2 Cama de hospital

… Até acordar em uma cama de hospital. Sim, era uma cama de hospital. Roupa de cama toda branca, as paredes também brancas, um saquinho de soro fisiológico – ou algum outro remédio – pendurado ao lado da cama, ligado ao meu braço direito, uma das pernas para cima, toda enfaixada, pendurada, como naqueles desenhos animados que eu assistia quando criança. Não fazia a mais remota ideia de como havia parado ali. Tentei mover os braços, sem sucesso. Dor. Mal conseguia abrir um dos olhos. Aparelhos por todos os lados. Uma enfermeira se aproximou:

— Bom dia, senhor Solomon, vejo que acordou. Vamos tomar uma sopinha? — Lançou-me um sorriso radiante. Tentei falar, não consegui. Não saía som, e de qualquer forma, doía demais. Dúvidas, dúvidas, muitas, infinitas (multiverso). Algumas palavras vinham à mente, como se ditadas por outra voz. Multiverso, universo, infinito, limiar… limiar de quê? Será que cheguei ao “outro lado”? Mas não faria sentido estar em um hospital. Faria? Virei a cabeça o máximo que pude, e percebi que não estava sozinho. Havia outra cama no mesmo quarto. Havia um senhor, bem idoso, deitado, mas sem aparelhos, nem faixas ou gessos. Ele me observava. Sorria de leve. Deitou-se lentamente quando a enfermeira chegou. Apaguei de novo.

Acordei com minha mãe me chamando. Abri os olhos (acordado? Sonhando? Vivo?) e vi também meu pai. Eles estavam de pé, diante de mim, me olhando com preocupação e um certo alívio (escapei da morte?). Foi bom revê-los, sim. Mas… Diane? Niara? Onde estavam?

— Mãe… cadê a Diane?

            — Filho, meu filho… de onde você tirou essa Diane? É uma namorada? Ela estava com você?

            — Mãe, que loucura é essa? — Senti dor, e tentei falar mais devagar. — Diane é minha esposa, quem está ficando louco, eu ou a senhora?

— Filho, você sofreu um sério acidente, tente descansar. Nós podemos conversar com calma quando estiver melhor — interveio meu pai, percebendo minha confusão. Estava mesmo confuso, pois nenhum deles parecia nem remotamente lembrar da existência da nora e da neta.

Senti dois olhos me fitando na cama ao lado. O senhor parecia me dizer alguma coisa. Senti apenas que não era o momento de discussões ou interrogatórios. Vamos jogar o jogo… Perguntei do acidente. De fato, não lembrava de nada. Meu pai me mostrou duas fotos do que restou do carro. Quando vi as imagens, fiquei ainda mais impressionado por estar vivo. Naquele momento, porém, preferia estar morto, pois não pensava em mais nada além de minha esposa e minha filha. Onde estariam? Teriam sido sequestradas? Esse pensamento me ocorrera naquele momento, e de repente comecei a chorar, diante de meus pais e do senhor idoso. Recebi o carinho de minha mãe, até que voltei ao mundo dos sonhos...

Os dias se passaram, e eu melhorava. Ainda dormia a maior parte do tempo, mas já conseguia falar sem dor, e comer alguma coisa um pouco mais sólida. Perdi a noção de tempo e notei que sequer sabia o nome de meu companheiro de quarto. Virei a cabeça o quanto pude e o vi de costas, olhando pela grande janela, vestindo uma camisola para pacientes, azul bebê, com mangas japonesas e amarração nas costas.

— Seu nome? — perguntei calmamente.

Ele levou algum tempo até se mover. Olhou para o lado, em direção à minha cama, mas sem me fitar, e respondeu:

— Amit.

— Amit? Nome diferente… — De fato, nunca ouvira semelhante nome.

— Origem indiana, meu bom rapaz. E você… bem, você é Solomon, casado, pai…

— Sim. Pelo menos eu acho…

— Acha? Não tem certeza? — Ele me observava nesse momento, com um sorriso débil. O idoso tinha um pequeno rádio de pilha, e eu raramente prestava atenção ao que ele ouvia no aparelho, mas me espantei ao reconhecer a música que acabara de começar. Veja! Não diga que a canção está perdida… havia bastante estática, mas muitas imagens surgiram em minha mente com essas simples palavras, com esse começo tão reconhecível. E respondi:

— Não. Eu tenho certeza. Nunca tive tanta certeza. Só não sei o que está acontecendo… Não sei o que houve com meus pais, ou por onde andam minha esposa e filha…

            Amit me observava com serenidade. Não falou mais nada. Mas havia algo semelhante a uma comunicação, sutil. Que não se completava, mas eu, de alguma forma, sentia que sim, ele se comunicava comigo de outra forma. Não queria pensar muito no assunto, nem tampouco perguntar. Aparentemente, teria muito tempo para respostas ainda.

            Quando o silêncio começou a me incomodar, puxei papo com o velho:

            — Como veio parar aqui?

            — Como eu vim parar aqui? É uma história tão… tão incrivelmente longa, que me atrevo a dizer que talvez não queira ouvi-la.

            A resposta me surpreendeu, mas, em alguma parte da minha mente, já era esperada. Diante de meu silêncio reverente, ele continuou:

            — Não foi um acidente. Não foi por acidente. Nem tampouco por acaso. E posso dizer que cheguei aqui pouco antes de você. Estou aqui para me curar também. O processo de cura é doloroso e lento. Mas eu acho que estou conseguindo. Eu acho. Na verdade, devo te dizer que há um tempo muito longo venho lutando por essa cura. Que você pode chamar de transformação, renovação… Enfim, há vários nomes possíveis para definir um conceito. Será que você consegue me entender?

            Fiz que sim, embora fosse mentira. Mas ele continuou, mesmo sabendo que era mentira.

            — Meu nome é Amit. Já tive outros nomes, muitos outros. Já estive com muita gente. Hoje estou aqui, e minha função é oferecer… orientação, digamos. — Olhou-me de canto de olho, com um sorriso entre o cínico e o parcimonioso, mas sem qualquer traço de arrogância.

            — Notei que as enfermeiras nunca vão até o senhor… sequer falam com o senhor.

            — É mesmo? Eu esperava que notasse. Consegue imaginar a razão disso?

            — Não… eu não consigo imaginar a razão de mais nada, pra ser honesto. Meus pais claramente pensam que enlouqueci. Não duvido. Será que os últimos dez anos da minha vida foram uma ilusão? Eu não vivi nada disso? Não tive esposa, nunca conheci Diane, jamais tive uma filha?

            — Uma pergunta de cada vez, meu querido… Uma pergunta de cada vez… O que é a loucura, afinal? Viver coisas que não existiram é loucura? Os loucos realmente existem? Perceba: o mundo é feito de perguntas, muito mais que de respostas. Para cada resposta, podemos formular um número infinito de perguntas. Será mesmo que você quer respostas?

            Naquele momento, percebi que eu não era o único louco no quarto. Mas concordei que as respostas poderiam não ser o que eu gostaria de ouvir. Uma dúvida leva à outra, e assim sucessivamente. Tempos depois, ele deu sequência ao monólogo lento e arrastado, mas harmonioso:

— O hospital é uma bela metáfora, sabia? Não fossem as metáforas, o ser humano enlouqueceria de fato. Seria impossível viver. É um local de cura. De renovação. Nem sempre percebemos o quanto estamos doentes. Ao menos no meu caso, sei que estou no lugar certo. Você está aqui por outra razão, embora, uma hora ou outra, seja inevitável passar por um processo de rearmonização. Sim, eu sei, tem o fato de você ter se acidentado, em um momento de desespero. Devo te dizer que Diane e Niara estão vivas, e estão bem. Mas estão distantes. Melhor dizendo, estão onde sempre estiveram. Por isso, não podem vir… Por isso seus pais não as conhecem. Porque não são elas que estão deslocadas. É você, meu querido.

Sim, eu enlouqueci. E ainda fui jogado num quarto com um louco ainda pior. Boa hora para sair correndo, se eu tivesse condição física para tanto. Fiquei mudo e tentei dormir (mais) um pouco.

Loucura também era o que passava pela mente de meus pais. Tanto que não tiveram dúvida: contrataram um psiquiatra para entender o filho. Bacana. Um psicólogo talvez fosse uma opção melhor, em um primeiro momento, mas eles pensavam que era um caso extremo. E talvez fosse mesmo. Eu não sabia muito bem o que pensar. Pensamentos iam e vinham na velocidade da luz, e eu não tinha condições de negociar nada. Que venha o psiquiatra. Ele veio, viu e venceu. Me venceu pelo cansaço e me encheu de remédios. As pílulas me deixavam ainda mais lesado. No terceiro dia, joguei-as fora, para desespero de minha pobre mãe, que não sabia o que fazer com aquela alma atormentada que pensara ter sido casada um dia.

Pelo menos eu estava me recuperando fisicamente, e logo sairia do hospital. As conversas com Amit rarearam, mas vez em quando trocávamos algumas palavras.

— Todo o tempo do mundo, meu amigo… todo o tempo do mundo. Ou quase isso. Já conseguiu definir se está mesmo louco? Está convencido disso? — Ele falava com uma tranquilidade exasperante, munido de um sorriso sardônico que não desplugava de sua face enrugada. Era quase um acinte. — Caro Solomon… eu já tive a tua idade. Faz bastante tempo. Digo a verdade, faz bastante tempo… Mais do que pode imaginar. Eu pensei que enlouqueceria de fato um dia. Até perceber que a loucura é o próprio mundo, a nossa incapacidade de entendê-lo, e o nosso campo limitadíssimo de visão. Há um muro à sua frente, e não falo de ceticismo, pois já vi muitos crentes, pessoas muito religiosas, duvidarem do que viam e viviam. Isso é inerente ao homem, faz parte da condição humana, a necessidade de sobrevivência. As dicas estão por aí o tempo todo, as pessoas é que não percebem. Melhor dizendo, a maioria delas, mas nem todas. Você não precisa fazer parte da maioria. Não faz mesmo, querendo ou não, pois já atravessou o muro, mesmo que ainda o enxergue, como se ele de fato existisse. Não existe… — Minha tentativa de fingir sono falhava miseravelmente. — Sabe, todos nascemos dotados de uma percepção que vai muito além do campo de visão. Muito, muito além. Quando crianças, vemos e sentimos coisas que nos parecem muito naturais, mas que geralmente bloqueamos quando adultos. A vida adulta não permite ver coisas que achamos que não existem. Existe o que podemos ver. Ponto. Há exceções, claro. Entre charlatães e brincalhões, há os que realmente mantém sua alma infantil intacta. É para isso que serve a infância: para manter a conexão cósmica. Não estamos sós. De jeito nenhum. As coisas não começam e terminam da forma que imaginamos. Eu fico pensando no que você deve ter sentido quando abriu o porta-malas do carro e não encontrou os objetos de sua família, somente os seus… — Nesse momento, não pude mais disfarçar. Como ele sabia daquilo? Eu tinha certeza de que era um detalhe que sequer tinha mencionado aos meus pais, pois simplesmente não lembrara. Ou mencionara?

            — Como você pode saber disso?

            — Será que está mesmo preparado para a resposta? — perguntou, olhando para o teto, com um leve ar de cinismo, o topo da cabeça careca ladeada de cabelos brancos, como um daqueles padres bem típicos, além do nariz proeminente. Parecia gostar da brincadeira.

            — Tem noção do quanto estou sofrendo? Acha mesmo que tem o direito de brincar com isso?

            — Tem razão… e não tem. — O sorriso se expandiu. É, ele gostava mesmo daquilo. — Não é uma brincadeira, de modo algum. Mas também não é o momento para perguntas, não é mesmo? Não é mesmo simples… Eu sei disso, comigo foi assim. Talvez pior. Talvez pior… Mas foi há tanto tempo que até perco o jeito, sabe? Quantas vezes, quando criança, você viu coisas que não acreditaria hoje? Solomon… você já sentiu um deja-vú? Percebe como ele era muito comum em sua infância e adolescência, e depois raramente teve a sensação? O que acha que é isso? Alguma desordem mental que pode ser resolvida com pílulas?

            — Eu acho que estou ficando louco, mesmo. E não sou o único. Sabe que me passou pela cabeça agora que só eu vejo o senhor? Nunca vi ninguém se aproximar do senhor… Como me explica isso?

            — Achei que fosse perceber antes… Será que sua loucura me criou? Hein? Será que… eu não existo? De certa forma, se pensa assim, não deixa de ter razão. Eu não existo. Não o tempo todo. Não o tempo todo para você. Eu existo quando você me observa. Eu deixo de existir quando você dorme, quando vai ao banheiro, quando esquece que eu existo, quando fala com as enfermeiras ou com seus pais. Entende?

            — Tá brincando comigo, né? Claro que não entendo!

            — Eu compreendo. Não esperava mesmo que entendesse. Mas espero que, pelo menos, acredite no que eu digo. Isso facilitará sua caminhada (estrada).

            — Não me fale em estrada!

            — Eu falei estrada?

            Fiquei pensando… Não, ele falara em caminhada. Mas…

            — Bom, me desculpe. Ato falho de um velho senil… Talvez esteja chegando a hora de me aposentar… Mas me conte… O que pretende fazer quando sair daqui?

            — Procurar minha esposa e minha filha. É a única coisa que me motiva a sair desse manicômio.

            — O manicômio está em sua cabeça, somente. Aliás, eu poderia contar duas ou três boas histórias sobre a loucura, mas acho que vou esperar você se acalmar um pouco. Ah, a juventude… Tanta pressa…

            — Pressa? Eu nem sei há quanto tempo estou preso aqui! Se não é um manicômio, é uma prisão!

            — Ninguém te prende aqui. Está vendo aquela porta? Basta… abri-la! E, voilà, eis a sua liberdade! Mas a liberdade sem um mínimo de conhecimento pode se tornar perigosa, Solomon, devo-lhe afiançar. Já não dizia aquele escritor que sua esposa adora, Sartre? Que a liberdade é pior do que a prisão?

            Meus olhos pareciam querer subir aos céus ante a citação de um autor que minha esposa gosta, e que eu mesmo sequer lembrava, visto que lembro dela lendo Sartre quando éramos adolescentes. De qualquer forma, sentia que precisava me livrar daquele lugar o mais rápido possível. Resolvi acelerar minha recuperação, com boa alimentação e caprichando nas sessões de fisioterapia. Eu precisava voltar para a estrada.

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