1 Travessia

Eu não sei dizer onde minha vida começa. Se no meu nascimento (ou concepção), ou se naquele dia fatídico em que entramos numa lanchonete, durante uma viagem, para descansar, comer alguma coisa, e relaxar depois de mais uma discussão ríspida.

Eu tinha 28 anos. Teoricamente, tínhamos viajado para comemorar nove anos de casados. Passamos dois dias em Foz do Iguaçu. Dois dias bizarros. Originalmente, passaríamos uma semana. Mas Diane e eu não estávamos tão conectados quanto gostaríamos. Ou quanto eu gostaria, ao menos. Não posso falar por ela.

Ela era professora de Sociologia no ensino médio, e estava cogitando fazer Mestrado na área. Nas horas vagas, era anarquista profissional, participava de todas as manifestações possíveis, e fazia questão de estar na linha de frente dos protestos. Admiro isso nela. É algo que sempre faltou em mim. Preguiça, em parte. Dificuldade de lidar com a subjetividade, também. Nunca achei que manifestações resolvessem alguma coisa. No fim das contas, o governo faz o que quer, do jeito que quer, com ou sem protestos. Mas esse acabava sendo o motivo de muitas das discussões. Ela me acusava de ser um alienado, desinteressado dos rumos da nação. Eu argumentava que estava mais preocupado com o nosso futuro. Ela contra-atacava dizendo que pensar na coletividade era pensar em nós também. Nada objetivo, mais uma vez. Meu raciocínio era mais lógico. O que é, é. O que não é, não é.

Falando assim, parece que não era nada demais. Mas estava ficando insuportável. Nem sexo fazíamos mais, de tanto que brigávamos. Eu a achava radical demais. E piorava a cada dia. Ela me achava um tapado, um banana, um covarde. Omisso social. Pária da sociedade. Adorava inventar esses apelidos para me ofender. Não conseguia, pois eu nem os entendia muito bem, mas a questão é que tínhamos cada vez menos em comum.

Porém, não pensava em separação. Especialmente pela nossa filha. Também porque não me via com outra pessoa, apesar das discussões. Nas tréguas, ela voltava a ser a mulher encantadora que eu conhecera. Sua juventude nunca morrera. Eu é que estava envelhecendo. Talvez fosse esse o problema. Ela continuava lutando pelos seus ideais. Eu já era… adulto. E quem disse que é bom ser adulto?

Quando criança, eu não sabia que ser adulto era tão horrível. Soubesse, teria me mudado para a Terra do Nunca. Porém, cresci, e uma vez crescido, não há volta. É a inexorável caminhada rumo ao fim. Nascemos morrendo. Cada segundo de vida é um segundo a menos. Comemoramos aniversários por tolos, pois não passa de uma contagem regressiva que diz que falta um pouco menos agora. Cada vez menos. Mas a rotina é dura, e não nos deixa pensar muito. Por incrível que pareça, era nessas bobagens que eu pensava enquanto ouvia mais um sermão da dona Diane. Desenvolvi um método para aguentar calado: viajar na maionese. Porém, na viagem de volta da comemoração do aniversário de casamento, estava particularmente difícil suportar. Diane me chamava de Solomongo quando estava de bom humor. Não era o caso naquele dia.

— Eu canso, Solomon, eu canso de te dizer, e você cansa de não me ouvir! Eu não posso me conter diante de tanta apatia! Não é possível que tantos anos convivendo comigo e com minha família tenham passado em branco pra você!

— Uhum.

— E você se faz de sonso! Não concorda, não discorda, não reage! Reaja, pelo amor de todos os santos!

— Diane…

— Eu não sei se posso conviver com isso por muito mais tempo, Solomon… — falava, quase chorando, a voz um pouco embargada. Ela não era de fazer muito teatro com emoções.

— Diane, dá pra se acalmar?

— Me acalmar??

— É!! — Acabei gritando.

— Não grite!! Não tolero grito!

— Se não tolera, por que…?

— Cale-se!! Eu preciso que você me ouça! Olha, pare naquela lanchonete! Não quero causar uma porra de um acidente!

Naquele momento, até me passou pela cabeça a possibilidade de jogar o carro no outro lado da pista, e imaginei metal se contorcendo, corpos destroçados, tudo de ruim que se possa imaginar em tal situação. A raiva era tão grande que não conseguia segurar meus pensamentos. Precisava mesmo de um descanso.

Mas eu não sabia se realmente valia a pena parar. Continuar a discussão em público não me parecia saudável. Porém, assim que entramos na lanchonete, próxima da cidade de Irati, localizada a menos de duas horas de carro da capital, Curitiba, Diane pareceu se acalmar. Jogou-me um olhar levemente doce, com um sorriso escondido na alma, e chamou nossa pequena Niara (já acostumada com nossas discussões intermináveis) para irem ao banheiro feminino. Eu as vi se afastando. Parei por um momento, diante do balcão repleto de queijos, vinhos, salames e salgados, os funcionários anotando pedidos e servindo cafés. Observei elas entrando no recinto, Niara dando pulinhos felizes, como se estivesse tudo na mais santa paz (por isso acho que não deveria mesmo ter saído da infância).

Assim que elas desapareceram, fui tomado de assalto por uma sensação extremamente esquisita. Passou pela minha cabeça a possibilidade de que elas nunca existiram, que tudo não passara de um delírio meu, e que acabaria acordando um belo dia e percebendo que vivi uma vida que não era minha. Voltaria a ser um adolescente, iniciando a vida. E senti uma angústia muito forte. Desviei o olhar do banheiro e voltei a caminhar, lentamente.

            Senti o ar-condicionado gelando o ambiente, em forte contraste com o sol ardido de fora. Só naquele momento me dei conta da diferença de temperatura. Senti frio. Muito frio por um momento. A vista escureceu, ficou turva. Uma tontura, de repente parecia que ia cair, desmaiar. Não tinha coragem de gritar, de chamar alguém. Não ouvia nada também, só um leve zunido que parecia vir de outra região do universo, e não de dentro de mim mesmo. Será que era stress? Abri os olhos (que nem percebi terem se fechado) e vi que o ambiente parecia mais escuro, num tom um pouco “azulado”, como se tivesse passado por um filtro fotográfico. Senti medo. Poderia estar tendo uma convulsão ou derrame, quem sabe.

            Caminhei assustado e lentamente até a mesa mais próxima. Puxei uma cadeira e me sentei. Eu tremia. Percebi que eu tremia. Não era de frio. Nem da tontura, que havia passado. Nem da coloração do ambiente, que também voltara ao normal. Mas eu tremia. Não entendia o motivo. Uma sensação de sufocamento, o peito aos pulos, de dentro pra fora e de fora pra dentro.

            Respirei fundo. Pensei em Diane e Niara. Levantei, caminhei devagar até o banheiro feminino. Não entrei, claro, mas fiquei esperando. Como não saíam, chamei uma atendente e solicitei que ela verificasse o paradeiro das duas. Ela não as encontrou. Fiz uma breve descrição das duas. A atendente não lembrava delas. Conversamos com outras duas funcionárias. Ambas disseram que me viram entrar sozinho na lanchonete. Tremi. Temi. Pedi que chamassem pelo alto-falante. Assim foi feito. Nada.

            Eu estava ficando louco, só podia ser. Fui até o carro. Estava lá. Tudo normal. Mas os brinquedos de Niara, que eu jurava estarem no banco traseiro, tinham sumido. Abri o porta-malas. Apenas a minha mala, mais nada. Será que Diane havia ido embora? Que loucura era essa? Mas não, a chave do carro estava comigo, e tinha certeza de que travara. Estava mesmo enlouquecendo… Olhei para os lados, para cima, coloquei as mãos na cabeça, tirei as mãos da cabeça, coloquei-as na cintura. Depois, já não sabia o que fazer com as mãos. Com a vida, com o mundo, com o universo (universo).

            Um telefone público! Logo na saída da lanchonete. Corri para lá. Liguei para dona Zilma, minha mãe. Ela mal atendeu, comecei a falar, rapidamente:

            — Mãe, tô com um problema aqui perto de Irati, a Diane e a Niara… Elas foram no banheiro, aí… sumiram, sei lá, eu tive tontura, esperei sentado um pouco até melhorar, e depois, quando fui procurar elas, não encontrei mais… Mãe?

            — Filho, com quem você está aí?

            — Com a Diane, mãe!

            — Quem é essa moça, meu filho? — A voz dispensava a expressão do rosto. Estava claro que ela não sabia de quem eu falava. Senti meu estômago embrulhar, queimação, o peito afundando, mergulhando rumo ao abismo mais profundo da minha alma.

            — Mãe, que história é essa? A Diane, mãe!! Minha esposa!

            — Filho… Tá tudo bem com você? Você… bebeu? O que tá…

            Desliguei o telefone, as mãos à cabeça mais uma vez, escorregando as costas pelo poste do telefone público (limiar).

            Não fazia ideia do que estava acontecendo. Em meu delírio (àquela altura já estava quase conformado com a possibilidade concreta de ter ficado louco), peguei a chave do carro e voltei para a estrada. Rumo à Curitiba, mas, em verdade, rumo a lugar nenhum. Precisava da estrada, precisava… de alguma coisa. Desaparecer, por exemplo. Acordar, quem sabe. Do meu maior pesadelo. Não era real, não podia ser, e não sendo real, nada de ruim me aconteceria.

            E pisei no acelerador. A estrada estava tranquila, pouco movimento. Fazia as curvas a 120 km/h, bem acima da minha média normal, quase sempre abaixo dos 100. Uma longa reta se pronunciou, asfalto limpo, o sol forte, as árvores passando velozmente, aumentei a velocidade progressivamente. 140, 150, 160 (nunca fui tão longe). Ao fim da reta, estava a quase 180. Reduzi bruscamente, percebi a curva um pouco tarde. Bastante tarde, diria, pois não lembraria de nada dali em diante…

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