1982

O sol nasce fraquinho na manhã de Outono em São Paulo, os pardais mais reclamam do que cantam por entre árvores, telhados das casas e até no meio da rua, que ainda estão vazias, mas logo haverá a agitação de crianças seguindo para as escolas, pais seguindo para o trabalho, o movimento do comércio abrindo as portas e de trabalhadores e estudantes correndo atrás de ônibus lotados, outros batendo com força a porta de seus opalas, fuscas, variants, brasílias e corcéis, todos operários de uma cidade em pleno progresso. O comércio do bairro e a forma como as pessoas se conhecem e se cumprimentam nos remete uma cidadezinha qualquer do interior, a maioria dos moradores locais se conhecem por muitos anos, tornando o local um lugar razoavelmente tranquilo e acolhedor. A avenida principal ainda é cercada por imóveis de arquitetura antiga do século passado que combina muito bem com o clima da cidade. O bairro surgiu da fazenda da família Ré e cresceu rapidamente tornando-se um dos principais bairros da Zona Leste de São Paulo, a Vila Ré. Na rua Jarauara nº 275, há uma casinha simples de cor azul clara, lá o movimento já é intenso, Regina está preparando o café da manhã para a família, usando seu roupão verde musgo e bobs coloridos nos cabelos castanhos, grandes olhos negros e uma boca agraciada por lábios carnudos, os trajes estranhos não comprometiam a beleza da mulher que tinha muita habilidade no manuseio das panelas e dos talheres, sentada em uma cadeira e debruçada à mesa está Aninha, de cinco anos com sua boneca ´Chorinho`, a garotinha está com o uniforme escolar, da escolinha Peixinho Dourado e nem liga para o que a mãe faz, preocupa-se apenas em dar um pedaço de sua torrada com margarina para a boneca, a menina tem os cabelos negros e lisos, com a franjinha que encanta sua mãe, pois a deixa com o rosto de uma indiazinha, a pequena é muito concentrada em tudo o que faz e sempre encontra um jeito de perturbar seu irmão mais velho, seja entregando alguma peripécia que ele fez ou o provocando para que receba uma bronca da mãe. Em cima da geladeira vermelha está um rádio de pilhas, preto, pequeno, mas com o som potente, sintonizado em uma rádio AM que acaba de transmitir o programa policial “Gil Gomes” e em seguida inicia a transmissão das melhores 10 músicas que estão na parada de sucesso, e o café da manhã passa a ser embalado neste momento pela música “Você não soube me amar” da banda Blitz. Thomaz de dez anos está escovando os dentes, com os olhos inchados de sono e o cabelo bagunçado, após lavar o rosto, segue cambaleando para o quarto onde veste o uniforme da escola, senta-se na cama e puxa a calça jeans até a cintura, veste a camiseta branca com detalhes em azul marinho nas mangas e no colarinho, estilizada com o nome da escola Estadual Dom João I.; coloca as meias brancas e por alguns momentos ele se atrapalha amarrando os cadarços do seu desgastado tênis “Bamba” azul marinho, em seguida sai arrastando a mochila de lona, parecida com a usada por pracinhas do exército brasileiro, ele chega na cozinha, onde seu pão francês amanhecido e requentado com margarina em uma misteira de cabos de madeira e o café com leite já estão á sua espera. O garoto é magro e miúdo, aparentemente não irá crescer além da média dos 1,70m da família, seu cabelo tem o corte reco, o mais barato da barbearia e mais fácil de cuidar. Hoje ele está muito feliz porque sua mãe prometera comprar um tênis novo para frequentar a Educação Física na escola, e o que mais lhe empolgava é que o professor preguiçosamente apenas jogava a bola de futebol de salão na quadra, montava os times e deixava os moleques se divertindo os 45 minutos de aula inteiros, enquanto que as meninas brincavam com uma bola de vôlei ao redor da quadra, e Thomaz estava esperançoso em ganhar um kichute para praticar seu esporte favorito, o futebol.

            _Dormiu bem mocinho? – Regina lhe cumprimenta enquanto prepara mais algumas torradas para o marido que logo chegará á mesa.

            _Mais ou menos mãe, sonhei a noite toda. – O garoto desanima ao se lembrar do sonho que teve olhando para a fumaça que sai de seu copo de café-com-leite e ganha os ares da cozinha. 

_Com o que você sonhou? – A resposta de Thomaz desperta a curiosidade em Regina que conversa sem parar o que está fazendo na pia da cozinha.

            _Eu sonhei que era um craque do Santos Futebol Clube, o melhor camisa 10 do Brasil e quando acabou o jogo da final que fomos campeões Paulista tive que correr para o aeroporto pegar um avião e seguir para o Rio de janeiro onde ia me apresentar a seleção brasileira, que estava concentrada, se preparando para a Copa do Mundo.           _Mas então o sonho foi bom. – Regina conversava de costa para o garoto enquanto já ia lavando a louça.

            _Foi bom sim, mas sei lá, acordei estranho depois desse sonho.

            _Difícil te entender mocinho.

            _Sei lá! – O garoto confessou o porquê de seu desânimo com o sonho. _Acho que é porque nunca serei um craque como o Pelé, Garrincha, Carlos Alberto Torres.

            _Nunca diga nunca, tome seu café que a Kombi escolar do Tio Zé logo vai estar aí.

            Rodrigo, o pai de Thomaz passa correndo pela cozinha e engole uma xícara de café, dá um selinho em Regina e outros dois, um em cada um dos filhos e em seguida sai pela porta rumo ao trabalho. Rodrigo é bem apresentável, chama a atenção das garotas, tem estatura mediana e é forte, carrega um sorriso fácil para as mulheres, usa um topete bem torneado e costeletas típicas da moda, uma barba rala com bigode, herança de uma tendência não muito distante vivida nos anos 70, estava usando uma roupa bem no seu estilo, uma camiseta branca por baixo de uma camisa de flanela xadrez no tom vermelho e calça jeans tradicional acompanhada de um cinto preto com uma enorme fivela e botas pretas. Trabalha na construção civil como eletricista, estava trabalhando na obra de um condomínio industrial na zona sul da cidade, mas seu salário não era o suficiente para a família ter uma vida segura e para agravar a situação ele ainda gastava parte do salário com mulheres e amigos. Regina ajudava trabalhando em casa como costureira, porém não era o bastante, constantemente a família passava por situações difíceis, ao menos a casa era dela, um sobrado que recebera de herança de seus pais, eles haviam falecido em um acidente automobilístico há dois anos, a residência era modesta, mas tinha três quartos, o do casal, o da Aninha e outro do Thomaz, uma sala média bem arrumada com uma TV de 20 polegadas, um sofá de couro vermelho, uma mesinha de centro que ficava em um canto ao lado do rack da TV com um abajur de centro em formato cilíndrico com água e um tipo de pó prateado, quando era aceso, se alguém mexesse nele, esta espécie de pó movimentava-se formando sombras dinâmicas na parede, era diferente e hipnotizador; no canto oposto do rack da TV ficava uma vitrola, pequena, que ao ser fechada se transformava em uma maleta, era muito prática para ser transportada, mas ficava ali permanentemente, ao ser aberta, uma de suas laterais ficava em pé e tinha o alto-falante, o som não era potente mas o suficiente para as crianças ouvirem seus LP’s infantis; nos fundos da casa havia um quintal que era parte cimentado e outra parte gramado, no fundo ficava a lavanderia e um quartinho com banheiro usado apenas para Regina passar as roupas, mas havia uma cama para visitas de emergência, que nunca apareciam. A fachada da casa tinha uma garagem, um pequeno corredor no meio que ligava o portão social à porta da sala e um pequeno jardim, contornando a garagem chegava-se ao outro corredor que fazia ligação com o quintal dos fundos.

A buzina da Kombi escolar toca três vezes, Aninha agarrada a sua boneca pega a mochila e corre se despedir de sua mãe com um selinho, em seguida parte para a Kombi, Thomaz faz o mesmo e também segue para fora de casa. O garoto vai atrás sentado no último banco do veículo que já estava com outras quatro crianças, bem menos animado, para ele encarar algumas horas na escola era muito difícil, principalmente no dia de hoje que haveria aula de educação física. Era um conflito de emoções, pois seria a oportunidade de fazer o que mais gostava, jogar futebol, em contrapartida ele teria que encarar uma dupla de garotos que atazanavam sua vida, eles praticavam algo que na época nem era discutível, ao contrário, era muito comum entre os jovens, o bullying.

            Aninha fica na creche onde permanecerá em período integral, já se acostumou com a rotina, ela adora as “tias” e os amiguinhos, quando o Tio Zé estaciona em frente à escolinha Peixinho Dourado a Tia Maria José já está à porta recebendo as crianças e como de costume recebe Aninha com um forte abraço. Cinco minutos depois Thomaz era entregue na Escola Estadual Dom João I, assim que passa pelo portão de entrada principal, alguns garotos que estavam sentados no meio fio conversando já o incomodam:

            _Chegou o “Sr. Sardinha”.- André era o mais chato e o mais troncudinho, por isso tinha o título de  líder da turma de insuportáveis, era repetente e portanto um ano mais velho que a maioria dos garotos da turma, usava um boné de aba reta de lado na cabeça, seu cabelo cobria as orelhas e parte do pescoço, usava uma camiseta que não era do uniforme da escola e sua calça jeans era larga e folgada, aparentava estar caindo e a barra era rasgada cobrindo quase que totalmente seu tênis; seu estilo de vestir-se era conhecido como “função”, uma gíria diferente para evitar o rótulo de malandro.

            _Vai jogar aquele futebolzinho de pé de rato hoje? – Rubens era um garoto grande e obeso e melhor amigo de André, não tinha uma personalidade muito forte e compatível com seu tamanho e por isso era constantemente manipulado por seu parceiro, algumas vezes era nítido que ele não concordava com algo, mas fazia pelo amigo. Usava calça jeans apertada com o “cofrinho” á mostra, e a camiseta da escola ficava colada em sua barriga mostrando toda sua saliência, mas sua parceria com André era a garantia que ninguém o incomodaria com comentários e brincadeiras maldosas.

            Eles não tinham um motivo exato para achincalharem Thomaz, mesmo porque nada justificaria atos tão cruéis, mas usavam como desculpa o fato do garoto ser torcedor do Santos F. C.

            Thomaz ignora as provocações, mas quando passa pela dupla, já ultrapassando os limites do portão da escola e do lado de dentro, um pé mal-intencionado surge entre os seus e ele tropeça se estabacando no chão, sua calça rasga no joelho e ele rala a palma da mão. Lágrimas lhe escorrem pelo rosto, mais pela humilhação do que pelo machucado, e os garotos se afastam rindo, foi tudo muito rápido e ninguém que estava por perto percebeu a maldade dos jovens, nem a inspetora de alunos que recebia as crianças na porta da escola. Thomaz passa correndo pelo pátio onde já há muitos alunos aguardando a solenidade patriótica diária e vai para o banheiro, chora mais um pouco escondido dentro de um box, fica ali escondendo seu sofrimento enquanto tradicionalmente inicia o toque do hino nacional brasileiro antes dos alunos seguirem para a sala de aula, depois ele sai, lava as mãos, com mais cuidado a mão e o joelho ralados usando papel higiênico, as lágrimas ainda caem, mas ele respira fundo e segue para a sala de aula. O garoto sofre com o bullying há algum tempo, porém não denuncia os meninos à diretoria da escola porque já foi ameaçado que caso faça isso levará uma surra maior ainda na rua.

            Ele sai cautelosamente do banheiro, querendo evitar que alguém o veja, coloca a cabeça para fora do banheiro e vê a sua frente o pátio totalmente vazio, apenas uma “tia” merendeira atravessando com uma panela nas mãos, no lado oposto direito há um pequeno palco para eventos dos alunos e ao lado a cantina do “tio” Oliveira, tudo em silêncio, do lado oposto em frente há uma rampa de acesso á quadra de esportes que fica em um patamar superior, um local aberto rodeado por um barranco gramado que os alunos usavam de arquibancada. Ele olha para seu lado esquerdo onde está a cozinha da escola, e vê as “tias” merendeiras ocupadas mexendo nas panelas.

            Tom sai rapidamente do banheiro e entra no corredor que está ao seu lado direito, era um local com pouca iluminação e as cores verde musgo da parede com uma faixa cinza abaixo tornavam tudo ainda mais tenebroso, talvez fizessem isso de propósito, assim como a lenda da loira do banheiro, para evitar que as crianças ficassem pedindo para sair da sala de aula o tempo todo, ele caminha pelo longo corredor da escola, algumas lâmpadas florescentes estão apagadas e outras piscam fazendo um barulho peculiar de estalos, o garoto sentia calafrios com aquele ambiente sinistro, logo ele passa por algumas salas de aula, as portas são pintadas de cinza e tem o número correspondente pintado na cor amarela no centro ao alto, sua sala é a última do corredor localizada à esquerda, a de número dez, neste momento ele está passando pela sala de número quatro, ouvindo professores falando alto a fim de chamar a atenção dos alunos que ainda se acomodam em seus lugares, ouve risadas, arrastar de cadeiras, bater de apagador no quadro negro, Tom parece estar andando em câmera lenta, em transe, queria que aquela caminhada até sua sala de aula demorasse uma eternidade e chegasse quando tudo estivesse acabado, mas, a aula já começou e ele pede licença para entrar batendo duas vezes na porta com a articulação de seus dedos médio e indicador, a Prof.ª Dilamar autoriza que o garoto entre e lentamente ele caminha tentando disfarçar a dor, porém ela percebe que ele estava chorando, pois seu rosto e olhos estão inchados e vermelhos, e a prof.ª também percebe a calça rasgada.

            _Thomaz! Você está bem? O que houve? – Ela se preocupa com o garoto, era uma professora muito amável e se preocupava em demasia com o bem-estar de seus alunos dentro e fora da sala de aula. Aparentava seus 40 anos de idade, contudo com muita disposição e criatividade de quem ama a profissão, longe do estereótipo de professora idosa com coque e correntinha nos óculos, ela era alta, de longos cabelos negros, usava lentes corretivas em uma armação apropriada a sua idade e tinha uma simpatia contagiante.

            _Ele tem as pernas bobas, deve ter tropeçado no próprio pé – André tirou um sarrinho e a sala toda riu de Thomaz.

            _Xiiiuu! Silêncio! – A prof.ª Dilamar era atenciosa e justa. E então Thomaz? Você está bem?

            _Tudo bem professora, eu tropecei quando desci da Kombi, mas estou bem.

            _Viu Profe? Eu falei! – André não perdia uma oportunidade de zuar Thomaz, novamente a sala inteira gargalhou.

            _Muito bem, silêncio, Thomaz sente-se e se precisar de algo me avise. – Dilamar sempre cuidadosa, ela sabia que aquele bullyng era frequente, já havia informado a diretoria e os pais, mas pelo jeito nada estava resolvido.

            Durante toda aula a dupla de engraçadinhos perturba Thomaz, eles sentam nas últimas carteiras e Tom na segunda carteira da frente o que facilita a ação de André e Rubens. A dupla joga bolas de papel, fazem do tubo da caneta esferográfica uma zarabatana atirando pedacinhos de borracha, um verdadeiro inferno. Às dez horas e trinta minutos a sala é dispensada para irem à aula de educação física e hoje conforme o prof. Mateus prometeu, seria feito uma avaliação para escolher alguns garotos e montar um time de futebol para competirem em um campeonato interescolar promovido pela prefeitura. Thomaz estava empolgado, seria um sonho competir em um campeonato de verdade, colocou o colete laranja e foi para quadra jogar contra o time de colete verde.

            O Prof. Mateus é um jovem de 25 anos amante dos esportes que não recebe muito auxilio do Estado, faz o que está ao seu alcance para que a molecada pudesse aproveitar o máximo daqueles momentos esportivos. Mateus solta a bola no meio da quadra e a partida se inicia, Thomaz é o mais entusiasmado da turma, e o mais esforçado, corre muito se desmarcando e é ágil com a bola nos pés, ligeiro para dar dribles e em um avanço ao ataque ele dribla um zagueiro colocando a bola à frente e chega chutando em diagonal para o gol, a redonda voa rapidamente em direção ao gol e o goleiro toca as pontas dos dedos na bola desviando a trajetória da gorducha, ela bate na trave com força e volta batendo na costa do goleiro que perdido não vê a bola entrar no gol, o time adversário pega a bola e seguem para o reinicio da partida no meio da quadra. Os opositores de Thomaz passam por ele olhando feio, chamando de “ruinzão”, “pereba”, “caroço”, André, furioso com o garoto, resolve dar-lhe uma lição, se aproxima de Rubens que está jogando na zaga e dá uma ordem:

            _Dá um tranco no nanico e joga ele longe.

            Rubens sorri concordando, ele não se preocupa com o teste, detestava esportes, principalmente futebol, sabia que jamais faria uma diferença positiva em qualquer esporte por ser obeso, estava apenas completando o time, mas se animou com a ideia de bater em Thomaz.

            Com a partida reiniciada e trocas de passes de um lado á outro, o time de colete verde perde a posse de bola e o time laranja inicia uma arrancada, André propositalmente passa a bola para Thomaz, ele nunca faria isso em uma situação normal, sempre ignorava a presença do garoto, mas ele tinha outra intenção, Thomaz pegou a bola e conseguiu dominar, quando deu um toque à frente recebeu um tranco de ombro de Rubens que era o dobro de seu tamanho, o pequeno Tom voou longe e se estabacou no chão, o jogo parou e a falta foi marcada.

            Como está Thomaz? – O Prof.º pergunta preocupado.

            Thomaz olha para a dupla de algozes e os vê rindo muito, o garoto desanimado abaixa a cabeça e responde ao professor:

            _Estou bem, mas acho que não conseguirei continuar no jogo.

            _Vamos garoto, tem que persistir, ter garra para conseguir algo, faça um esforço a mais.

            Thomaz novamente olha para a dupla de maus feitores juvenis, André o ameaça passando o dedo pela garganta, uma ameaça de degola e Rubens balança a cabeça em negativa, assim, o garoto abaixa a cabeça desanimado:

            _Não conseguirei professor, meu cotovelo está doendo muito.

            _Muito bem então, vamos reiniciar o jogo, Antônio entre no lugar de Thomaz, o time laranja cobra a falta, tiro livre. – Determinou Mateus.

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