Desperta
Desperta
Por: Umberto Martins
Prólogo

As folhas moviam-se numa dança singular com o transpassar de um vento penetrante e ameaçador. Um sopro gelado deslizava por entre as copas das árvores e seguia seu percurso, infiltrando-se por entre ciprestes e salgueiros, criando seu próprio caminho tortuoso. Seres furtivos saíam de seus esconderijos. Olhos arregalados fitando a sufocante escuridão, atentos a qualquer sinal de perigo. Zumbidos, ululas, chiados e coaxos ecoavam nos cantos, copas e tocas. A floresta estava viva, apesar do pútrido odor que emanava de suas entranhas.

Pulsava como um coração prestes a entrar em colapso.

Os passos firmes daqueles pés descalços deixavam marcas visíveis na terra enlameada. Apesar das lágrimas, não vacilou. Estava convicta. O tempo das incertezas há muito jazia no lago do esquecimento. Não havia mais disputa.

Você é jovem”.

Diziam.

“Tem tempo.”

Mentiam.

“Para com essa bobeira.”

Decretavam.

O tempo se foi e a “bobeira” se enraizou.

Criou um nó que nem mesmo o seu filho poderia desatar.

Ela não saberia dizer quando tudo começou. Talvez o começo fosse um amontoado de pequenos retalhos que, no final da costura, formassem uma imagem desfigurada do que deveria ser uma vestimenta.

Foram os gritos. Tapas. Ausências.

Uma mistura do tudo e do nada.

“Meu pequeno Peter... Mamãe foi dar uma volta. Preciso que você seja forte. Muito mais forte do que eu. Eu sei que o tio Oswald vai cuidar de você, meu amor. Te amo muito.”.

O bilhete jazia ao lado da cama de Peter, que quando acordasse não teria à mesa o seu pão com manteiga e o suco de laranja, nem um cafuné ou o beliscão amoroso na bochecha. Também não sentiria o perfume dela e nem a ouviria lhe chamar para almoçar ou guardar os brinquedos.

Apesar do breu, o facho lunar conseguia clarear algumas partes da floresta. Parou em frente a uma grande árvore que possuía dezenas de rabiscos, nomes e recados. A dela, claro, estava ali, próxima do jovem Barney. Fragmentos de uma época desbotada quando ela acreditava que poderia até voar, se tentasse com afinco.

“Tão romântico, brincalhão, inteligente... Como ele havia se perdido tanto, quando deveria existir apenas um caminho? Em que momento nos perdemos?”.

A cada batida, uma peça que os conectava caía ao chão. No começo eram peças sem muita importância. “Dá para ficar sem!”, “Não importa”. Mas continuaram a cair, uma após a outra. Cada vez maiores e mais significativas. No final, não existia mais algo.

Olhou para as marcas afundadas no casco da árvore e começou a escalá-la como quando nova. Aqueles galhos, que já serviram de esconderijo e descanso, agora atraíam-na uma última vez. Segurou a corda com firmeza, encarando-a com melancolia. Sentia medo, como achou que sentiria. Prendeu umas das pontas no galho acima e enlaçou seu pescoço. O lago a frente soprou, jogando o seu cabelo para trás e empurrando para o abismo os resquícios de lembrança em sua mente. E então, o vazio.

Justine Strall caminhou para frente, como se fosse pisar em uma passarela invisível, mas o pequeno Peter, que havia acordado com o barulho da porta da sala se fechando, havia se esgueirado atrás da mulher que parecia ser o espectro de sua mãe. Chegou ao local da grande árvore no momento exato quando os pés — que em outros tempos serviram de apoio para Peter, enquanto dançavam ao som do velho rádio, no meio da sala —, afundaram no espaço vazio e tremelicaram durante poucos — e infinitos — segundos. Ele não conseguiu gritar. Não conseguiu chorar. Não queria estar ali. Eram muitos nãos para uma criança de onze anos suportar. Ainda de pijama, o menino ficou estático durante toda aquela noite em frente ao corpo inerte e flutuante de sua mãe.

Também nada fez quando algo em seu peito quebrou em milhões de pedaços, espalhando os estilhaços pela superfície de sua alma.

 

***

 

A brisa passeava pelo lago e costurava a floresta, acariciando palmeiras e bordos. O lago, como alguém na primeira fila de um teatro não querendo perder nenhum detalhe, continuava imóvel, calmo e sereno. E a lua — que, por sinal, estava cheia — banhava-se em suas águas, fazendo um maravilhoso reflexo em sua superfície laminada. Mas algo havia mudado e era tarde demais para que fosse prevenido ou remediado. Junto aos animais selvagens agora habitava algo muito pior, germinado pela dor e angústia, e que um dia iria acordar.

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