1 - Uma Nova Vida

As crianças riam sem parar. Apontavam os dedos pequenos e pontiagudos para ele. Carregavam nos olhos um vermelho vivo animalesco. Algumas babavam de tanto dar risada, outras batiam a cabeça sem parar na mesa escolar. Olhou para a professora, procurando por ajuda. Queria gritar, mas não havia voz. A Sra. Campbell permanecia de frente para o quadro escuro e escrevia com as próprias unhas, num estado catatônico: “VOCÊ É UM MENINO MAU! NINGUÉM GOSTA DE VOCÊ!”. Não havia portas ou janelas. Não havia escape.

Peter acordou com o corpo encharcado de um suor frio. Tais pesadelos haviam se tornado recorrentes nos últimos dias, mas esse foi diferente. Real. A Sra. Campbell aparentava ser a mesma de sua lembrança, mesmo não tendo visto a pinta peluda que ela cultivava no canto da boca. Depois de tantos anos... Nos últimos dias, as lembranças de tudo que envolvia sua cidade natal, Melford, teimavam em querer sair do buraco que Peter as havia enterrado. Os sonhos começaram com poucos detalhes, por baixo de um filtro preto e branco, no entanto, elas começaram a ganhar cor, sons e movimento. E agora elas até conseguiam despertá-lo. Colocou a mão sobre seu peito, como se quisesse segurar o próprio coração que ainda pulsava com vigor. Lavou o rosto, tomou o último calmante da cartela e, antes que pudesse voltar para a cama, ouviu o som alarmante do despertador.

“Merda.”

Sandra já o esperava em frente ao prédio do jornal local Daily Elmont, onde Peter trabalhava como um dos revisores — e às quintas tinha uma pequena coluna a qual escrevia sobre personalidades locais que fizessem parte da história do Condado de Nassau, em Long Island — o que poderia facilmente ser substituído por “Pessoas que ninguém dá a mínima.”.

— Nossa, que olheiras são essas? — perguntou, oferecendo um copo de café com leite.

— Não é nada...

— “Não é nada”? Me engana que eu gosto!

Josh surgiu sorrateiro ao lado, com um largo sorriso reptiliano.

— Isso na minha terra tem um nome...

— Ah, Josh, nos poupe... — disse Sandra, revirando os olhos.

— Não, sério! Tem um nome mesmo. Não é sacanagem, não! — disse, com o semblante sereno e amigável.

— Está beleza então... Como isso se chama na sua terra? — perguntou Peter, vencido, mas já esperando o pior.

— Surra de sexo! É isso que é!

— Ah, cara! — disse Sandra, inconformada e tentando acertar o ombro de Josh com a palma da mão — Sério que você já começa o dia nessa vibe?

— Não, Josh, não tive uma surra de sexo, mas agradeço a informação.

— Ah, é? E porque você ficou vermelho?

— Quê?

Peter levou a mão ao rosto, como se tentasse esconder qualquer coisa chamativa. Olhou para Sandra e pensou ter visto um olhar do tipo: “É mesmo, Sr. Peter?”.

— É, meu amigo. Um dia chego nesse teu nível de pegação — disse Josh, antes de adiantar o passo e adentrar o prédio.

— Sandra, você sabe que não tem nada a ver isso que esse maluco falou, né? Assim, só para deixar claro...

— Ai, ai, quem sou eu para dizer que vocês não podem ter as suas noitadas... — disse, desdenhando da situação. Sem dar tempo para Peter se defender, emendou: — Mas então, já tem alguém em mente para sua coluna? — perguntou, antes de bebericar o café.

— Como assim? Hoje a coluna é sua, doida — respondeu, carregado de certeza. Sandra parou em frente ao porteiro do prédio.

— Você está de brincadeira, né? Hoje é quinta, cara! É a sua coluna.

Peter, que segurando o copo cheio do ardente café, virou o corpo para Sandra, mas não sem antes esbarrar o braço e derrubar parte da bebida na extravagante mulher vestida com um belo sobretudo branco, óculos escuros e cabelo castanho enrijecido com um forte laquê.

— Meu Deus! Que absurdo é esse?! — gritou ela, enquanto andava para trás. Bateu a perna em uma cadeira — que depois ela diria que alguém havia colocado para fazê-la cair — e tombou, rasgando o vestido de cima a baixo na lateral.

— Sra. Stuart! Me desculpa! — disse Peter, tentando levantá-la, ao mesmo tempo em que limpava o café no vestido da mulher, o que só espalhava mais a sujeira.

— Me solta! Para de me agarrar! Joseph! Joseph!

O porteiro — que mais parecia um descendente dos pigmeus, e cuja barriga avantajada não permitia que a camisa permanecesse fechada pelos botões —, saiu da pequena guarita e ajudou a Sra. Stuart.

— Perdoe-me, madame! Perdoe-me!

Dizia o coitado, com a testa molhada de suor.

Sandra permanecia afastada e morria de rir com a cena digna de um circo, mesmo sabendo que aquilo poderia não terminar bem para Peter. Mas que ela estava adorando ver a esposa do redator-chefe naquele estado, ah, isso estava. Uma mulher que havia feito a cabeça do marido para que não houvesse uma bonificação no Natal, porque “o jornal não é caridade”, coisa boa não era.

— Desculpa, Sra. Stuart, eu não te vi...

Ela virou a cabeça, fulminando os olhos roxos de Peter.

— Me leva de volta para o carro, Joseph. E o que vocês tão olhando? — perguntou para alguns funcionários que acompanhavam toda aquela cena. — Podem ter certeza de que o chefe de vocês vai ficar sabendo disso! — E olhou para Peter outra vez antes de entrar no carro.

— Mas que... azar, hein? — disse Sandra, com os lábios apertados sufocando a risada.

— Isso, ri mesmo! Você acha que não vi você gargalhando enquanto eu tava no sufoco? — retrucou Peter, jogando a arma do crime no lixo.

— Não adianta descontar no café, não. Quem mandou participar de uma surra de sexo?

Peter teria dado uma risada, caso não estivesse preocupado om o seu futuro. Primeiro, os pesadelos, agora isso.

“Vou ter que procurar outro emprego...?”

Ao chegarem no 3º andar, Josh os aguardava sentado na cadeira de Peter.

— E aí, Peter? Quer um cafezinho? Fiquei sabendo que você derramou o seu.

Outros funcionários, que já estavam em suas baias, gargalharam junto com Josh.

“É, claro. Uma boa fofoca tende a ser mais inflamável do que gasolina.”

— É uma sensação única, agora se puder liberar o meu espaço aí, vai ser bacana.

— E não esquece daquela notícia que te pedi já tem três dias — completou Sandra.

— O estagiário sempre se ferra... — disse Josh, levantando-se e indo em direção as baias dos estagiários.

— Sandra, eu esqueci completamente que hoje era quinta... Não sei onde que eu tava com a cabeça...

— Relaxa! Eu tenho umas entrevistas antigas que eu deixo guardadas aqui no computador. É só escolher uma das maravilhosas personalidades de nossa belíssima cidade e arrebentar a boca do balão.

— Arrebentar a boca do balão? Sério mesmo?

— Bom, pelo menos combina com a idade do pessoal que você escreve e de quem lê sua coluna! — disse Sandra, com uma risada.

Peter agarrou o calendário de papel à sua frente e fez o movimento como se fosse lançá-lo em Sandra.

— Ah é, bonitão? Gostou de tacar café nos outros, e agora vai adicionar objetos mais sólidos ao arsenal?

Antes que Peter pudesse formular uma resposta, Josh atendeu ao telefone, que gritava sem parar logo pela manhã, o que nunca era bom sinal.

— Peter, o Jimmy quer falar com você lá na sala dele — disse, com o telefone na mão e o rosto sério. — E pelo tom dele, é melhor ir preparado...

— Você não está me sacaneando?

— Cara, até queria, mas a parada é séria mesmo.

— Boa sorte — disse Sandra, por último — Pode deixar que eu deixo separado para você alguma entrevista.

Peter assentiu e se dirigiu para o último andar.

A sala de Jimmy era simples, mas passava a sua mensagem com eficácia. Retratos, troféus, diplomas, e uma cesta de lixou que sempre estava vazia, pois Jimmy gostava de usar a janela de trás como a sua “grande cesta ao ar livre”. Sempre que acertava essa “cesta”, dizia que estava ajudando a sociedade na criação de novos empregos. “Afinal, o pobre precisa ter o que varrer!”

— Pode se sentar, Peter...

Levantou-se e caminhou com as mãos para trás. Nesse trajeto, ele passou a língua entre os dentes e fez um barulho de sucção para tentar tirar um pedaço de alface teimoso. Peter fechou os olhos e respirou fundo. Ao sentir as mãos pesadas de Jimmy em seu ombro, teve vontade de levantar-se com um salto e sair correndo.

— Você sabe que eu prezo por todos os trabalhadores deste prédio, correto?

“Não.”

— Claro, Jimmy.

— Você também sabe que parte o meu coração ter que ser mais... Contundente com um funcionário meu, correto?

“Não.”

— Correto?

— Sim, Jimmy...

Jimmy parou de apertar os ombros tensos de Peter e parou de frente para o seu diploma na parede.

— Sabe como eu consegui isso, Peter? Foi com muito esforço e dedicação! — Tornou a se virar. — Dedicação essa que não estou vendo em você!

— Jimmy, eu...

— Não me interrompa! — gritou e bateu com a mão na mesa, o que derrubou o retrato do casal feliz. — Você tem sido displicente, e se eu não vir uma mudança em sua postura, vou ter que te colocar na rua, está me ouvindo?!

— Mas...

— E tem mais! Não é porque você tem seus probleminhas de saúde, que para mim é balela, que vou ter pena de vagabundo!

Peter começou a sentir um odor estranho na sala. Como terra molhada. E o cheiro aumentava, à medida que a raiva crescia em seu peito. Precisava controlar aquilo, fosse o que fosse. Fechou os punhos com força, imaginando estar segurando nas rédeas de suas emoções.

— Se ficou quieto é porque sabe que estou certo. Ambos sabemos que o seu tipo de gente é sempre viver assim, de cabeça baixa e chamando os outros de senhor, então me faça o favor e, dentro da sua limitação, faça a merda do seu trabalho.

Peter saiu da sala de Jimmy sentindo-se estranho. Ao mesmo tempo que queria jogar tudo para o alto, também sentia pena do homem. Tinha certeza de que aquele falatório havia sido por causa da situação de mais cedo. Mas também poderia ser qualquer outra coisa. Para Peter, era óbvio. Jimmy não gostava dele, e mesmo assim, por alguma razão qualquer, ele ainda estava lá.

— Como foi? — perguntou Sandra, com cautela.

— Ah, tranquilo! Nada de mais...

— Aqui, eu adiantei o meu texto e pedi para trocar de dia com você, para te dar mais um tempinho.

— Poxa, muito obrigado. Prometo que vou te recompensar de alguma forma.

— Pode ser, até lá penso em alguma coisa — Deu uma piscada e voltou para o seu lugar.

Peter sentou-se à mesa e encarou a tela de seu computador. Ainda podia sentir aquele cheiro de terra sondando seu olfato, embora com menor intensidade.

 

***

 

— Boa noite — disse Peter ao porteiro do seu prédio. Dos três, esse era o que ele menos tinha empatia.

— Boa noite — respondeu o homem, sem tirar os olhos da pequena televisão de tubo onde era possível ver a imagem distorcida de um antigo programa em preto e branco.

O elevador era antigo. Possuía uma porta pantográfica enferrujada que, volte e meia, deixava alguém preso do lado de dentro, como aconteceu com a moradora do 301, dias atrás. Peter havia acabado de chegar do serviço, no começo da noite, quando notou que o elevador estava estacionado no terceiro andar por muito tempo. O porteiro era aquele que ele menos gostava, e quando Peter reclamou da demora do elevador, o desleixado apenas apontou para a escada de emergência, como quem dizia: “Tá esperando o que, animal? Segue o teu rumo”, e cuspiu uma gosma verde em um balde que ficava ao seu lado esquerdo. Quando chegou no terceiro andar, tomou um susto. Encontrou uma idosa desmaiada dentro do elevador ainda fechado. Precisou usar toda a sua força para desemperrar a maldita porta.

Estava cansado, e a última coisa que desejava era que a porta emperrasse. Entrou no compartimento móvel, fechou-a e apertou o número do seu andar. Cinco. Passou as mãos no cabelo e levantou o rosto, respirando fundo. O elevador subia vagaroso, como que estivesse com sobrecarga.

“Deve ser o peso nos meus ombros”, pensou com bom humor.

Ao passar pelo terceiro andar, o compartimento balançou de tal forma, que foi necessário Peter abrir seus braços e pressionar as palmas das mãos nas paredes oleosas para não se espatifar no chão imundo. A luz piscava como se fosse uma festa rave, e Peter sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha. Queria gritar, mas sentia a garganta fechada. Um cheiro peculiar de terra molhada alcançou suas narinas novamente, fazendo-lhe perder as forças nas pernas e ficar de joelhos. Era um odor nostálgico. A luz voltou ao normal e Peter prendeu sua vacilante respiração. Na parede do bloco de concreto que ficava entre o quarto e o quinto andar havia um desenho simples, com traços infantis e bem colorido de uma grande árvore. Em um de seus ramos, uma mulher dependurada pelo pescoço.

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