Capítulo Dois: O papel chamuscado

Capítulo Dois

O papel chamuscado

Seguir as instruções de Bianca para encontrar Diego, o tal professor de inglês por quem ela estava interessada, foi uma das coisas mais ridículas que eu já fiz. Para começar, ela queria me avisar quando ele saísse do curso para que eu o seguisse e, então, ela queria que eu o seduzisse a ponto dele me convidar (ou eu convidá-lo) para um local mais discreto e, antes de irmos, contar para ele que eu era soropositiva.

Ou seja, se ele topasse, o que eu faria? Bianca tinha tanta certeza que ele não toparia estar com alguém soropositivo (vide suas experiências anteriores) que nem se dignara a me oferecer um plano B para o caso dele aceitar e, por conta disso, eu me sentia prestes a furar o olho da minha irmã.

Afinal, com todo o meu charme, que escolha ele teria além de me acompanhar?

Eu, é claro, fiz tudo diferente do que ela me disse para fazer. Enquanto Bia estava na escola e Lis me mandava mensagens desesperadas por atualização da delegacia, eu me encontrava na cafeteria do outro lado do curso de inglês, para onde Bia só iria no horário da tarde, encarando a foto que ela me mandara dele. Era bonitinho, não o meu tipo de cara bonitinho, mas parecia combinar com Bianca. Tinha olhos escuros e cabelo castanho claro, levemente encaracolado em cachos grossos, dando, ao seu rosto triangular, um aspecto quase angelical. Tinha uma tez que parecia, para mim, indiano. Ou árabe. Um rosto agradável de se olhar, sem dúvidas.

Assim que decorei suas feições, comecei a encarar a rua, na esperança de encontrar o tal do Diego saindo da escola para o almoço. As crianças haviam saído há cerca de dez minutos e Bianca me alertara que ele dava aula nos três turnos hoje, então teria que sair em algum momento e eu estava pronta para colocar meu plano em prática.

Meu café já estava um pouco frio quando vi Diego cruzar a saída do curso, olhando para os lados. Havia um semáforo bem em frente ao curso e ele parou no mesmo, aguardando abrir. Dei uma pequena corrida e me encontrei aguardando do outro lado da rua, também. Tirei o celular da bolsa e fingi me distrair lendo mensagens, fingindo não notar que o sinal para pedestres tinha aberto. Quando Diego estava quase a minha frente, eu dei um pulo e uma guinada de corrida para dar tempo de atravessar e deixei meu café ir todo contra a blusa dele.

Bia tinha me dito que Diego era um cara legal. Caras legais jamais resistiam à mocinhas desastradas.

- Ai, meu Deus, me desculpe! – Empertiguei-me ao redor dele, tirando um guardanapo de dentro da bolsa e já passando por cima da sua camiseta, tentando secar. Ele era magrinho e não tinha quase nenhum músculo, mas esse não era um problema meu.

Diego riu do meu desajeito e me pegou pelos braços, puxando-me do meio da rua, com o sinal quase abrindo para os carros, para a calçada. Um galante, educado, legal, simpático e protetor: Bia podia casar, ele tinha minha aprovação automática.

- Não foi nada, está tudo bem – ele me assegurou, soltando meus braços e sustentando o sorriso tranquilizador.

- Eu destruí sua camisa – choraminguei, deixando-me soar dengosa, muito mais parecida com Bia do que comigo mesma. – Por favor, olha só você, eu... Tem algo que eu possa fazer?

Ele ainda estava sorrindo, mas parecia levemente sem jeito com a minha atenção, fazendo o sorriso vacilar nos cantos do seu rosto.

- Não, é sério, eu...

- Já sei! – Exclamei, pegando-o pela mão e interrompendo-o. – Eu moro aqui pertinho, tenho certeza que tem uma camisa do meu ex-namorado lá que cabe em você.

A verdade era: eu não tinha um ex-namorado há um bom tempo e certamente não tinha nenhuma roupa de um ex disponível, mas havia quase certeza que uma das camisas masculinas de Lisbela caberia em Diego sem nem pestanejar.

Diego parecia ainda mais sem jeito enquanto eu o puxava pela calçada, em direção ao nosso prédio, que ficava a dois quarteirões dali.

- Não precisa... – Ele tentou murmurar.

Naquela altura do campeonato, eu já tinha notado que ele era um pouco passivo e que qualquer mulher com um pouco de boa vontade iria dominá-lo. Era bom que fosse Bianca, doce e tranquila, do que alguém mais parecida comigo ou Lisbela, com uma personalidade mais forte: isso provavelmente ofuscaria o pobre e doce Diego.

- Ah, por favor, me deixe ajudar você, eu acabei com a sua camisa. Eu posso lavar ela também. Tenho uma secadora de roupas, vai ser super rápido, eu prometo – eu parei e virei-me de frente para olhá-lo e estendi minha mão para ele, vendo-o quase ceder. – A propósito, meu nome é Tainá, a destruidora de blusas.

Isso fez Diego rir e eu soube que ele estava na minha. Apertou minha mão, mas, ao invés de sacudi-la, ele levou-a a boca e encostou seus lábios em minha pele.

- Diego, senhora. É um prazer.

Oh, certo. Senti minhas bochechas queimarem com sua atitude nem um pouco usual. Ele tinha um charme clássico e eu quase conseguia começar a ver porque Bianca estava tão encantada nele e o porquê ficaria magoada caso ele a rejeitasse.

Pisquei meus olhos algumas vezes, perguntando-me em que século eu estava, mas acabei por sorrir. Diego sorriu de volta e eu suspirei, voltando-me o olhar para sua camisa.

- Acho que não pode ser um prazer, não com sua blusa nesse estado – murmurei. – Vamos, é aqui pertinho.

Joguei o resto do café no lixo com um sorriso de batalha vencida enquanto arrastava Diego pela mão para o meu apartamento e ele murmurava que mesmo com a camisa estragada, era um prazer. Conversamos sobre a violência no bairro e eu murmurei que estava contente em ter uma companhia masculina para caminhar para casa – não era realmente mentira. Eu sempre levava algumas cantadas pesadas quando fazia aquele caminho e Bia já havia sido assaltada ao voltar do curso para casa. Com Diego, ali, parecia que eu estava invisível aos caras toscos que sentavam perto do jornaleiro para soltar gracinhas para qualquer uma que passasse.

- Belo apartamento – Diego murmurou após subirmos pelo elevador e entrarmos no quarto.

Nosso apartamento era grande, sim, foi uma escolha que fizemos, pagar mais caro por um ambiente que fosse mais fácil de adaptar para Lisbela, então, além de grande, a decoração minimalista dava um ar de ainda mais espaçoso. Ainda faltavam alguns anos para quitarmos o financiamento daquele lugar, mas cada grama de dinheiro tinha valido a pena para que nossa amiga se sentisse acolhida pelo menos ali, visto que sair era sempre complicado para ela. Bia e eu até decidimos que, se algum dia fôssemos nos mudar, deixaríamos o apartamento para Lis, sem custos. Ela, claro, não sabia disso e não aceitaria com facilidade, mas aquele lugar tinha sido escolhido a dedo para ela e adaptado com todos os cuidados; a gente não abriria mão de deixá-la sem aquele conforto.

- Obrigada – agradeci, trancando a porta. – Pode ficar à vontade, eu vou pegar uma camisa pra você se trocar e já venho!

Entrei rapidamente no quarto de Lisbela e corri para a sua arara de roupas. Tentamos dar-lhe um guarda-roupa, no primeiro ano, mas era um bocado complicado porque era tudo alto e Lisbela não conseguia alcançar as roupas sozinha. Ela gostava de fazer as coisas sem ajuda e aquilo estava atrapalhando, então substituímos o armário por dois gaveteiros baixos e uma arara. Seu quarto era todo cheio de corrimões e suportes para ela se locomover para a cama e era a única suíte da casa, com o banheiro todo adaptado: a verdade era que nós ficamos com um pouco de inveja da cadeira que tinha no chuveiro de Lisbela e quase colocamos uma no nosso banheiro também.

Peguei uma camisa quadriculada que, se comparássemos os ombros musculosos de Lisbela com a estatura magra de Diego, era possível que acabasse larga nele; então caminhei de volta para a sala.

Diego estava parado na estante da TV com uma foto em suas mãos. Ah, eu tinha me esquecido daquelas fotos... Tinham cinco fotos nossas na porta de vidro do armário da TV, duas de quando erámos crianças, uma da época da faculdade e duas depois que começamos a morar juntas. A que estava em suas mãos era a minha favorita: eu estava sentada no colo de Lis na cadeira de rodas com uma garrafa de vodka na mão e Lis e eu estávamos claramente bêbadas e felizes, Bianca estava atrás, como se estivesse empurrando a cadeira e também exibia um sorriso afetado – não tinha bebido o suficiente para ficar bêbada naquela noite, mas também não era muito forte para o álcool e qualquer coisa a deixava alegrinha.

Diego me ouviu e virou-se para mim, com a foto em mãos. Eu tinha um olhar culpado no rosto e tentei não vacilar muito, o que era um pouco difícil diante dos seus olhos escuros sinceros.

- Conheço Bianca – ele disse.

Eu entendi o tom na hora: ele estava interessado nela e tinha ficado levemente interessado em mim, mas não iria fazer uma brincadeira com nós duas, se nos conhecíamos o suficiente para que todas as fotos da sala terem o rostinho dela. E, se tivesse que escolher alguém, estava claro que ele escolheria ela. O que era ótimo.

Eu já disse que ele era um cara legal?

Resolvi abandonar o plano e ser sincera.

- Eu sei – murmurei, matando a personagem que eu criara para interagir com ele. – Troca de roupa. Vamos conversar sobre isso. Fiz um ensopado de batata com linguiça que está ótimo, vou só esquentar – não dei espaço para que ele reclamasse e ele não o fez, como imaginei. Ele era muito bonzinho e ainda parecia confuso e curioso. Apontei para o corredor. – Segunda porta à esquerda. Você pode deixar a camisa suja lá, eu vou pedir para Bianca te entregar qualquer dia. Assim que tirar a mancha de café, o que imagino que não seja fácil.

Diego tinha uma expressão clara de quem queria conversar naquele minuto, mas concordou com a cabeça, um pouco perdido, e marchou em direção ao banheiro. Caminhei até a cozinha que, na verdade, era parte da sala. Demolimos a parede que dividia os dois cômodos para facilitar a locomoção de Lisbela e a única coisa que dividia os ambientes era uma mesa de quatro lugares que, às vezes, usávamos para jantar (mas a maior parte da utilização dela era para Bia corrigir as provas dos seus alunos). Reuni os papéis que estavam ali em uma pilha e coloquei em cima da geladeira. Peguei um pouco do ensopado, que estava mormo, coloquei em uma vasilha de vidro e pus no micro-ondas por um minuto. Tirei o arroz de dentro do forno e levei para a mesa de jantar. Dois pratos, alguns talheres e uma jarra de suco depois, Diego saiu do banheiro no momento em que eu acrescentava o ensopado.

- O cheiro está delicioso – ele disse, tentando conter a tensão que demonstrara ao meu olhar.

- Pode se servir – eu disse a ele, fazendo o mesmo.

Sentamos à mesa de jantar com nossos pratos e ele começou a comer em silêncio, claramente sem jeito. Encarou-me, dentre as garfadas, enquanto eu ainda em havia encostado em minha comida.

- Então... – Começou, parecendo reunir um bocado de sua vontade só para proferir aquela palavra. – Sobre a Bia...

- Bia gosta de você – eu disse, sem rodeios. Bianca talvez me matasse por causa daquilo, mas não havia mais sentido em continuar com a farsa, a verdade era a melhor das opções.

Diego parou com um garfo a meio caminho da boca e, por um segundo, pareceu perdido e confuso, mas abriu um sorriso sincero e concordou com a cabeça diante de minhas palavras nada sutis.

- Também gosto dela – disse. – Quero dizer, imagino que estamos falando do mesmo sentido e, bom... Eu estava pensando em chama-la pra sair qualquer dia desses e...

Ele era realmente fofo, tinha ficado nervoso e desatado a falar, mas eu não tinha acabado meu discurso ainda, então levantei uma mão, interrompendo-o.

- Sim, sim, Bia é adorável. – Concordei. – Mas, antes de você se atrever a se aproximar e quebrar o coração da minha irmã, eu gostaria de te contar algumas coisas. – Ele concordou com a cabeça. – Bia e eu nos conhecemos em um orfanato, bebês, ainda. Chegamos basicamente ao mesmo tempo, eu tinha dias e ela tinha um mês, mais ou menos. – Diego concordou com a cabeça, com os olhos arregalados, claramente nunca tinha escutado nada parecido com aquilo. – Quando saímos para fazer faculdade, Bia achou que tinha problemas hormonais e fez uma série de exames, onde acabou descobrindo que é soropositiva. Apesar do que seus ex-namorados apontaram algumas vezes, ela nunca tivera relações sexuais antes de descobrir aquilo, o que nos levou a concluir que ela adquiriu isso na gestação ou no mês de amamentação que passou com sua mãe. E é por isso que nós estamos aqui: Bia realmente gosta de você. Ela está com medo de você maltratar ela como todos os outros caras de quem ela gostou e contou sobre isso. Ela, na verdade, me pediu para que eu provocasse seu interesse e contasse que eu era soropositiva, mas resolvi que você é um cara legal e que merecia ouvir a verdade. A partir de agora, espero que você realmente seja legal como eu acho que é. Existem maneiras seguras de se ter um relacionamento e relações sexuais com uma pessoa soropositiva. Bia toma todas as precauções que ela pode tomar e você pode pesquisar na internet se for se sentir mais seguro. Pode me perguntar o que quiser, também e eu também posso te passar o contato da médica dela, que pode tirar qualquer dúvida que você possa sobre isso. É claro, é sua escolha se quiser seguir com isso: Bia está acostumada com caras fugindo dela quando ela conta. O que eu peço pra você é o seguinte: se você estiver com medo disso ou qualquer outra coisa, não lhe diga nada duro, não a magoe mais do que ela já foi magoada. Isso é tudo o que eu te peço.

Diego me encarava com uma expressão abobalhada e, ao perceber que eu havia terminado, levou o garfo a boca e mastigou demoradamente a comida, provavelmente pensando no que diria a seguir. Por mim, estava tudo bem e também voltei-me para a minha comida. O momento passou e acabamos por terminar nossos almoços em silêncio, enquanto estávamos claramente perdidos em pensamentos.

Ele olhou o relógio quando acabou de comer e se levantou.

- Eu preciso ir – disse. – Obrigado pelo... Hm... Pela comida e a camisa. E os conselhos.

- Disponha – eu disse, me levantando também para acompanha-lo até a porta, porém, ele permaneceu parado, indeciso. – Sim?

- Hm... Você pode... Ahn... Me passar o telefone? Da médica, quero dizer.

Eu quase prendi a respiração. Arrisquei um sorriso e concordei com a cabeça levemente, encantada que estivesse, pelo menos, disposto a pesquisar sobre o assunto. Como eu tinha entendido no primeiro momento, ele realmente era um cara legal e eu estava empolgada com a possibilidade de Bia conseguir um pouco de felicidade por aqueles dias que não viessem das crianças que ela ensinava e cuidava, que eu sabia que era um bocado melancólico porque ela queria ser mãe, mas isso envolvia tantas complicações que era quase totalmente inviável nos métodos tradicionais.

- Claro – eu disse. – Fui até a geladeira e peguei o telefone da médica de Bia. Ao lado do telefone, na sala, anotei o número da médica e o meu próprio, entregando para Diego. – Qualquer coisa, é só ligar.

Diego concordou com a cabeça e sorriu docemente para mim.

- Obrigado... Pela sinceridade e por me explicar – ele disse. – Eu... Hm... Não mudei meus pensamentos sobre Bia. Vou chamá-la pra sair qualquer dia, mas... Gostaria de... Hm... Pesquisar um pouco. Pra saber como... Sabe?

Concordei. Tínhamos chegado à porta e eu sorri para ele, confortando-o. Por Deus, que ele fosse o cara legal que Bia estivera procurando aquele tempo todo. Ela só tivera um namorado sério até então, que não terminara por conta da condição dela – porque ele tinha a mesma condição e eles se conheceram por grupos de apoio na internet. Os outros, todos, tinham fugido apavorados. Covardes.

- Você nunca deve chamá-la de aidética – eu instrui e ele concordou com a cabeça. – Ela gosta de margaridas e violetas, chocolate amargo, filmes antigos e sabonetes do Boticário. Você pode levá-la ao cinema, ao boliche, pra um jantar simples ou numa biblioteca ou livraria. Ela vai adorar qualquer uma dessas opções.

Ele sorriu, parecendo aliviado, como se eu tivesse acabado de tirar um peso de seus ombros, facilitando para ele com uma lista de coisas que eu aprendera sobre Bia durante a vida toda dela.

- Obrigado – ele murmurou mais uma vez. E realmente quis dizer isso. – Eu vou... Entrar em contato com minhas dúvidas.

Concordei com a cabeça, enquanto ele se virava para ir embora.

- Diego – chamei-o mais uma vez. Ele virou-se para mim, ainda estava com um sorriso no rosto, o que indicava um bom sinal, apesar da expressão de confusão pelo excesso de informação – Se você quebrar o coração dela, eu quebro a sua cara – ameacei.

Ele riu.

- Parece justo – concordou. – Até mais, Tainá. Foi... Realmente... Um prazer.

***

Lisbela estava me atentando para contá-la o que havia acontecido com Diego desde o momento em que eu fora buscá-la na delegacia, às 18h. Isso se a gente não fosse contar as exaustivas mensagens que ela havia me enviado durante o dia e eu, prontamente, ignorei a todas.

- Lis, espera a Bia chegar – eu implorei, pela milésima vez.

Seria mais fácil se eu tivesse cedido e deixado a história escapar de meus lábios, mas eram assuntos pessoais de Bia e minha integridade moral dizia que era injusto que outra pessoa, mesmo Lis, soubesse do que havia acontecido antes dela.

Comprei comida japonesa com os poucos reais que sobraram no meu falecido ticket refeição para que Lisbela me deixasse em paz por algum momento. Após isso, fui tomar um banho e me demorei o suficiente para evitar Lisbela e suas constantes perguntas sagazes que tiravam o que havia acontecido pouco a pouco de mim.

Bia só chegou em casa por volta das 10h30, com as bochechas vermelhas e o cabelo um pouco desgrenhado. Eu estava parada, encostada na quina da parede entre a sala e o corredor que levava aos quartos, torcendo para conseguir ver um pouco de TV sem que Lisbela percebesse minha presença (o que realmente havia acontecido, visto que ela estivera distraída com seu celular) e tive que conter uma risada quando Bia levantou o olhar da chave e encarou a nós duas com a maior expressão de culpa no rosto. Estivera tentando esgueirar-se em silêncio, provavelmente esperando que já estivéssemos na cama – Lisbela normalmente já estaria, pelo menos.

- O que aconteceu? – Eu perguntei a ela, enquanto Lisbela soltava uma gargalhada alta pela minha pergunta estúpida.

Bia, claro, tentou desconversar e jogou a bola de volta para mim, enquanto se sentava na poltrona, claramente cansada. Ou de pernas bambas. Vai saber.

- O que você fez? – Perguntou.

Respirei fundo e dei a volta na sala, sentando-me ao lado de Lisbela no sofá. Ela estava um pouco deitada, na verdade, e eu aproveitei para ajeitar suas pernas de maneira que ela ficasse mais confortável, ao que ela agradeceu com um olhar.

- Eu disse a verdade pra ele – murmurei. – Comecei como a gente combinou – corrigi, rapidamente, vendo o olhar de Bia. – Mas eu enganei ele e trouxe ele aqui pra casa, então ele viu nossas fotos e eu fui sincera com ele. Ele parece um cara legal, Bia, dá pra ver só de olhar pra ele. Disse que iria te chamar pra sair depois que... Ele estudasse um pouco sobre o assunto, eu acho.

Diego tinha me mandado duas perguntas por mensagem durante a tarde, o que eu tinha respondido prontamente e com facilidade, demonstrando que estivera pesquisando, provavelmente, durante seus intervalos entre as aulas.

- Você disse a ele sobre mim? – Ela pareceu embasbacada. – Ele disse que almoçou com uma amiga minha e eu imaginei que você podia ter contado que éramos amigas, mas... Você contou sobre mim e ele disse...

- Ele disse, Bia, que gosta de você e que isso não mudou – não tinha sido exatamente daquela forma, mas ver o sorriso de Bia foi impagável. – Só disse que ia estudar um pouco sobre o assunto, o que é compreensível, na verdade, e muito bom... Pra segurança de vocês dois, né? Ele é legal, de verdade, faço muito gosto.

- A Bia tá apaixonadinha! – Lis levantou as mãos no ar, soltando uma gargalhada. Bia jogou uma almofada em sua barriga enquanto nós duas ríamos e ela corava ainda mais.

- O que aconteceu? – Perguntei, vendo a expressão sonhadora em seu rosto.

Era bem claro o que havia acontecido, na verdade. Estava em cada partícula e luz refletida na pele de Bia, mas eu queria saber como. Queria detalhes. Ao contrário de Bia e Lis, eu nunca tivera um romance de verdade, só alguns sexos casuais que duravam um pouco mais tempo. As poucas vezes que havia me apaixonado, ainda no orfanato, não tinha sido correspondida. Minha vida romântica era em um total de zero conquistas. Nunca tivera tempo para criar um relacionamento com muitos laços e, bom, me casar e morar junto com outra pessoa era algo que sempre achei que traria muitos problemas... Principalmente para Lis. E eu gostava da minha vida como ela era.

- Ele me chamou pra tomar um café depois das aulas – ela murmurou com um sorriso sonhador e vi a expressão dela ser espelhada por Lisbela e senti que eu estava fazendo a mesma coisa. Nossos laços eram fortes daquele jeito: se uma estivesse feliz, as outras também estariam. – Nós conversamos sobre muitas coisas, ele mencionou ter conhecido uma amiga minha hoje, mas só falou isso e eu fiquei com medo de perguntar. Achei que, talvez, ele estivesse me sondando pra saber mais de você. Então ele me perguntou se eu queria que ele me acompanhasse até em casa e eu disse que tudo bem e ele veio pra cá sem me perguntar o caminho e, então, quando a gente chegou aqui no prédio...

- Quanto tempo durou o amasso de vocês? – Lisbela perguntou, sem papas na língua. – Foi na rua mesmo? Vocês não transaram, transaram?

- Bela! – Ralhei com ela. Porém, estava rindo.

- Não! – Bia respondeu, rapidamente. Então, corou. – Mas foi quase. A gente se beijou na porta do prédio e eu perguntei se ele queria entrar, mas achei que vocês iam estar aqui, então a gente foi pro play e quase rolou... Atrás da casinha de brinquedos.

- Sua depravada! – Dessa vez, fui eu que brinquei com ela e Bia estava da cor de uma maçã de tão vermelha.

-  Eu nunca tinha feito nada assim – sua voz era só um pouco acima de um sussurro de vergonha. – Só foi acontecendo e... Eu pedi pra ele parar porque eu não sabia que ele sabia e eu não ia conseguir dizer ali, então... Ele me pediu um monte de desculpas, que aquele não era um comportamento adequado, mas disse que eu era linda e ele não conseguiu se segurar. – Seu sorriso era tão grande que eu suspirei, tão encantada quanto ela. – Me chamou pra sair no fim de semana. Parece que vai ter um festival de filmes antigos em São Paulo e ele perguntou se eu me importaria de irmos até lá. Como ele adivinhou, ein?

Seu olhar esperto me dizia que ela sabia que eu havia lhe dado umas dicas, mas eu não iria entregar esse pequeno segredo porque Diego ainda poderia utilizar algumas das cartas na manga que eu lhe oferecera.

Abri meus braços para ela e chamei-a.

- Ai, Bia, tô tão feliz por você – murmurei, enquanto ela se encaixava no meu abraço.

Lisbela se remexeu aonde estava, choramingando.

- Também quero!

- Vem – chamei-a, rindo.

Lis se empurrou e Bia a puxou com cuidado, abrindo espaço para ela em nosso abraço desajeitado. Quando nos afastamos, ajudei Lisbela a se sentar de volta no sofá enquanto Bia se sentava sobre a mesinha de centro.

- Eu tava falando sério – Lis disse. – Também quero.

- Deixa de ser carente, Lis, a gente já te abraçou – Bia riu.

Ela moveu as mãos de forma teatral, jogando-se no sofá. Mordi o lábio, entendendo o que ela queria antes que ela dissesse as palavras:

- Quero que você veja um cara pra mim também, Tatá – ela pediu, os olhos escuros demonstrando mais sentimento do que ela realmente queria.

Ah, bom, também era difícil para Lis. Se os caras que se aproximavam de Bia fugiam quando ela lhe contava da doença... Bom, Lis não tinha muitos pretendentes, na verdade. Parte por ela ser cadeirante, parte por ela ter uma postura fechada e, às vezes, um pouco bruta e masculina, mas eu achava que aquilo era uma fachada para se proteger de não se machucar, na verdade. Seu último namorado, ainda antes do acidente, continuava preso. E, bom, ele fora quem insistira para que ela fraudasse os documentos que acabara fazendo-a ser presa. Não era como se ela estivesse totalmente confortável para seguir um novo relacionamento, na verdade. No início da sua adaptação, logo depois que nos mudamos para o apartamento, Lis chorava bastante e sofria muito mais com sua realidade. Bia e eu contamos moedas, complicadas com o financiamento da casa e dos planos para comprar o carro, e presenteamos Lis com um gigôlo. Conversamos (na verdade, eu conversei) com vários deles até encontrar um que parecia mais doce e cuidadoso. Lis ainda o contratava umas duas vezes por ano. E eu achava que se ela tivera três casos depois do acidente... Bom, tinha sido muito.

- Achei que você fosse lésbica agora – Bia pontuou.

Lisbela revirou os olhos e eu ri. Ela se envolvera com uma garota uns meses atrás – tinha sido mais fácil que um cara, ela dissera, mas acabou que não deu certo por causa de ciúmes.

- Bissexual, Bia – Lis explicou pela milésima vez. – Gosto das duas coisas.

- Igual a Tatá, então – ela riu.

- A Tatá, não – Lis disse. – Ela é só bi de festa – brincou. O que era verdade. Normalmente, preferia homens, mas era só tomar alguns drinques que qualquer boca que aparecia era uma boca a se beijar. – Mas, ei? Você vai ver esse cara pra mim, vai? Você viu pra Bia.

Revirei os olhos.

- O que eu fiz pra merecer vocês? – Perguntei.

***

Lis queria uma coisa diferente que Bia e eu não estava nem um pouco empolgada com aquilo. Ela, na verdade, não sabia muita coisa sobre o cara, só que ele era bonito e musculoso e era policial. Não trabalhava na DCI, com ela, mas tinha uma amizade com um detetive de lá e passava por lá algumas vezes na semana para conversar. Ele sempre a cumprimentava e ela o achava muito bonito. Estava pensando em chamá-lo para sair e ela achava que havia uma possibilidade dele aceitar, mas ela queria saber se valia a pena – dissera que eu identifiquei que Diego era legal com facilidade, então poderia responder aquela pergunta simples para ela também.

Bom, eu não estava nem um pouco animada em investigar um policial. Quero dizer, ele deveria saber algumas técnicas de investigação, enquanto tudo o que eu tinha era uma sagacidade e um pouco de conhecimento sobre homens em geral. Havia uma possibilidade de eu conseguir uma encrenca por conta daquilo, não podia?

Demorou um pouco mais para organizar a situação do que a história com Diego. Como Lis não trabalhava diretamente com Vitor, que eu descobri vir a ser o nome do policial, ela não tinha muitas informações sobre como encontrá-lo e quais lugares ele costumava frequentar. Na verdade, ela nem sabia se ele era comprometido ou não e eu lhe perguntei algumas vezes porque ela não fazia como uma pessoa normal e ia fuçar o f******k dele. Ela me mandou calar a boca e, além de me perguntar se eu preferia Bianca a ela, me informou que já havia procurado e que não havia muita coisa sobre ele nas redes sociais e se ela quisesse saber mais, ou eu calava a boca e fazia o que ela estava pedindo ou ela teria que usar de meios extra-oficiais. Ela usava aquele termo para falar que poderia hackear alguém, embora eu soubesse que ela não fazia mais isso desde que fora presa e começara a trabalhar para a polícia. Quero dizer; não fazia isso com estranhos. Tinha certeza que ela lia meus e-mails de tempos em tempos.

E eu? Calei a boca e esperei para tentar arquitetar um plano. Conforme o final de semana se aproximava e Bia demonstrava sua animação adorável sobre o festival de filmes antigos (e acabou por se revelar em um final de semana romântico com direito a uma noite de hospedagem que rendeu piadinhas de mim e Lis e também acabamos comprando um conjunto de lingeries para ela só para vê-la corar ao abrir o pacote), Lis acabou descobrindo que Vitor e o delegado estavam marcando um happy hour com os amigos em uma casa noturna para sábado à noite. Então, após dar uma carona para Bia e Diego até a rodoviária e deixar uma Lis nervosa em casa, eu estava com a minha melhor roupa matadora a caminho da boate.

Lis, ao contrário de Bia, não se usou de poucas palavras.

- Se você tiver que transar com ele para conseguir informações, transe. Se quiser transar com ele, por mim tudo bem também. Não vai significar nada pra você, mesmo.

Apesar de serem verdade, suas palavras me magoaram um pouco. Eu me fazia de durona sedutora a maior parte do tempo, mas era um bocado chato não sentir nada por ninguém. Não ter aquela pessoa especial para fazer alguns programas diferentes e bregas tipo o que Bia e Diego estavam fazendo... Bom, era bem chato.

Ela tinha me mostrado uma foto de Vitor que pegara do f******k e eu pude reconhecê-lo no momento em que entrei no clube. Apesar de ser lotado, ele era alto e tinha uma estatura grande e forte, que demonstrava imponência. Tinha certeza que deveria ser um bom policial, só por aquele porte e, pela maneira com que ele estava parado perto do bar, mesmo relaxado e com uma lata de cerveja na mão, soube que ele estava acostumado a ficar muito tempo em pé e alerta – e pude apostar que tinha um passado como segurança antes de acabar como policial. Enquanto o analisava, acabei balançando a cabeça e sorrindo: Lis tinha razão. Eu julgava bem as pessoas e tinha um bom sexto sentido. Talvez fossem os anos com atendimento ao público no banco e lidando com todo o tipo de gente, talvez fosse apenas facilidade em ler as pessoas, mesmo. De qualquer forma, ela tinha razão.

Porém, eu precisaria trocar algumas palavras com Vitor antes de saber se ele era um cara legal e teria que insistir em uma conversa para saber sobre relacionamentos, gostos e hobbies, tópicos que Lisbela me pedira para checar, além do meu próprio tópico: quão disposto ele estaria para lidar com uma pessoa com necessidades especiais, como Lisbela.

Eu não precisava de um plano para conseguir a atenção de um homem. Normalmente, quando eu queria, eu conseguia. A natureza tinha sido bem generosa comigo, na verdade, apesar de todos os percalços que a vida me enfiou. Não sabia muito de minha família, mas meu biótipo era óbvio o suficiente para que eu não tivesse muitas dúvidas: era descendente indígena, se não fosse minha mãe ou pai, era de meus avós. Minha pele era um pouco mais clara que o comum dos indígenas, mas ainda tinha o tom avermelhado e o formato e a cor de meus olhos não tinha como enganar ninguém. O cabelo, porém, embora que ainda mantivesse o liso escorrido, o preto natural dele me irritava profundamente; eu não gostava do tom, acho que era porque me lembrava da criança assustada que eu fui no orfanato (e algumas piadas sobre o filme da minha xará que havia sido lançado durante aquele período), então eu pintava minhas madeixas periodicamente de vermelho. Às vezes, mudava o tom, no momento, eu os tinha de um tom de vermelho escuro, um vinho, na verdade, que ali, naquele lugar escuro, deveria estar parecendo preto, o que, no todo, não fazia muita diferença, exceto para mim.

Aproximei-me do bar com uma confiança inabalável em meus saltos agulha, acostumava a andar com aquele tipo de sapato todos os dias, no trabalho, porque era o que estava pedindo de meu cargo, no código de vestimenta da empresa. Havia demorado algum tempo para sair dos confortáveis tênis e sapatilhas da faculdade para os sapatos altos e sociais, mas tinha sido bom para mim. Àquela altura da vida, era só calçar um daqueles e eu me sentia poderosa. E não foi nenhuma surpresa ao perceber olhares enquanto eu passava. Uns dois caras mais corajosos tentaram me abordar e eles eram até bonitinhos. Se eu não tivesse uma missão, provavelmente teria dado bola para qualquer um deles (ou para os dois), mas só tinha olhos para uma pessoa naquela noite e ele já havia me notado. Arrisquei-lhe uma piscadela antes de me debruçar no balcão do bar. Pedi uma caipirinha de maracujá e contei até dez. Vitor estava ao meu lado no oito.

- Eu te perguntaria se te conheço, mas tenho certeza que me lembraria se já tivesse visto você em algum lugar – ele falou, próximo da minha orelha, aproveitando-se da música alta para já começar a brincar de seduzir.

E ele tinha uma voz gostosa, rouca, que não me surpreendeu em amolecer minhas pernas. Minha bebida chegou e eu tomei um gole, antes de me virar para ele.

- E eu te perguntaria se você vem sempre aqui, mas essa é minha primeira vez, então não faria diferença.

Aquela troca de palavras era o necessário para que ele se curvasse sobre mim e grudasse nossos lábios. Suspirei e, droga, meu corpo reagiu estranhamente, apesar de ter um tempo que eu não ficava com ninguém. Acho que, apesar do aval de Lis, estaca incomodada com o interesse dela e o envolvimento que havia acabado de ter. O beijo logo encerrou e eu sorri para ele para disfarçar meu desconforto.

- Também não venho aqui sempre... – Ele murmurou.

Ele me convidou para ir para um outro canto da boate. Haviam uns sofás em uma área atrás da pista de dança e nos sentamos ali. Vitor tinha uma mão boba um pouco nervosa e demorou um total de trinta segundos para apertar meus seios. Tentei iniciar uma conversa, perguntei com o que ele trabalhava e elogiei seus músculos. Ele me disse que eu mal podia esperar para ver a rigidez de outros lugares e, bom, eu não estava envolvida o suficiente para aquele tipo de conversa começar. Tentei alguns tópicos que Lisbela tinha me pedido, ele me disse que era solteiro (não que fosse me contar, caso não fosse), que gostava de assistir futebol, malhar e praticar lutas. Foram as únicas coisas que consegui arrancar dele antes dele voltar a me atacar enfiar suas mãos por dentro da minha blusa. Ele já tinha posse dos bicos de meus seios e os apertava sem muito cuidado quando eu achei que por mim, já tinha dado o que tinha para dar. Estava com zero tesão nele e, bom... Ele parecia um pouco bruto, não que eu não gostasse de um pouco de brutalidade, com intimidade e tudo mais, mas ele parecia... Bom, ele parecia bruto do jeito errado.

- Eu... – Tentei empurrá-lo e foi uma novela a parte fazê-lo desgrudar do meu pescoço. – Preciso ir ao banheiro.

Ele sorriu maliciosamente.

- Quer companhia?

Neguei com a cabeça com vontade e procurei pela minha bolsa no sofá e acabei acendendo uma luz. Demorei um pouco para notar que havia acendido a tela e desbloqueado o celular de Vitor sem querer. Era uma conversa e tinha uma foto de uma garota pelada nas mensagens mais recentes. Não consegui ler o conteúdo, mas... A aparência da garota era de... Uns quinze anos.

Engoli a seco e fingi não perceber. Achei a bolsa no chão, aos meus pés. Como eu tinha deixado aquilo acontecer?

- Tira o sutiã antes de voltar – ele pediu. – Que aí eu posso mamar nos teus peitos deliciosos aqui mesmo... – Ele pegou minha mão e, antes que eu percebesse o que estava fazendo, colocou-a sobre sua calça, me mostrando sua ereção. – E você pode mamar no meu caralho que já está duro só de pensar nesses teus peitões.

Murmurei qualquer coisa e me levantei dali o mais rápido possível. A caipirinha tinha pego um pouco demais em mim, logo eu que tinha uma resistência alta para bebidas, derrotada por um copo. Meus pés não estavam firmes, mas, decidida, ao invés de marchar para o banheiro, parei no caixa da boate, paguei meu consumo e cruzei para a saída.

Para garantir minha saída em segurança, olhei para o canto em que Vitor estava, checando se continuava lá. Foi meu erro. Nossos olhos se cruzaram e ele se levantou, enquanto eu me apressava a sair da boate, com uma péssima sensação no estômago e a mente embaralhada.

E, merda, não havia nenhum táxi na porta.

Olhei para os lados, calculando para qual lado seria a menor distância para um ponto de ônibus que passasse algum para minha casa e, aleatoriamente, escolhi o da direita. Tentei dar uma corrida, mas meus pés moles e os saltos altos dificultaram a minha caminhada, o suficiente para que ouvisse as passadas brutas e rápidas de Vitor. Eu estava quase chegando ao ponto de ônibus, já conseguia visualizá-lo. Deveria ter alguém lá, deveria ter algum ônibus vindo...

Meu coração estava disparado na boca e eu percebi que não conseguiria chegar a lugar algum um momento antes de sentir a mão de Vitor em meu braço. Percebi que meu corpo não estava respondendo como deveria e notei que... Eu deveria ter sido drogada. Um copo de caipirinha jamais faria aquela moleira em meu corpo.

- Ei, aonde você pensa que vai, gata? – Ele me perguntou, debochado.

- Me solta – choraminguei. O pouco de força que eu tinha estava sendo usado para tentar me soltar. – Me solta – gritei, o mais alto que pude, na esperança que alguém me escutasse. Não estava tão longe da boate e, embora a música alta do lugar devesse me atrapalhar, eu tinha alguma esperança.

Vitor nem se abalou com minhas tentativas fracas de me afastar dele. Olhou para os lados da rua e me puxou para uma rua transversal, deserta e escura. Sentia meu corpo querendo desfalecer, drogado e em pânico, mas reuni minha força e repeti o mantra: eu não iria dormir, não iria desmaiar. Ia ser pior se eu o fizesse.

- Não – choraminguei. – Não, não...

Minha blusa já estava levantada e sua mão estava dentro da minha calça, tateando por dentro da minha calcinha. Meus olhos estavam começando a marejar. Espalmei minhas mãos em seu peito, tentando empurrá-lo, mas nem lhe fez cócegas.

- Para com isso, gata, você quer também... – Ele murmurou.

Sua boca estava em meu pescoço quando eu comecei a chorar, entendendo que não tinha nada que eu pudesse fazer. Eu queria ele longe de mim. Queria ele machucado. Queria...

Estava prestes a começar a gritar por socorro quando uma queimação começou em meu peito e senti meu corpo ficando um pouco mais firme, o peso em meus olhos pareceu diminuir. Um grito gutural ecoou na rua e eu demorei alguns segundos para perceber que não vinha de mim.

Vinha de Vitor.

Ele se afastou de mim, ainda gritando e eu só tive concentração o suficiente para mirar o meu salto no meio de suas pernas e ele caiu desmaiado no chão. Havia sangue onde o sapato havia encostado, mas essa não era a parte mais tenebrosa.

Sua camisa estava chamuscada em seu peito, e a pele que ficara descoberta ali... estava rosa e levemente deformada, parecia começar a inchar, também. Era claramente uma queimadura, um tipo bem ruim de queimadura.

Minha mente ainda estava um pouco devagar e a adrenalina começava a baixar, dificultando ainda mais meus pensamentos. Fechei minhas mãos em punhos, pronta para reagir caso ele se levantasse e, só então, percebi um brilho estranho vindo delas. Elas estavam em um vermelho vivo, iluminado, que me fez andar para trás em longas passadas tontas. Com um assombro de entendimento, encostei uma de minhas mãos em um cartaz colado na parede ao meu lado. O papel chamuscou ao menor dos toques e virou cinzas aos meus pés.

Minha respiração estava entrecortada quando eu voltei a encarar minhas mãos, vendo o brilho bruxuleante diminuir pouco a pouco enquanto meu corpo percebia que a ameaça havia sido exterminada por hora. Naquele momento, iluminada pelo pouco brilho que vinha de minhas mãos e diminuía pouco a pouco, me dei conta que as queimaduras causadas em Vitor tinham sido causadas, de alguma forma que eu não compreendia, pelas minhas mais.

Três segundos depois, eu estava correndo para longe dali como se minha vida dependesse daquela fuga. E a única coisa que eu não sabia era se estava fugindo de Vitor e do que quase acontecera ou se eu estava fugindo de mim mesma.

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