Escolhas
Escolhas
Por: Cristina Valori
Capítulo 1

Não sei se você sentirá pena, raiva, desprezo, amor ou paixão. Se tomará para si a minha história, mas, mesmo assim, vou lhe contar.

Aconteceu como qualquer clichê de um bom livro de romance, daqueles em que basta um olhar para todo seu mundo sair do eixo. Confesso que várias vezes me perguntei se seria assim mesmo ou se tudo não fazia parte de uma ficção. Nunca soube o que era ter esse olhar, nem quando conheci o meu marido. Sim! Eu sou casada! Pensou que seria fácil? Se fosse, não estaria aqui contando o que vivi e ainda vivo.

Alguns poderiam dizer que fui muito bem-casada, e a sua maneira, meu marido era atencioso e carinhoso comigo e com os nossos três filhos. Sempre tive tudo: apoio da família e amigos, carinho, dinheiro, amor... Será? Por causa desses detalhes, me perguntava a toda hora o porquê de ter acontecido aquilo comigo. Destino? Pode ser, porque acreditava em destino. Tentação? Ah, claro que sempre fomos cercados pelas tentações. Escolhas? Sim, esse passou a ser o meu lema, “a vida é feita de escolhas”, mas e se a escolha for a errada? E se não? Eram tantas perguntas, tantas dúvidas.

Nunca procurei por algo diferente do que possuía. Confesso que sempre questionei. No entanto, tudo não passava de mera curiosidade. Nunca quis ferir os sentimentos de ninguém, muito menos os meus, porém, não consegui fugir. Foi mais forte do que minhas obrigações, minha racionalidade e meus princípios.

Aconteceu exatamente assim:

Em um sábado como outro qualquer, sem grandes expectativas, apenas passeios com os filhos e jantar em família, algo básico. Não vou mentir que às vezes, eu ansiava por um pouco mais de emoção e aventura, contudo era minha vida, a minha escolha. E quando a gente casa, a família, o amor aos filhos e ao marido deveriam bastar.

 Mesmo não desejando que nada alterasse, naquele sábado algo parecia estar diferente. Uma sensação estranha como se faltasse algo me permeava. Acordei no meu horário habitual, cuidei das crianças e fui à academia. Quando voltei para casa recebi uma ligação da cunhada avisando que o nosso horário para fazer a tatuagem estava agendado às 15 horas. Empolguei-me. Nunca pensei em marcar meu corpo, mas quando conquistei a primeira, logo após o nascimento do meu filho mais velho, virou um vício. Seria a minha sexta tattoo. Aí, pensei: “beleza, agora sim. Alguma coisa diferente”.

Continuei o dia dentro da normalidade, até o momento de deixar as crianças sob a responsabilidade da minha mãe. Depois, fomos para o estúdio: eu, meu marido como acompanhante e os meus cunhados. Agora imagine a situação. Você acha que foi difícil? Não tem nem ideia.

Como éramos uma indicação, assim que chegamos, nos encaminhamos direto para o dono do estabelecimento. O estúdio parecia um ambiente organizado e bem-iluminado, exibia suas paredes forradas de imagens e fotos de tatuagens.

Anderson, o proprietário, possuía uma compleição contraditória: estatura mediana, um pouco fora de forma, mas com as características de um tatuador. Se é que você me entende. Já se deparou com um profissional dessa área? Ele tinha os braços pintados, piercing na língua, cabelo na altura do ombro e um sorriso extremamente simpático. Foi muito atencioso, mostrando o restante do local e os seus equipamentos de trabalho. Sempre me preocupei com a higiene e as doenças, então a limpeza foi o primeiro item que olhei.

Eu, meu marido, Sandra e Sérgio paramos em sua sala e conversamos sobre assuntos alheios por pura distração, enquanto os meus cunhados mostravam seus desenhos. Ainda não tinha nada definido, somente uma ideia do que faria, uma frase e o local. No entanto, faltava juntar tudo em um desenho e foi, nesse momento, que minha mudança começou a ocorrer.

Não haveria como atender nós três no mesmo dia e não queria ir embora com a certeza de ter perdido meu tempo. Não me importaria em regressar para terminá-lo, nem que o trabalho fosse feito em duas partes, só queria fazê-lo. O Anderson vendo a minha face de puro desgosto, ou seja, de dengo – não me olhe feio, eu tinha 30 anos, contudo, ainda podia fazer bico e birra –, resolveu me ajudar. Indicou-me para outra pessoa, descrevendo-o como competente e um excelente profissional. Naquele dia, enxerguei como uma ajuda e não um problema. Se eu tivesse esperado pelo Anderson e não reclamado, tudo estaria do mesmo jeito. Não é mesmo? Ou não.

Fiquei um pouco insegura, por não conhecer o trabalho do outro profissional. Além de pensar: “poxa, por que um tatuador tão competente, como o proprietário havia descrito, estava sem cliente em pleno sábado?”. Parecendo ler a minha mente, ele me avisou que o homem em questão tinha dois horários livres, uma vez que a cliente marcou e não apareceu.

Lembro-me de ter conversado com o meu marido sobre aquela alternativa (desculpe não falar o nome dele e só chamá-lo por ‘meu marido’, mas, às vezes, ainda me dói contar essa história, além de sentir vergonha das minhas atitudes) e ele deixou que eu escolhesse. Sempre detestei esse tipo de resposta: “você que sabe”. Caramba! Não devia nem ter perguntado, porém o motivo daquela reação era compreensível. Ele não gostava de tatuagens e nunca as incentivou, concordava apenas para me ver feliz.

Até insisti para que fizesse uma, mas realmente não era a sua praia. Ele não sabia o quanto eu achava sexy homem tatuado, o quanto gostava... Não precisava ser o corpo todo, nas pernas e nas costas chamava muito minha atenção. Claro que ter o corpo malhado ajudava, mas a tatuagem por si só já me atraía.  E depois desse “você que sabe”, tomei a minha decisão e que decisão!

O Sérgio e a Sandra ficaram na sala do Anderson e nós fomos para a do Gustavo. Sim, esse era o nome dele. Quando chegamos à sala indicada, ela se encontrava vazia. Aproveitei para inspecioná-la. Como os outros ambientes, aquele também era limpo, organizado e claro. Várias fotos de antes, durante e depois estavam expostas nas paredes em quadros simples e algumas pastas com desenhos encontravam-se sobre a bancada. No canto esquerdo, havia um iPod ligado a uma caixa de som e tocava um rock. Na hora que reconheci a música, Angel – Aerosmith, me senti em casa. E, ao som daquela linda canção, aguardamos a chegada do tatuador.

Passados quinze minutos, meu marido resolveu sair e pegar um café para mim. Já te falei que sou apaixonada por essa bebida? Não?! Bom, então estou te garantindo. Amo sentir o aroma pela casa, quando o faço, e quase em todos os passeios tenho como regra procurar por uma boa cafeteria.

Naquele dia não foi diferente, necessitava de uma dose extra de cafeína para enfrentar a dor. Porque não adiantava falar que não doía, seria uma mentira. Costumava dizer que têm locais que você sente mais e outros menos. Sempre fiz, claro, nos suportáveis porque não era uma pessoa apta a sentir dor. E, por ter feito em todos os lugares que consegui aguentar, aquela seria a minha última tatuagem. Será? Bom, foco. Vamos voltar ao ponto.

Ele estava atrasado e eu ansiosa, com dúvidas sobre o profissional. Passou-me pela cabeça cancelar tudo, então, pensei: “mais dez minutos e, se não aparecer, desisto. Vai ver não é para fazer hoje”. Não era assim que costumavam falar quando as coisas começavam a dar errado? “Não era para ser”? Só que o destino resolveu ajudar.

Cantarolava a música baixinho, enquanto folheava as pastas e prestava atenção nos desenhos. Não ouvi quando ele chegou e, por quanto tempo ficou ali me olhando, mas o que me fez virar e perceber que havia alguém na sala foi o meu nome sendo chamado.

 — Fabiana? — Uma única palavra e somente o som da sua voz foi o suficiente para o meu coração acelerar, as pernas fraquejarem e borboletas, adormecidas há tempos, se agitarem.

Fiquei sem saber o que fazer. Pela primeira vez, tive medo, muito medo. Sempre fui uma pessoa prática, corajosa e objetiva. Contudo, naquela hora, me senti insegura. Como não poderia permanecer inerte, busquei coragem e me virei. E foi, então, que me encontrei e me perdi.

Ele estava lá, parado na porta, tão surpreso quanto eu. O tempo passou despercebido enquanto nos encarávamos. O que meu coração experimentou? Como descrever a sensação? Sabe aquele olhar que falei? Foi com ele que encontrei. Naquele momento, só existia nós dois.

Nunca me senti assim antes, foi perturbador e um tanto enlouquecedor. Ele era perfeito e dentro da sua simplicidade, uma beleza tranquila. Tinha cabelo preto cortado bem rente à cabeça, a face bem barbeada, braços tatuados, nariz e boca com traços normais. Usava uma calça jeans escura, com um All Star preto e uma camiseta cinza. Bem básico.

Não se parecia em nada com os mocinhos que lia nos livros, tampouco se destacava por sua altura, muito menos pelo porte atlético de quem malhava horas na academia, porém, possuía os olhos penetrantes e negros e me fitava como se eu fosse única.

Parecíamos desnorteados e sem compreender muito bem o que estava acontecendo. Não conseguia responder ao seu chamado e gostava de acreditar que as palavras sumiram da mente dele. Fui tocada pelo Gustavo, da mesma maneira que ele parecia ter sido tocado por mim.

— Fabiana? — Novamente meu nome saindo dos seus lábios me deixou sem ar.

— Gustavo — com certeza, fora a primeira vez que pronunciei o seu nome. Entretanto, a sensação de que ele sempre fizera parte da minha vida, surgiu de repente e, de alguma forma, parecia tão certa. Lembra quando falei no início que sempre tive tudo na vida? Descobri que aquela afirmação não era verdadeira assim que ele sorriu.

Gustavo parecia completar uma parte adormecida em meu coração, mesmo que essa ausência estivesse escondida para mim, meu corpo poderia entender que se tratava de uma reles atração física, porém, a alma afirmava o contrário. Agradeci por não ter ninguém presente naquele momento, pois não conseguiria disfarçar.

— Desculpe, não sei o que aconteceu. — Chacoalhou a cabeça. — Você veio fazer a tatuagem, certo? O Anderson me avisou. Já tem o desenho? — perguntou, sem desviar a atenção do meu rosto.

E, como em um passe de mágica, precisei voltar à realidade quando ouvi passos no corredor, devolvendo-me direto para a minha vida, a minha escolha.

— Isso, sou eu mesma. Ainda não tenho o desenho fechado, só algumas ideias.

— Pode me mostrar? Eu te ajudo na decisão. Onde pretende fazer?

Para você que está lendo, parece uma conversa normal, mas não era. Ela estava carregada de medo, insegurança e perguntas. Naquele momento, a realidade me bateu com força mostrando que tudo estava errado e eu quis fugir, correr e me esconder.

— E aí, já começaram? — Meu marido entrou na sala com um copo de café na mão, que consegui pegar antes de ele perceber que eu tremia.

— Esse é o meu marido. — Olhei para o Gustavo enquanto os apresentava e percebi, através do seu rosto, a sua decepção.

— Prazer. — Retribuiu o cumprimento com um aperto de mão. — Ainda não, me desculpe o atraso. Achei que não teria cliente nesse horário e fui fazer um lanche, mas podemos começar agora. E os desenhos, Fabiana? —  Implorei mentalmente para ele não dizer o meu nome. Quase gritei para o meu marido ir pegar outro café e demorar um pouco mais para voltar, pois eu precisava entender o que acontecia. Contudo, mantive-me quieta, me sentei e mostrei as minhas ideias.

Eu almejava uma tattoo na perna, perto da panturrilha. Uma pequena frase: “força é aprender a viver apesar da dor”, mas não somente escrita, queria algo mais... feminino. Sabe o que é engraçado? Quando decidi por aquelas palavras, nunca imaginei que seriam perfeitas para a minha vida, encaixando-se na situação. Força. Necessitaria de muita, uma vez que a dor parecia ser a minha próxima companheira. Não a física, mas a do coração e teria que aprender a conviver com ela.

Ele conseguiu chegar no imaginado. A letra perfeita combinava com as flores delicadas e davam o acabamento primoroso. Quando colocou o decalque no local que indiquei, com todo o cuidado e carinho, me tocando o mínimo possível, o desenho ficou ainda mais formoso do que no papel. Confesso que foi difícil ficar assim, tão perto do Gustavo e não deixar transparecer meus sentimentos confusos. Como um ímã, me puxava e me sugava, fiquei abalada e um pouco fora de mim. Meu marido percebeu e questionou, mas consegui me desvencilhar como uma perfeita e verdadeira desculpa: estou com medo da dor. A expectativa em receber o toque de Gustavo pelo tempo que durasse o trabalho estava mexendo comigo. Precisava senti-lo nem que fosse sob a luva.

— Você pode se deitar na maca, de lado, por favor? — Sua face, por um momento, indecifrável. O tom de voz, profissional. Mas... os olhos.

— Claro. Vai demorar para fazer? Uma sessão só basta? — perguntei enquanto o encarava e me recriminei mentalmente por isso. Eu era casada. Contudo, não estava conseguindo pensar com clareza e me vi torcendo pela resposta que meus anseios clamavam.

— Acho que não consigo terminar hoje. Preciso de, pelo menos, mais uma sessão. — Desviou o olhar antes de responder e não enxergou o meu sorriso.

Quando me deitei, estava tão nervosa que não conseguia me controlar. Respirava com dificuldade, o calor percorria meu corpo.

Enquanto Gustavo separava o material para o trabalho, me forcei a permanecer calma. Inspirei profundamente, tentando me concentrar no ambiente, no meu marido a minha frente e na música que tocava, porém, parecia impossível. Eu conseguia sentir o seu cheiro, não de algum tipo de colônia. Sempre falei que todo mundo tem a sua própria fragrância. Você já percebeu? É uma mistura de perfume, sabonete e pele. Não há como explicar. Só preste atenção em alguma pessoa que conviva bem próximo a você. Sinta. Acho que irá me entender.

Você pode não acreditar, mas na hora que o Gustavo segurou a minha perna para começar, eu realmente me acalmei. Foi instantâneo. A sua mão segurando-me era forte e confiante. Deixei-me levar pelo momento, permitindo apreciar o calor do seu toque. E, se não bastasse a confusão dos meus sentimentos, as perguntas sem respostas, o medo e as dúvidas iminentes, o destino mais uma vez resolveu intervir.

— Fabi, vou até a outra sala dar uma olhada no Sérgio e na Sandra. Volto logo. Você precisa de alguma coisa? — A solicitude do meu marido não merecia os meus pensamentos confusos, muito menos minha postura errônea.

— Não, estou bem.

Na mesma hora, Gustavo parou por um instante, me olhou de soslaio e emitiu um sorriso satisfeito. Ambos precisávamos daquele momento a sós. Sabe o que aconteceu depois? Nada. Será? Ele continuou fazendo o seu trabalho. A sua mão na minha perna, de vez em quando, fazia um carinho com o dedo, quase inofensivo. O ambiente estava mais calmo, respirávamos com mais tranquilidade e ouvíamos a música que tocava – Whitesnake, “Fare Thee Well” – e nos comprometíamos com algo muito maior.

— Eu adoro essa música. — Encontrava-me tão relaxada, que o comentário saiu em voz alta. Gustavo interrompeu o trabalho e ergueu o rosto. Permanecemos em silêncio, buscando por uma compreensão, talvez, escondida em nossas faces. Ou quem sabe, o medo em pronunciar palavras imaturas e estragar o momento.

— Pode voltar na segunda para terminar? Só falta a pintura. O que acha? Se ficar difícil, concluo hoje, mas, realmente, gostaria de outra sessão.

Quando me questionou, percebi a falha na sua voz. O ar ao nosso redor, parecia rarefeito. Alguns segundos se passaram, enquanto minha resolução ficava suspensa entre nós. Minhas dúvidas com relação à resposta, tão nítidas quanto a ansiedade estampada na face de Gustavo.

Eu precisava de mais, principalmente de uma conclusão. Nunca me arrependi de nada na vida e não seria naquele momento que iria embora, simplesmente esquecendo aquela tarde. Não conseguiria. Estava errada? Sim. Mas e você? Partiria como se nada tivesse acontecido? Porque aconteceu. Alguma coisa mudou em mim naquela sala. Não tinha como fugir. Minha mente regressaria a todo instante ao nosso encontro, cutucando minha curiosidade. Não compreendia quais seriam as consequências. E mesmo se soubesse, não evitaria. Era mais forte do que a razão, mais forte do que tudo. Então fiz a única coisa que meu coração pediu.

— Posso. Eu posso voltar na segunda. — Expirou audivelmente, o sorriso crescendo até preencher todo o seu rosto. Gustavo meneou a cabeça, antes de voltar ao trabalho.

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