Prólogo

eu  Prefiro  um  galoPe Soberano

À loucura  do  mundo me

entregar

(Zé Ramalho, em Canção Agalopada)

Curitibinha minha, de nossos dias, e de nossas noites

Curitiba, 1994

Taco El Pancho, cria do submundo. Apenas mais um super-herói não reconhecido. Taco saca a arma quando lhe falta a coragem para encarar nos olhos. Mas Taco El Pancho não é um covarde. É apenas prevenido.

Dingo Lingo Pedernero, o garoto insano, o nerd histriônico. O torcedor fanático. O colecionador frustrado por perder o Cavaleiro das Trevas1 original.

Taco nasceu numa gruta disforme, cheia de morcegos e baratas-tontas como ele. Taco, garoto de origem e pais desconhecidos. Perdido na selva suburbana, ele luta para encontrar sua identidade, entender seu sentido, sentir sua força, perceber sua alma.

Aos 21 anos, perambulando sem rumo pelas ruas desnudas de uma noite maltrapilha, reencontra a velha parceira das baladas mortais, Joanita. Jovem como ele, perdida como ele, nas trevas góticas da escuridão sem-fim. Bem sabe ele que a amizade nutrida por ela poderia estar em outro patamar. Joanita é uma jovem-velha guerreira, já enfastiada de sua luta inglória. Não é desonesta, embora também não tenha uma bandeira moral. Taco a conheceu nos bares da vida, e encantou-se pelo visual soturno e olhar perdido, porém marcante. Olhos quase verdes, com tons dissonantes variáveis de acordo com ambiente e humor. Talvez a única característica física marcante dela. Taco não se importava. De bar em bar, meio-fio em meio- fio, construíram uma amizade sólida, ligação entre almas atormentadas pela nulidade do pária clássico.

Dingo, por sua vez, nascido do outro lado da cidade, com pai e mãe definidos, uma infância problemática apenas pela pouca socialização e alguns problemas de saúde. Com a mente sempre ocupada pela Filosofia, pelos heróis de fantasia e pelos códigos de programação, sequer existia no mundo de Taco. Dingo conhecia muito de muita coisa, mas pouco do que importava. A vida. Os becos. As agruras. A devassidão da noite infinita, que cala o poeta e faz cantar o cantador mais infeliz. Ele ainda não percebera que havia mais problemas no mundo que uma derrota do seu time de coração. Bandeiras? Nenhuma. Alienação classe-média, nenhuma novidade. Alguma incompetência, talvez. Sexualidade indefinida por pura falta de experiência. Também com 21 anos, mera cronologia. Na vida, pouco mais que um bebê. Um mundo a descobrir, eo medo de se jogar. Amigos? Sim, alguns, bastante bons. Taco surgiu na sarjeta da indignidade e da decadência,

até sucumbir em uma instituição que o acolheu, bem como a vários de seus colegas. Foi adotado ainda criança, mas não vingou, fugiu de casa, e fugia e fugia, e assim vive, fugindo talvez não da vida, mas da responsabilidade em torná-la algo dotado de sentido. A ausência do sentido é parcialmente compensada pelos delírios megalomaníacos de uma pessoa sem qualquer planejamento concreto para atingir um objetivo. Não que haja algum objetivo, além de se deixar levar pela corrente marginal do submundo. Aprendeu minimamente a ler, mas a poesia chegava apenas através da música das catacumbas periféricas que faziam seu universo noturno. Mal via a luz do sol. Namorava a lua. A natureza, de certa forma, o impelia às calçadas sujas livres das paredes claustrofóbicas dos cidadãos comuns.

Dingo era um cidadão comum, criado entre paredes, sufocado pela família e pelas cobranças. Via no rock a sua lua. Um refúgio para sua alma poética, porém perdida e imperfeita. Horas a fio entre computadores e livros, vivendo a vida dos outros como se fosse sua. Um amante de futebol que passava tardes e noites assumindo uma personalidade calcada na ilusão de vitórias que não eram suas.

Em comum entre Dingo e Taco, a data e a hora de nascimento. Ambos nasceram “juntos”, embora distantes. Ru- mos drasticamente diferentes a partir do instante em que vieram ao mundo. Dingo encontrou um ambiente asséptico, insípido e pretensamente amoroso, classe média sedenta de grana, com- pradores de sonhos de goiaba. Um garoto moldado e modelado para ser histrionicamente feliz, vestindo seu terno e comendo fedelhas sorridentes. Nada disso funcionou, mas eles tentaram.

Taco não nasceu. Simplesmente caiu no mundo, e o mundo se encarregou de sacudi-lo e destrui-lo psicologicamente. Em todos os sentidos.

Dingo cresceu temendo Deus. Temendo traficantes. Temendo putas. Temendo santas. Temendo a todos. Mãe, pai, irmãos. Tudo. Até uma maldita aranha! Até uma porra de uma arma! Até um... Enfim. Nasceu para temer.

Taco não temia mais nada. Em sua vida entre Camus e Sartre, só restava mesmo esperar o tempo passar e aproveitar enquanto pudesse. Não havia o que temer, sem crença alguma. Não era temente a nada que não pudesse ser visto, tocado, beijado e encoxado.

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