Capítulo Dois: A paternidade

Capítulo Dois

A paternidade

Quando Kieran acordou, eu já estava acordada por horas. Como esperado e sabia que seria por algum tempo, tivera outro pesadelo e não conseguira voltar a dormir. Então deixei-me ficar acordada e vigiar o sonho dele e de Lil, que acordara alguns minutos antes e voara através da janela, mostrando que não pretendia ficar trancada comigo durante a minha recuperação.

— Bom dia – Kieran sorriu-me, só para então notar minhas olheiras. – Não dormiu?

Achei que não deveria contar-lhe sobre meus pesadelos, então tentei amenizar a situação com uma brincadeira.

— Você já se ouviu dormindo? – indaguei.

Kieran levantou-se rapidamente, sentando-se e parecendo muito ofendido quando me apontou e soltou um:

— Eu não ronco!

Gargalhei.

— Eu não disse que roncava. Você que se entregou!

— Mentira! – disse. – Eu não ronco nada!

Isso só me fez rir mais ainda. Ele não roncava mesmo, mas estava feliz de ter dito isso apenas pela cena. Porém, pareceu tão ofendido que fiquei com pena e desmenti.

— Ok, você não ronca – concordei. Ele suspirou aliviado, quase como se não tivesse certeza mesmo se roncava ou não. Fingi não achar graça. – Eu é que não estou tendo sonhos muito bons.

Kieran encarou-me cerrando os olhos e parecendo ter um pouco de dificuldade para entender, talvez por ter acordado tão cedo. Alguns segundos de reflexão depois, ele fez uma expressão de entendimento e pareceu zangado.

— Você não está conseguindo dormir? – indagou. Sorri da sua lerdeza e concordei com a cabeça. – Eu posso pegar alguma coisa nas amarelas para dormir. Tenho certeza que tem algo lá para isso.

Neguei com a cabeça. Embora fosse tentador, o que queria era não sonhar. Para dormir, mesmo, não havia dificuldades. Eu que estivera me negando por medo.

— Não precisa – informei-o. – Vai passar logo. Deve ser só incomodo da perna. – menti.

Kieran notou que eu não estava falando a verdade, mas a menção da minha perna o fez se distrair.

— Falando nisso... – engatinhou até onde pudesse alcançar onde ela jazia, morta, porque eu não arriscava a movê-la, e imobilizada. – Vamos tentar mais um pouco antes do café.

Concordei com a cabeça e Kieran levou as mãos até minha perna, com um pouco menos de cuidado que ontem. Não sentia muita melhora, mas o toque bruto e despreocupado de Kieran não incomodou tanto quanto deveria.

O calor foi mais forte que o anterior, mas continuei sem sentir melhota, apenas o adormecimento do incômodo. Talvez não sentisse nada por algumas horas e isso era o suficiente para me deixar feliz.

— Bem melhor, Kie – agradeci, embora não fosse de todo verdade.

Kieran sorriu, contente em ajudar. Levantou-se, sem esperar meu pedido e foi até a cozinha. Eu sabia que não deveria haver comida por ali porque eu acordara cedo e não viera ninguém trazendo.

Ele mexeu nos armários, fuçou em todo o canto, como esperado, nada encontrou. Parou no meio da cozinha e encarou ao redor, embicado. Isso me fez rir.

— Ué – exclamou. – Cadê a comida?

Kieran devia pensar que a comida aparecia magicamente, como eu mesma pensei no começo. Entretanto, depois de pensar sobre e o meu sono leve ter me dado essa impressão, sabia que vinha alguém trazer comida antes que acordássemos ou enquanto estávamos estudando. O estoque estava sempre sendo refeito e fresco. Como estivera desaparecida por dois dias... E comido um coelho inteiro sozinha, imaginei que a comida estaria faltando.

Como se respondendo a pergunta de Kieran, bateram na porta. Tinha certeza que não batiam, mas devem ter escutado a voz de Kieran resmungando sobre não poder se alimentar.

— Entre – pedi.

Rozane, a fada rosa das cozinhas, entrou levitando duas fartas bandejas de café da manhã. Meus olhos devem ter brilhado porque ela riu antes mesmo que Kieran viesse correndo e se jogasse na cama, puxando a própria bandeja para si.

Enquanto enfiava todo o meu pedaço de bolo na boca de uma vez só, ela foi até a cozinha checar o que Kieran andara resmungando antes dela entrar.

— Pobrezinhos, estão sem comida aqui – murmurou. – Vou m****r trazer algo mais tarde. Desculpem o atraso, crianças, está tendo algum acontecimento na Torre da Quebra que precisou de alguns cuidados meus.

Kieran pareceu nem ouvir o que estava falando.

Ai, meu Deus! Isso é igual o de casa! – parecia muito animado. Encarei-o, esperando uma resposta que veio cheia de pedaços de bolinho voadores. – Os bolinhos que eu comia quando era criança! Como você conseguiu isso?

Rozane riu, feliz com o cumprimento. Ela adorava Kieran e como ele sempre elogiava a comida. Acredito que era uma das poucas que apreciava a doçura dele.

— Se eu soubesse que o senhor gostava tanto, já teria feito alguns – informou com um sorriso simpático.

Eu não estava prestando muito bem atenção nos bolinhos, embora tivesse mordido um para saber o porquê Kieran estava tão maravilhado. Era gostoso, sim, porém minha cabeça estava matutando outra coisa.

— O que está acontecendo na Torre da Quebra, Roza? – perguntei-lhe.

Era engraçado chamá-la pelo apelido porque, bom, suas asas eram rosas. Acredito que não tinha a mesma graça para Kieran, que falava élfico, mas sempre sorria.

— Ah, criança... – pareceu sem jeito. – É uma visita para sua mãe. Acredito que ela virá aqui para apresentar-lhe – terminou a inspeção na minha cozinha e caminhou até a porta. – Eu vou indo, tenho um monte de coisas para fazer. Só vim aqui trazer seus cafés pessoalmente porque queria ver como você estava, princesa. – sorriu pra mim. – Vou dar uma caprichada na sua comida para você melhor rápido, tá?

Mandou-me um beijo no ar e saiu, enquanto imaginava que era mais fácil ficar gorda que melhorar rápido.

Fiz uma careta que deve ter parecido engraçada porque eu não estava nem um pouco feliz em ter que receber visitas de gente que não, mas Kieran não pareceu nem pensar nisso, concentrado demais em sua própria comida.

Acabei que não comi tanto quanto na noite anterior e só belisquei um pouco de cada variedade de comida para provar. Todas pareciam deliciosas e remeter a algum momento da infância de Kieran, mas estava receosa de perguntar-lhe o que significavam seus acessos de felicidade e levar mais pedaços de bolinho na cara.

Finalmente dei-me por satisfeita e dei um jeito de colocar a bandeja ao meu lado, a frente da bandeja de Kieran.

— Posso comer seus bolinhos? – questionou.

Eu estava, na verdade, pensando em deixá-los para comer mais tarde, mas não pude dizer-lhe não.

Assim que Kieran trocou sua bandeja, quase vazia, pela minha ainda cheia de variedades, a porta abriu-se. Por não terem batido antes de entrar, já sabia que era minha mãe antes mesmo de levantar meus olhos para ela.

— Olá – cumprimentou-nos, parecendo realmente feliz em nos ver nos empanturrando de comida. – Como vamos hoje? – questionou-me.

Cansada, com olheiras, porém bem alimentada. Melhor que ontem, obviamente, e estupendamente melhor que o dia anterior.

— Um dia melhor que o outro – respondi. Arrisquei-lhe um sorriso, que foi correspondido muito rapidamente.

Estava estranhando essa nova atitude presente e preocupada dela e imaginei que houvesse algo por trás. Mesmo assim, estava me deixando levar, mesmo que com um pé atrás.

— Que bom – suspirou. – Eu... Tenho uma visita para vocês.

Antes mesmo que ela terminar de falar, eu o vi entrando. Alto, forte, loiro, os olhos dourados brilhando em um fogo que reconhecia como felicidade, orgulho, saudade...

Meu coração meio que parou de bater ao perceber o quanto de Kieran estava nele. Entendi, então, porque todos os quitudes de infância de Kieran estavam em nosso desjejum.

Era óbvio desde o primeiro momento e me recusara a ver até que meus olhos cruzaram com os dele.

Meu pai estava visitando Castelo Alado.

Assim que fiz minha descoberta, deixei-me olhar para Kieran, numa esperança de esconder minha totalmente confusa reação e espelhar a dele. Ri ao encontrá-lo de boca aberta, ainda em uma meia mordida em um bolinho, até que ele o largou.

— Pai! – exclamou. E correu até ele.

Naquele segundo, esqueci que minha perna estava quebrada e juro que tentei fazer a mesma coisa, o que resultou em mim caindo de volta na cama em um gemido de dor e frustração.

Enquanto Kieran e Tharlion matavam suas próprias saudades e eu os encarava, admirada, tive a visão discreta de Kathelynn saindo discretamente do meu quarto. Achei que parecia envergonhada, como se não se sentisse parte daquela família que nós deveríamos ser.

Assim que Tharlion beijou a cabeça de Kieran, voltou a me encarar por cima da cabeça do meu irmão. Sorriu-me e eu sorri-lhe, desejando ir até ele, mas me sentindo totalmente incapaz. Sussurrou alguma coisa no ouvido de Kieran, que sorriu e se afastou, animado. Ele correu de volta a cama e sentou-se ao meu lado em um pulo, balançando a cama de forma que me fez fazer uma careta de dor.

— Desculpe! – soltou, assim que lembrou que ainda estava com uma perna quebrada.

Tharlion andou até mim e ajoelhou ao meu lado, sem tirar os olhos dos meus. Ele sorriu e passou as costas da mão pelo meu rosto. Segurei a emoção que queria transbordar em lágrimas e rolei na cama até que pudesse passar os braços por ele em um abraço totalmente torto que ele correspondeu sem nem pensar duas vezes.

Não demorou muito para que Kieran se juntasse a nós, fazendo com que eu risse do seu sem jeito de se jogar em cima de mim, tentando não me machucar, com muito pouco de sucesso.

— Sempre quis fazer isso – Tharlion disse e eu peguei-me admirando sua voz forte, porém suave dele. – Abraçar vocês dois.

Afundei meu rosto ainda mais em seu ombro, desejando conseguir não chorar porque sabia que seria vergonhoso. Eu sempre fora tão desejosa de carinho fraternal e depositara muitas esperanças que meu pai fizesse esse tipo. Meu coração estava acelerado em ser finalmente acariciado e adorado da forma que sempre desejei que fosse.

Ele beijou-me no lado da minha cabeça de leve e sussurrou algo que soou como finalmente você, minha garota, que embargou minha garganta. Quando soltei nosso abraço, sequei uma lágrima disfarçadamente, mas que não passou desapercebida pelos olhos dourados de meu pai.

— Pai... – Kieran chamou. Tharlion finalmente parou de me encarar para olhar Kieran em seu chamado. – A perna da Michie... O senhor não consegue melhorar ela? Eu tentei e ela tem mentido pra mim dizendo que melhorou, mas eu sei que não...

A minha boca escancarou na hora. Ele estava me acusando de ser mentirosa – embora estivesse mesmo mentindo para não decepcioná-lo.

— Melhorou sim! – retruquei. – Você que não viu como ela estava antes de colocarem essa coisa em mim – apontei para as talas que impediam que eu me movimentasse.

Tharlion sorriu para a nossa discussão infantil e não se abalou. Ele voltou a me encarar e, nos olhos dele, soube que o fogo era dele, respondia a ele melhor que a qualquer pessoa que já havia pisado naquela terra. Brilhava nele a cada segundo. E eu reconhecia porque, agora, havia provado do poder do fogo.

— O que você arrumou nessa perna, Michelle? – perguntou-me.

Sorri, ligeiramente abalada por ele ter-me chamado pelo nome, porém Kieran não deixou-me responder.

— Ela quebrou – entregou-me. – Jogou-se em uma pedra, pulando da água nela.

Fechei os olhos, envergonhada e balancei a cabeça, envergonhada.

— Você realmente faz isso soar mais ridículo do que foi, Kie – resmunguei. Porém Kieran estava animado demais para se importar com o que eu pudesse falar.

Tharlion, sem pestanejar, retirou as talas e pude ver o aspecto arroxeado que estava ao redor da área onde havia quebrado. Kieran soltou uma exclamação assombrada, mas Tharlion apenas disse.

— Meio rústica, essa técnica das fadas – avaliou a mistura de ervas que estava madeira e, alguns restos, em minha perna. – Deve funcionar, mas iria demorar umas duas semanas, no mínimo, antes que você conseguisse caminhar. E teria que ficar mais um mês até que pudesse tirar os suportes – ele deixou a madeira cair no chão. – Sorte não ser necessário.

Ele levou as duas mãos, de forma até meio bruta, a área roxa, mas antes que pudesse sentir dor, senti o alivio do fogo. Senti queimar, como quando eu mesma o convocava e entendi que ele estava chamando o meu fogo para me curar, com o seu próprio porque, instantaneamente, senti que estava ficando mais forte.

De alguma maneira estranha, senti-me recarregando, ao menos do que se tratava o fogo. Senti minha perna queimar muito, mas ao invés de sentir dor, estava sentindo-me ótima.

Quando passou, Kieran parecia olhar-nos admirado. Já havia identificado que ele tinha muito mais afinidade com terra que fogo, dos elfos. Assim como eu parecia sentir que o ar me respondia com mais facilidade que a água, das fadas, embora ambos gostassem de me atender. Kieran era terra e água, meu oposto. Ele me complementava e, agora, mais que nunca, com seu olhar, tentava entender o que se passava comigo e nosso pai, ambos do fogo.

Porque, além da cura, o fogo era sabedoria. E, nos olhos de meu pai, sabia que ele estava sabendo de algo que não lhe agradou muito.

— Kieran – chamou. – Sua irmã e eu temos um bocado pra conversar.

Kieran não pestanejou. Concordou com a cabeça e com um sorriso quase contido, levantou-se e saiu do quarto.

O fogo ainda estava forte em minhas veias e, a maneira com que ele percorria em mim me dizia que só havia uma coisa que meu pai poderia saber que o faria me olhar daquela forma.

Tharlion deu a volta na cama e ocupou o lugar que Kieran deixara vazio enquanto avaliava se podia movimentar minha perna.

— Não foi intencional – apressei-me em contar, antes mesmo que me perguntasse.

Ajeitei-me, dobrando minha perna e descobrindo que, sim, ainda me incomodava um pouco, mas parecia mais como uma dor muscular que com um osso quebrado.

Tharlion passou os dedos pelo meu cabelo, suspirando. Sabia que ele estava apreciando minha companhia tal como estava me deliciando com a dele.

— Eu sei – murmurou. – Sinto que você é bem mais forte no fogo e o fogo é o mais perigoso de todos. Você não pode sair queimando pessoas acidentalmente porque está com raiva. Mesmo sendo um etorn.

Abaixei a cabeça, envergonhada.

— Desculpe – sussurrei. – Mas eu não sabia o que eu estava fazendo... Ninguém nunca me ensina nada sobre como usar os poderes e ninguém além de Kieran sabe o que fazer com o fogo. Eu me assustei e... Ele me respondeu tão forte, mesmo sem eu pedir que ele fizesse algo, quando vi, a garota estava pegando fogo e eu... Fiquei tão admirada com o que estava fazendo que não pensei em parar.

Eu olhei-o, ainda envergonhada pela bronca que estava levando e o vi sorrir.

— O fogo é poder – explicou. – E o fogo cega pelo poder. Mas uma garota tão forte quanto você não vai deixar que ele te domine. Vai controlá-lo sem dificuldade, assim que aprender um pouco sobre ele – olhou-me e estava com aquele olhar de orgulho novamente, que embargou minha garganta. – Tente não usá-lo enquanto sua mãe não permitir que você passe um tempo comigo para aprender – e, então, um sorriso brincalhão brincou em seus lábios. – E por mais cabeça-dura que ela seja, tente não fugir para me ver outra vez. Ela tem medo que eu te roube dela.

Eu sorri e achei que ela tinha medo por motivos bem concretos. Não era nem um pouco difícil adorar meu pai, como era com ela. Ele era como Kieran, mas mais... Cativante. Kieran envolvia você. Tharlion cativava.

— Ela é... Difícil – desabafei.

Tharlion riu e concordou animadamente. Sorri-lhe e acabei bocejando por não ter dormido direito.

— Eu bem sei disso. Venho tentando te visitar desde que chegou – continuava sorrindo. – Mas ela só permitiu quando viu que você tinha fugido para me encontrar. – acariciou meu rosto e virou-o para ele, para que ele pudesse me avaliar. – Parece cansada.

Franzi minha testa. O que eu evitara contar para Kieran, poderia contar para ele. Não poderia?

— Eu... Acho que fiquei um pouco assustada com tudo – confessei. — Não consegui dormir direito.

Ele passou o braço pela minha cabeça e puxou-me para deitar em seu peito. Começou a acariciar meu cabelo de forma doce e me senti totalmente sonolenta.

— Por que não tenta dormir enquanto eu fico aqui vigiando as coisas pra você? – perguntou-me.

Sorri-lhe e deixei afundar a cabeça em seu peito e não foi nem um pouco difícil achar meu sono com aquele abraço forte e caloroso e sabendo que, pela primeira vez na minha vida, tinha meu pai para me proteger.

Algumas horas mais tarde, acordei me sentindo infinitamente melhor. Achei que iria encontrar-me sozinha, mas logo senti seu braço por debaixo da minha cabeça, os dedos ainda acariciando-me distraidamente.

Abri meus olhos com um sorriso bobo e, no segundo seguinte, senti meu coração despencar.

Meu pai estava concentrado em uma leitura. O título do livro? Fadas, Elfos, Bruxos e Anões. A magia completa. Fiz careta assim que percebi.

— Acordou? – indagou, sem tirar os olhos do livro. Ele estava claramente zangado. E era o fogo que me dizia. – Leitura interessante. Encontrei isso aqui na sua mochila de fuga. É um artefato raro e incomum demais para se carregar por aí sem algum propósito — finalmente fechou o livro e me encarou, com a feição me dizendo que ele sabia exatamente o que pretendia, mas esperava que eu mesma dissesse.

Mordi meu lábio e me sentei, dobrando minha perna, já quase não sentindo mais nada nela. Agradeci mentalmente pela visita ou eu não teria condições de fazer minha viagem por mais uns dois ou três meses. E talvez aí já fosse tarde demais para me despedir de Guilherme.

Encarei meu pai, querendo contar-lhe, mas com medo da rejeição. Logo me repreendi. Ele era parte crucial do meu plano. Ele era o elfo que eu queria ao meu lado, na magia. Como não contar-lhe o que precisava, o que queria?

E mesmo achando que eu começaria da maneira mais errada possível, foi assim que eu o fiz.

— Tem um garoto... que eu deixei na Terra – soltei.

Tharlion balançou a cabeça e riu. Ele deixou o livro sobre a cama e voltou-se para mim, sorrindo.

— Tem sempre um garoto – brincou. – E o que você acha que vai conseguir, arrancando suas próprias asas por alguns meses com esse garoto? – continuou. – Sabe que se você contar a um humano da Terra sobre Lammetia, você é condenada a morte?

Acho que tive um pequeno choque momentâneo, mas me recuperei rapidamente. Nunca haviam me dito que não poderia contar a um humano da Terra sobre Lammertia, mas talvez esse fosse apenas um aviso para quem transita entre os mundos.

— Eu... Eu não – respirei todo o ar que conseguia. – Eu só quero... Me despedir. Ter um pouquinho mais dele antes de deixá-lo ir pra sempre.

Eu soube que, de alguma forma, tinha desmoronado toda a bronca que me daria no momento que eu olhei para ele. De alguma forma, o que havia dito o tocara.

— Entendo – murmurou. Parecia mesmo entender. – E esse garoto vale a pena? Pra você mentir para sua mãe que pretendia ir me ver enquanto estava a fugir para a Terra?

Ciúmes de um pai. Achei que nunca ouviria isso e me fez sorrir e abraça-lo ao perceber que ele tinha medo de me perder antes mesmo que pudesse me conhecer direito. Ele estranhou, mas me devolveu o abraço, meio receoso.

— Eu estava indo até você. Ia te pedir ajuda sobre isso – soltei o abraço e o olhei, meio envergonhada. – Achei que você poderia entender e me ajudar. Sentia uma ligação... Algo que não tenho com a minha mãe e achei que talvez pudesse ter com o senhor.

Ele levou a mão ao meu rosto e acariciou minha bochecha com o polegar. Nos encaramos por alguns segundos, antes que ele suspirasse, rendido.

— Apesar de ser complicada, sua mãe ama você, Michelle – contou-me. – Acho que, talvez, ela esteja receosa pela maneira com que você parece... – suspirou. – Você parece comigo. Tem um bocado da sua mãe, a audácia dela de quando mais nova, mas tem muito de mim.

— Ela não parece ser tão parecida comigo assim – murmurei, confessando toda a mágoa que eu vinha sentindo nos últimos meses.

Ele suspirou. Parecia tão magoado com isso quanto eu, mas para ele era um pouco diferente.

— Sua mãe mudou muito depois que teve Kieran – contou. – Ela decidiu que não deveríamos mais nos ver, pelo bem dele. E depois disso, ficou... Difícil. Receosa. Distante – balançou a cabeça. – Não parece a mesma pessoa.

Concordei. Agora soava mais como eu a conhecia. Quis perguntar como eles eram, mais novos, mas imaginei que ele não queria falar sobre isso, então engoli a pergunta. Só então reparei que ele estava me alertando, que, talvez, ao me despedir, ficaria como ela.

— Isso não vai acontecer comigo – prometi. Nos olhos do meu pai, vi a surpresa ao ter uma resposta tão direta. – Eu só preciso... De mais alguns momentos antes que eu desista da vida que eu tinha antes.

Tharlion concordou com a cabeça e sorriu docemente para mim.

— Ele é um rapaz sortudo, se tem tanta devoção – sorriu-me. – Não posso lhe dizer não. Eu estive ausente por muito tempo, muito mais do que o realmente necessário e, mesmo assim, posso reconhecer o brilho nos seus olhos quando você fala dele – deu um beijo em minha testa. – Com o coração apertado de te deixar ir, mesmo que só por algum tempo, mas vou lhe ajudar. Se você prometer que não fará nada até eu lhe chamar.

Eu olhei-o, em pânico. Tempo era uma coisa que não tinha ao meu dispor. Neguei com a cabeça.

— Tenho urgência – implorei. – Preciso que seja logo.

Antes que seguisse em frente, magoado demais para me perdoar por tê-lo deixado. Antes que alguma garota ocupasse o espaço que eu cultivara com tanto apreço.

— Não irei demorar, querida – prometeu. – Entendo que vocês, crianças, tem sempre pressa, embora a vida seja longa e o tempo coloque tudo em seu devido lugar – pareceu pensativo, brevemente. – Não. Eu vou apenas ter alguns momentos com você e Kieran e, quando sair daqui, irei procurar alguns amigos para lhe ajudar. Mas você só deve sair daqui se for junto do seu irmão e... – levantou o dedo, sabendo que era muito provável que eu desobedecesse. – Quando receber meu aviso. Eu só espero que esse rapaz valha a pena, Michelle..

Respirei fundo, completamente agradecida, sentindo as lágrimas virem aos meus olhos. Abracei-o com fervor, tentando me controlar.

— Obrigada, pai – disse, deliciando-me com a palavra. – Eu não sei como faria isso sozinha, mas...

— Faria. – completou-me. – Não posso ajudá-la na fuga. – sussurrou, afastando-se para olhar em meus olhos. – Ainda há muito rancor entre ambas as espécies e poderia se transformar em um grande transtorno, se eu o fizesse. Ainda mais com sua mãe tão hostil – concordei avidamente. – Mas, assim que pisar em terras élficas, você e Kieran terão toda a segurança e suporte que precisarem. E serão intocáveis, até sua mãe em pessoa resolver nos procurar. Nesse momento, é necessário que você já esteja partindo. Compreende?

Concordei com a cabeça e ele beijou-me a bochecha, passando as mãos pelo meu cabelo. Suspirei, totalmente aliviada por ter sido aceita e por ter seu total apoio.

— Eu não sei nem... Como agradecer – disse-lhe.

Ele sorriu.

— Seja feliz – segurou meu queixo de forma carinhosa. – Isso é tudo que um pai pode desejar para sua filha.

Enquanto eu corava e abaixava a cabeça, tão feliz que não conseguia me conter, ele beijou-me a testa, parecendo dividir o sentimento.

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