu arco, embora não fosse muito.

— É bom você não me atrapalhar, então – resmunguei, em tom de brincadeira, enquanto tentava amarrar minha aljava da mesma maneira que ele.

Kieran riu de minhas tentativas frustradas, veio até mim e arrancou a aljava de minha mão, para amarrá-lo ele mesmo.

— Acho mais fácil você me atrapalhar – brincou.

E com a situação em que nos encontrávamos, ele arrumando a quase destruição que havia feito com a minha aljava, ficou difícil contrariar. Minha solução foi dar-lhe um empurrão que apenas o fez rir.

Ele voltou a tentar terminar de arrumar suas coisas e eu estava um pano grosso pela área do ombro onde a corda do arco iria bater. Nunca havia feito isso, mas já vira algumas fadas fazendo, quando saíam para caçar um pouco mais distantes da cidade. Quando virei-me, vi Kieran fazendo a mesma coisa, tão perdido quanto eu.

Estava quase tudo pronto e parei por alguns segundos para ver se não estava esquecendo nada. Distraída, segurei o lenço dourado em meu pescoço e tentei me lembrar de tudo. Comida, agasalho, Kieran, proteção. Tudo parecia estar em seu lugar.Não percebi Kieran se aproximando. Ele pôs a mão sobre o meu ombro e soltou uma longa gargalhada ao ver o susto que eu tinha tomado.

— Não faça mais isso – ralhei com ele.

Balançou a cabeça, ainda rindo.

— Desculpe – meneou a cabeça. – Acho que está tudo pronto... Você... Não está com medo?

Olhei-o, achando que, mesmo que estivesse, não deveria dizer, mas percebi que ele não estava falando da viagem e sim do feitiço.

Toda a verdade era que estava tentando não pensar na magia. Eu tinha lido alguns trechos bastante descritivos de uma página que Tharlion deixara aberta, propositalmente para me fazer desistir.

O que havia entendido, em suma, era que a necessário fazer uma pequena bacia com uma pedra retirada direto da montanha da transição. Essa bacia tinha que ser enfeitiçada de uma forma a ferver e apimentar qualquer coisa que se pusesse ali dentro. Então, deveria retirar a água da fonte certa da nascente do Rio Lammy. Não havia nenhuma anotação de qual nascente seria, apenas um adendo que a fada que estivesse presidindo a magia deveria dizer, porque ela saberia através da água. E, depois disso, com o fogo, o elfo deveria arrancar e queimar as asas da banida, queimando também as raízes, ou seja, as costas, para que demorassem a crescer novamente. E a água da nascente, no recipiente de ferver e apimentar, deveria ser jogada contra as raízes das asas. Dependendo da fonte de onde a água tivesse sido retirada, o banimento poderia ser perpétuo.

Não me recordo quantas expressões de horror e quantas vezes levei minha mão aos lábios enquanto lia. Assustou-me, as descrições mais detalhadas de alguns casos em que as fadas não haviam resistido a dor, em casos de banimentos perpétuos. Pensei em desistir, mas sabia que jamais poderia ser a rainha que aquele povo precisava enquanto tivesse aquele fantasma de Guilherme em minha vida.

Se eu tinha medo? Estava tremendo.

— Muito – confessei. – Mas se você está tentando me fazer desistir, nem comece. Não vai acontecer.

Ele franziu a testa para mim e levou a mão ao meu ombro.

— Não estava tentando – suspirou. – Só queria entender o que está passando na sua cabeça. O que está fazendo você querer uma coisa que... Bom, ninguém desejaria nem para o seu pior inimigo.

Ri e balancei a cabeça para ele. Desvencilhei-me e acabei por sentar em um banquinho que usava para escovar Princesa as vezes. Kieran continuava me encarando, mas meu pensamento estava longe.

Estava pensando em Guilherme. Em como ele me apoiava quando eu ficava nervosa ou triste. Em como a gente costumava viver um ao redor do outro, como se ele fosse o meu sol e eu o dele.

Rapidamente, meu pensamento se foi para coisas que nós ainda não tínhamos realizado, mas que tanto sonhávamos. Nosso próprio apartamento, que, se não estivesse em Lammertia, já teria se realizado. Nosso casamento, que nós queríamos que fosse apenas no papel, sem uma festa muito grande ou cerimônias religiosas.

E o que vinha a seguir: bebês. Por mais que ainda me achasse nova, era inevitável não pensar que os teria. Lindos bebês de cabelos cacheados, com olhos cor-de-mel. Queria que fossem simplesmente iguais a Guilherme.

Era doloroso pensar que aquilo nunca seria meu, que agora pertenceria à outra garota. Alguém que o fizesse feliz, não me importava quem. E por mais que o que estava disposta a fazer fosse cruel com a minha natureza, tinha certeza que não doeria tanto quando ter que lhe dizer adeus.

E certamente não doeria tanto quanto nunca mais vislumbrar o que nós poderíamos ter sido.

Era a necessidade de um pouco mais de momentos antes de finalmente desistir. De viver aquilo como se fossem os últimos dias. De deixar-me despedir. De tentar fazer aqueles meses valerem a pena pelo resto da minha linda vida de fada.

E sabia que qualquer coisa valeria.

— Quando você amar alguém de verdade, Kie – elucidei-o. – Vai entender as coisas que estamos dispostos a fazer por só mais um momento de felicidade.

E peguei-me comparando aquela situação a minha mãe. Como ela, mesmo em seu egoísmo, anulara-se para tentar melhorar o mundo, para prepará-lo para Kieran e eu, na esperança que no final de tudo, meu pai a perdoasse e ela pudesse viver com ele novamente.

Enquanto encarava Kieran corar, ligeiramente envergonhado com o que eu lhe havia dito, pensei que talvez, depois, pudesse ter uma conversa a favor dela com meu pai. Não me custaria nada.

— Desculpe – Kieran disse.

Balancei a cabeça e só então percebi que deveria tê-lo magoado pelo caso recente de Lorena. Levantei-me e abracei-o.

— Desculpe – repeti. – Só estou nervosa com tudo isso. – Soltei o abraço para olhá-lo. – Não quis chatear você.

Ele concordou com a cabeça e encarou-me, parecendo meio chateado, mas compreensivo.

— Tudo bem – disse. – Acho que você está até legal pra alguém que está tão pirada.

E lá estavam as piadas de volta. Revirei os olhos e dei-lhe língua.

— Vamos parar de brincadeira e partir logo?

Kieran bateu continência e foi até seu cavalo. Montei em Princesa, mas nenhum de nós dois chegou até a porta do estábulo. Paramos no corredor, nos entreolhando, porque ele estava sendo aberto sozinho.

Demorou um segundo para nos acostumarmos com a luz, mas não foi difícil reconhecer a pele morena, as asas azuis e o cabelo cacheado de Lorena.

— Aonde vocês dois pensam que vão?

Kieran me encarou e não mudei minha posição, firme e ereta, montada em Princesa. Era óbvio que, embora tentasse esconder, Lorena estava magoada, mas só então percebi que era por não a incluirmos mais em nossos planos, dividindo-os, em muitas das vezes, com Siena.

— Não lhe interessa – respondi, com toda a autoridade que consegui reunir.

Mas não contava com ainda queda de Kieran por ela, que respondeu estupidamente, mesmo sendo a mentira:

— Caçar.

Bufei e revirei os olhos. Princesa estava impaciente para correr, sentia a minha pressa.

— Caçar? – riu. – Com suprimentos?

Ela entrou no estábulo, fechando a porta atrás de si. Estava com a aljava e o arco, parecendo ela mesma estar saindo para caçar, mas caminhou até o cavalo que usava.

— O que você está fazendo? – perguntei-lhe.

Ela encarou-me, os olhos negros espertos, dirigindo-se a mim pela primeira vez desde o nosso pequeno problema no lago. Por um segundo, deixei-me desmontar da postura e a encarei, levemente corada, só para então cerrar os olhos ao vê-la começar a selar seu cavalo.

— O que eu estou fazendo é óbvio – respondeu. – O que vocês estão fazendo também é. Só espero que tenham mantimentos suficientes para mim porque, sinceramente, dois elfos perdidos na floresta?

Ela nos chamara de elfos e isso fez-me duvidar ainda mais de suas intenções. Só então percebi seu tom de brincadeira. Mesmo assim, não podia permitir que se juntasse a nós. Isso não estava no plano.

— Não é necessário que vá – repliquei.

Bati com as rédeas para que Princesa trotasse e Kieran me seguiu. Estávamos alcançando a porta do estábulo, quando congelamos.

— Não há escolha, princesa – ameaçou, já montando em seu cavalo. – Ou eu vou com vocês ou a rainha saberá agora mesmo que partiram. Acredito que isso destruirá sua partida, não?

Encarei Kieran por alguns segundos, perguntando o que deveríamos fazer, apenas pelo olhar. Ele balançou a cabeça afirmativamente, quase imperceptivelmente.

— Certo – concordei, contrariada. – Então vamos antes que mais alguém indesejado apareça para partir conosco.

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