Capítulo 3

Alyssa 

  A única farmácia do bairro, aberta por vinte quatro horas, ficava há quadras do abrigo. 

E  pra lá que eu  estou indo agora ,movida  por um tipo de energia e adrenalina  que eu não   imaginava que um corpo tão fraco e doente como o meu  fosse capaz de produzir de uma hora para a outra. O vento gelado chicoteando o meu rosto   Junto com a fina  e fria  garoa umedecendo o meu único casaco de moletom , não me incomoda como me incomodaria em outra situação. A febre também  não parece mais  tão  incômoda. E o meu estômago parou de protestar ,apesar de ainda doer de  fome.  

 Eu continuo andando.  

 Tudo  para salvar a vida de um estranho motoqueiro assassino.  

 Um lindo estranho motoqueiro assassino  que como  um toque de  mágica  , me fez confiar nele  quando já há  muito tempo  eu tinha deixado de confiar nas pessoas ,principalmente nos homens. Por que todos aqueles  que cruzaram  o meu caminho,   me oferecendo   gentileza e bondade,  sempre esperavam serem recompensados em troca. Eles se aproximavam ,se mostravam gentis e dispostos a me ajudar. Pediam para ouvir a minha história , mas assim que eu contava  , esperançosa que ia receber alguma ajuda, a amarga   verdade vinha à tona. O  que eles queriam era a certeza do quão  ferrada  eu estava pra aceitar as suas propostas sujas. 

Mas Tristan não. Ele não estava fingindo que se importava.Eu entendia muito bem  de fingimento pra saber disso. 

Aqueles intensos olhos de tigre , não saíram do meu rosto nenhum segundo enquanto eu contava a minha história. E depois ficou furioso com a minha mãe e Santiago pelo que fizeram comigo.  

Mas a minha confiança nele  é o que menos importa   uma vez que assim que ele ficar bom vai embora  e eu nunca mais o verei novamente.   

O que importa é salvá-lo.  Quando deixei o abrigo , vi que  a  toalha que pressionei sob o corte para estancar o sangue  já estava ficando ensopada. Ele estava sangrando e muito.  

   Alguns minutos  mais tarde, cheguei  à farmácia ,   que mais se parece com uma daquelas lojas de conveniência chique  onde você pode encontrar quase tudo  um pouco. O que é bom porque eu espero  conseguir alguma coisa pra comer ali também  uma vez que eu não tenho tanta   energia e nem tempo pra procurar um outro  lugar aberto a essa hora  pra comprar comida agora.   

 Não  quando um  um ferido dependia de mim. Quando eu digo alguma coisa pra comer ,eu me refiro a  aquelas  barriguinhas e biscoitos de cereais  light e  diet muito comum de se  encontrar em farmácias.  

A  campainha  ressoou pela loja notificando a minha entrada quando passei pela porta giratória. Peguei uma cesta e comecei a explorar pelos corredores e prateleiras  até encontrar o que tinha me levado até ali.  

  —Posso ajudá-la , moça  ? —   um  atendente perguntou atrás de mim. E logo em seguida,um segurança enorme com cara de poucos amigos se enfiou na minha frente e cruzou os braços enquanto me olhava feio. 

     Disfarçando a insegurança   que sempre sentia quando me via em situações como essa , quando as pessoas me tratavam   como um ser contagioso, me virei para falar com o  atendente. O segurança fez questão de mudar de lugar para que eu visse  , agora ,ele está do lado do atendente.  

—  Sim , obrigada. Onde fica o setor com os  itens de primeiros socorros ? Não estou encontrando. 

 É só me mostrar que eu mesma posso pegar o que preciso.  

  —Forcei um sorriso para ambos que não foi correspondido. Nenhuma novidade até então. 

—Entendo. —disse o  atendente,   franzindo  a testa e em seguida, estreitou um olho ao mesmo  tempo que puxou o canto dos lábios num sorriso claro de deboche.   

—   Claro que você pode pegar o que quiser , mas pra isso tem que ter  dinheiro para pagar.   —Correu os olhos para mim com certo  desprezo. — O que não é o seu caso. Acha que eu não reconheço um maldito viciado  sem teto  só de olhar para um  ? Sei o que veio fazer aqui  , mas já adianto que não vai conseguir. Então ,dê o fora antes que eu chame a polícia.

Meu Deus. De uma simples sem teto  faminta   eu passei pra uma viciada em drogas sem teto . Que progresso , não ?

—Eu não sou uma …

—Todos dizem a mesma coisa. Mas sempre querem a mesma coisa. Roubar ou pedir dinheiro. —Ele me interrompe e acena  pro segurança.    —Tire ela daqui. Em seguida , lamenta :

—Merda.   Não vejo a hora de ser transferido para outra loja . Não aguento mais ter que lidar com esse tipo de lixo. E esse bairro está cheio.  Quando essas pragas de sem teto  não estão pedindo dinheiro pros  clientes na porta da farmácia , estão tentando  roubar. 

 O segurança me olhou feio e apontou para a porta.  — Se retire  ou eu mesmo faço isso por você.  

Pensei em sair dali correndo como sempre fazia ,mas o rosto cheio de dor de Tristan   veio na minha mente e isso   foi o bastante para uma súbita fúria  esquentar o meu sangue e com ela uma coragem que nunca tive antes em situações de humilhações  como essa. 

Tirei o maço de dinheiro  do bolso do casaco  e balancei no ar com brusquidão.     

—Isso aqui é  suficiente para convencê-lo que eu  tenho como pagar,sr ? Ou  precisa de  mais alguma prova ? 

—Perguntei, o encarando.    

As bochechas rechonchudas do atendente ficaram vermelhas. Ele olhou para o segurança e acenou o cabeça ,o que logo vi que era um sinal para o segurança se afastar porque foi o que osegurança  fez. Ele  afastou ,mas só alguns passos e ainda me olhava feio.  O atendente fingiu uma tosse e abriu um sorriso falso. 

 — É,.. eu sinto muito, moça. Eu cometi um erro aqui. Na verdade,.. —Ele olhou irritado  para o segurança— Paolo cometeu um erro e  me  levou a cometê-lo também. 

 Ele  confundiu  você  com  uma  garota sem teto  que ele  viu  ser  expulsa pelo amigo  de um restaurante  perto daqui  dias atrás.   

O meu coração disparou e o meu rosto  queimou de vergonha. 

Ele não se confundiu.  Era eu essa  sem teto   que tinha sido  expulsa do restaurante.  Eu não  tinha ido lá para pedir comida ou roubar , fui pedir um emprego , mas o   segurança do lugar era o mesmo que tinha me  visto  revirando a lata de lixo duas noites antes disso e deduziu que eu estava lá pra pedir comida ou  dinheiro para os clientes.  

—Eu realmente sinto muito. E evidentemente ,Paolo também , não é mesmo Paolo ? —disse ele com um olhar irritado pro segurança que concordou e me pediu desculpas  meio contra gosto. 

Era incrível o  efeito que o  dinheiro causava em algumas pessoas.   

  Deixei isso pra lá  e  dizendo  que aceitava as  desculpas deles   , apesar de não ser verdade,   segui  na direção do  corredor indicado por ele que era onde eu ia encontrar tudo  que ia  precisar  para tratar do  ferimento de Tristan. Já no corredor e antes de eu começar a pegar qualquer coisa das prateleiras , vi quando o atendente tirou o celular do bolso e virou de costas para mim. Enquanto isso,o segurança me observava sem disfarçar.             

O  meu coração disparou feito um tambor e as minhas pernas ficaram  moles e trêmulas  com a possibilidade de ele estar chamando  a polícia. Uma notável sem teto com tanto dinheiro no bolso  em uma farmácia atrás de itens de  primeiros socorros  era muito suspeito. Lágrimas começaram a brotar  nos  meus  olhos e com dor no coração por ter que  voltar pro abrigo sem nada para cuidar do ferimento de Tristan     ,comecei a me afastar indo na direção oposta do  atendente . Se eu tivesse sorte ,conseguiria sair dali sem que ele ou o segurança me visse e antes da polícia chegar. 

—Ei ,moça ! —O atendente me chamou ao mesmo tempo que ouvi os  seus passos apressados para me alcançar.

Correr ia ser  pior. Só ia  reforçar as  suspeitas dele  sobre mim. 

Eu parei no meio do corredor e esperei ele se aproximar. O meu coração batia rápido e as mãos começaram a suar frio. 

—Aqui ,eu trouxe uma cesta. Temos carrinhos também se preferir  —disse ele meio ofegante. Eu me virei e olhei para ele que tinha uma cesta na mão. E se fosse só uma distração  para me segurar ali até a polícia chegar ? 

 —Olha , eu sei que você disse que pode encontrar tudo sozinha. —disse ele ainda segurando a cesta estendida para mim. —Mas depois do que eu disse   ,eu gostaria muito de atendê-la . É só você me dizer do que precisa que eu pego pra você. Qualquer coisa.  Por favor , moça...   —ele baixou a cabeça parecendo derrotado. — Não me denuncie. Eu tenho dois filhos pra sustentar.

—O que ? — Perguntei confusa.

Muito confusa por sinal. 

—O meu gerente  viu tudo pelas câmeras  e disse que se você me   processar  ele vai me demitir. —disse nervoso e parecendo muito  envergonhado também. 

Oh , Deus , obrigada. Muito obrigada. 

—  Não se preocupe. Eu não vou fazer isso.  Só quero pegar o que vim buscar  e ir embora. 

 Ele respira com muito alívio e ele  não é o único porque eu  também respiro. 

  —Então ,do que   precisa ? —Perguntou ele muito disposto a me ajudar. Falei do que precisava e  ele foi  jogando dentro da cesta. Quando mencionei os remédios e o kit de sutura,notei um ar de desconfiança e curiosidade no rosto dele  , mas não fez nenhum comentário ou perguntas , só colocou tudo  na cesta.

 A caminho do  caixa, encontrei as barras de cereais e joguei várias delas na cesta e duas garrafas de água também. 

Após pagar por  tudo,  voltei para o abrigo. A chuva fina de antes tinha engrossado um pouco, mas ainda assim não incomodava.   Quando cheguei no abrigo   empurrei a porta e entrei ,  

com o coração saltitando rápido e forte de ansiedade  para saber se Tristan  estava bem. 

Mas tudo que encontrei foi um colchão vazio.  

Decepção atingiu o meu peito. 

 Ele foi  embora. Todo esforço que tinha feito por ele tinha sido inútil. Claro que já esperava que ele fosse embora, mas não ferido daquele jeito e sem menos se despedir. No momento que pensei  nisso ,na despedida, 

 ri  de mim mesma. 

 Se despedir ? Meu Deus,  que coisa ridícula de se  pensar.  

O homem era   um assassino. Um assassino que colocou um sorriso arrogante ,frio e   presunçoso nos lábios  logo depois de ter  dito que tinha perdido as contas dos homens que tinha  matado hoje. 

 Só hoje. Os assassinos não se importam com ninguém a não ser eles mesmos. São frios , cruéis e sem coração. 

Por que raios  abriria uma exceção para uma sem teto ?  E além disso, eu devia estar comemorando  por ele ter me deixado viva e não se lamentando por ele ter ido  embora sem se despedir. É,eu deveria , mas acontece que não 

 sinto animada com a partida dele  para comemorar. Eu começo a sentir frio e só então constato que é porque as roupas estão úmidas pela chuva gelada que tomei enquanto voltava pro abrigo.  E eu outro casaco  além do  que estou vestindo. Bufando ,eu jogo  a sacola  da farmácia no colchão que, com exceção dos meus remédios para gripe e as barras de cereais ,todo o resto é inútil. Inútil porque eu não tenho mais nenhum ferido para ser tratado aqui. Eu vou até a minha mochila para pegar uma roupa seca,  resmungando insultos  sobre idiotas assassinos sem coração enquanto faço isso. Mas parei  assim que  lembrei  do dinheiro no meu  bolso. É muito dinheiro. E ele deixou comigo. Eu retiro todos  os    insultos que joguei  sobre ele , principalmente o  assassino frio sem coração. Com esse dinheiro , da  comprar uma roupa nova e com uma boa economia,  consigo comprar comida por uns dois meses. Mas eu espero conseguir um emprego  antes disso.  Não vou mais parecer uma mendiga. 

 Por causa dele. Ele fez isso por mim. O assassino que eu  acabei   de julgar que não tem um  coração. 

Por que eu ainda  não estou pulando de felicidade ?   

"Por que você sente falta dele. E sabe que não vê-lo de novo.  

Sim ,eu sinto a falta  dele. Mas  também estou  furiosa com ele  por ter ido embora ferido daquele jeito. E triste por saber que não vê-lo de novo. 

 O som da porta sendo empurrada me fez pular de susto e ainda  assustada , olhei para trás ,na direção da porta. E lá estava ele ,com  uma mochila em uma  mão  e uma  garrafa de uísque na outra. Foi impossível conter o sorriso no meu rosto.  

    

              

    

           

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