A Estrada Escura
A Estrada Escura
Por: Eduardo Miranda
Uma Noite Inusitada

As luzes da cidade deserta distorcem seus reflexos por entre as águas da chuva que caem torrencialmente em uma noite fria de outono. Próximo ao centro, em uma esquina de construções do século XIX onde um dos prédios com três andares chama a atenção pelo seu estado de deterioração. No terceiro andar, em uma janela que tem a visão da avenida principal, um quarto escuro está iluminado apenas pelos flashes de ferozes relâmpagos e pelo neon do bar Trago Nosso De Cada Dia, dentro do cômodo é possível ver uma corda com nó de forca pendurada acima do batente superior da porta e apenas o vulto de Arthur Flammer sentado à beira da cama olhando pela janela a chuva cair incessante na noite fria com seu rosto paralisado recebendo as cores rosa, verde e branca do neon, um ambiente propício para executar seu último ato, aquele que encerrará o ciclo de sua passagem por estas bandas, uma atitude difícil que o coloca em conflito interno, o temor de estar errado bate de frente com a certeza de que será melhor colocar um ponto final diante de uma situação que se apresenta findada há algum tempo. Na cômoda ao lado da cama um Mini System toca em volume máximo a música de Alice in Chains – Man In The Box, inflamando seus nervos dando a ele o combustível necessário para consumar o ato.

A vida nunca foi e nunca será fácil para ninguém, Arthur sabe bem disso, contudo seus últimos anos tiveram sobre cargas emocionais que o despedaçaram, se tornou retraído se isolado da sociedade, perdeu a esperança no homem e em si mesmo, viu em um pedaço de corda a solução para tudo e para todos, afinal, há um bom seguro de vida em seu nome onde uma cláusula garante o pagamento mediante morte causada por doença psicológica, ele já tinha em suas mãos um atestado de depressão que garantiria o recebimento de cem mil reais com sua morte. Seus beneficiários seriam sua filha Sophia e seu filho Fernando e finalmente parte do que considerava uma falha culposa seria resolvido.

Arthur se levanta e mais um clarão de relâmpago lhe ilumina o rosto cansado de amarguras e indecisões coberto parcialmente por uma extensa barba grisalha desmantelada e pelos igualmente longos cabelos da mesma cor. Caminha lentamente agora ao som de Mad Season – Artificial Red, à medida que vai se aproximando da forca percebe os estrondos mais densos, os trovões mais constantes como se festejassem o que estava por acontecer, subiu em um banquinho de madeira e segurou a corda com as duas mãos, ficou ali por alguns segundos, sentiu algo apertar-lhe a boca do estômago e dar um nó. Um tremor percorreu lhe pelo corpo inteiro finalizando com um calafrio e não conseguiu entender se aquilo tratava-se de uma voz ou apenas a sua mente, ecoando em sua cabeça ouviu as palavras. “_Isso não é para você.”

Naquele momento Arthur desabou em lágrimas sem receio de berrar seu choro como uma criança desesperada, aos poucos foi descendo do banquinho e já no chão, deitou em posição fetal e seguiu chorando por algumas horas uma dor intensa e interna que vinha do fundo de sua alma. Sentia-se mais inútil do que antes, um homem fracassado que se quer tinha a competência de tirar a própria vida. Cansado e desgastado emocionalmente ele fechou os olhos e adormeceu.

Poucas horas depois o dia amanheceu e Baxter, seu gato cinza e barulhento tentou acorda-lo com miados incessantes pedindo por ração, sem sucesso, o pequeno felino e único verdadeiro amigo de Arthur o lambe no rosto e esfrega sua cabeça peluda na mão dele. Lentamente o homem acorda, sente dores por todo o corpo e cada vez que olha encarando o gato recebe um longo miado de volta, como se fosse uma bronca. O homem se levanta gemendo de dor, suas costas e as articulações estralam, a noite estava fria e ele usava apenas uma cueca recebendo toda a friagem da noite, lhe causando pigarro e tosse. Foi se escorando pelas paredes até o banheiro, tomou um remédio para dor muscular que estava dentro do armário embutido do espelho e após se higienizar pegou sua bengala para escorar um joelho fraturado em seguida partiu para a cozinha onde colocou ração para seu amigo esfomeado, o lugar estava escuro pela pouquíssima iluminação natural, as paredes e móveis de todo o apartamento estavam escuros como se estivessem sujos ou engordurados por vários dias, entretanto, esta situação parecia não afetar Arthur, era como se tudo estivesse perfeitamente normal ou talvez ele já estivesse acostumado com tal situação. Em seguida sentou-se na cama com sua toalha de banho caída em seu colo. Com vergonha de si mesmo olhou para o pedaço de corda pendurado no batente da porta, olhou em volta e viu seu celular na cama, desanimadamente pegou o aparelho e deu uma olhada nas notificações, coisa que não fazia há dias e entre os avisos de sms da sua operadora havia uma mensagem de sua netinha Sheila, de dois dias atrás:

“_Vovô! Estou com saudades, te amo muitão.

Aquela mensagem mexeu com o emocional de Arthur novamente, e suas lágrimas voltaram a cair, ficou ali olhando pela janela o tempo nublado num cinza triste e pensando que caso tivesse consumado o que pretendia na noite anterior jamais a sua netinha teria a chance de matar essa saudade que estava sentindo.

Decidido, levantou-se com a habitual dificuldade, retornou ao banheiro e ligou o chuveiro, colocou o barbeador no suporte do sabonete e enquanto tomava um banho quente aproveitou para fazer a barba, saiu do banho e vestiu-se, a roupa simples de sempre, calça jeans, uma camiseta amarela clara com o rosto de Jim Morrison estampada e uma jaqueta preta. Foi para a cozinha e fez um café forte, bebeu observando seu amigo Baxter que estava dormindo no assento de uma cadeira. Quando se deu por conta já era quatro e quinze da tarde, ele percebeu o quanto ficara inerte em meio a uma paralisia mental e física que o transformara em uma espécie de morto-vivo. Tomou o último gole do café e retornou ao quarto, pegou seus documentos, sentou-se em sua escrivaninha e rasgou uma folha de um pequeno caderno de anotações, ao lado estava o bilhete de despedida referente ao seu ato não consumado, ele olhou por alguns momentos e como uma flecha pegou o papel amassou e jogou no lixo. Na folha limpa escreveu um novo bilhete, este para sua vizinha e admiradora Sra Vânia, pedindo a ela que cuidasse de Baxter enquanto ele estivesse fora.

Arthur pegou seus documentos e o bilhete, ao passar pela cozinha afagou o felino rajado.

_Ei amigão, logo retornarei. – O gato o encarou e miou alto. _Pare de reclamar caso contrário a Vânia ficará com medo e não virá cuidar de você.

Antes de sair pela porta pegou seu chapéu panamá preto que estava pendurado ao lado do batente, saiu e trancou a porta, colocou a chave embaixo do capacho do lado de fora, pegou o bilhete e colocou embaixo da porta do apartamento de Vânia, antes que entrasse no elevador a porta do apartamento da vizinha se abriu e ela surgiu com o sorriso de sempre, os olhos castanhos estavam perdidos na escuridão do hall, ela se esforçava para tentar enxergar.

_Oi Vânia, preciso me ausentar por alguns dias e pensei se talvez você... – Antes que ele completasse a frase ela foi até a porta de seu apartamento e se agachou, viu o bilhete embaixo do capacho.

“_Querida amiga, estarei ausente nos próximos dias, se não se importar, gostaria que cuidasse do meu companheiro Baxter, a ração está em um pote em cima do armário da cozinha, hoje ele já tem o suficiente,

Muito obrigado, ao retornar lhe aviso imediatamente!”

_Sim, sim, claro, pode deixar que cuidarei do Sr. Baxter. – Comentou guardando o bilhete no bolso de seu shorts e segurando o molho de chaves do apartamento dele, sem olhar para Arthur ela entrou e fechou a porta, no mesmo instante que o elevador apitara avisando sua chegada.

Muito sem jeito, afinal ele não esperava encontra-la naquele momento, ele foi entrando no elevador e pensando.

“_Acho que ela não gostou nenhum pouco do favor que pedi, nem olhou para minha cara.”

De tanto que Vânia escancarava seus sentimentos, aos poucos ele foi deixando um carinho crescer em seu coração e já estava à beira de se render as investidas dela a única coisa que ainda impedia isso de acontecer eram suas lembranças e sentimentos passados que o corroíam lentamente por dentro.

A caminhada até a rodoviária teve um certo ar de incômodo, ao mesmo tempo que Arthur não queria conversar com ninguém, ele achava estranho ninguém tentar falar com ele ou ao menos acenar-lhe ou quem sabe dar um alô, era como se as pessoas estivessem estagnadas em um universo paralelo afetadas pelo clima triste de um dia acinzentado e chuvoso. Ao final das contas Arthur achou melhor assim, pois caso encontrasse alguém a fim de papo certamente faria perguntas indiscretas começando sobre “como ele estava se sentindo naquela tarde” até “para onde está indo?”, “o que irá fazer lá?”, esta indiscrição comum entre as pessoas o afetavam negativamente, jamais soubera lidar com tal comportamento social e coletivo.    Baixou a aba de seu chapéu escondendo seu rosto na esperança de caminhar os seis quarteirões até a rodoviária sem ser reconhecido por ninguém.

Ao chegar no terminal intermunicipal percebeu que o local estava estranhamente vazio, um deserto, as lojinhas fechadas, os guichês de vendas de passagens igualmente com as portas abaixadas e nenhum ônibus. Se aproximou de um dos guichês onde estava um papel afixado no vidro de atendimento, e leu.

“_Devido a pandemia do Covid-19 estaremos fechados ao atendimento público atendendo ao isolamento social imposto pela prefeitura. Acesse nossa página na internet e informe-se como adquirir sua passagem e os horários das viagens.”

Tal informação arrasou com os planos imediatistas de Arthur, há muito tempo não usava o sistema de internet e nem tinha equipamentos para usar redes sociais. Foi até os bancos de espera da plataforma de embarque onde só haviam pombas ciscando pelo pátio de estacionamento dos ônibus, sentou-se em um dos bancos e observou a garoa caindo insistentemente. Quando pensou em se levantar um estrondo lhe chamou a atenção, um motor de ônibus com barulho grosseiro e um escape de ar dos freios que parecia um apito de fábrica, Arthur deu um salto do banco, o veículo que aparentava ser fabricado em 1960 de cor azul e branco parou na plataforma seis, a última do pátio de embarque, com uma freada brusca respingou água para todo lado, imediatamente outro escape de ar e a porta se abriu dando um baque. Arthur pensou que o ônibus iria se desmanchar a qualquer momento, era um modelo da Viação Meteoro e percebeu que no letreiro estava escrito o destino, São Paulo, coincidentemente era seu destino também, após alguns instantes de tensão desceu um jovem com boné preto que levava na parte frontal acima da aba a letra U e o número 2 grandes em vermelho. Esse detalhe logo lhe chamou a atenção pela familiaridade com o adorno, o rapaz também usava uma camiseta branca com um símbolo no peitoral esquerdo, era o símbolo do ômega sublinhado na cor vermelha, e esta camiseta era incrivelmente familiar também. Arthur percebeu imediatamente que aquele jovem rapaz tinha algo de estranho ou fenomenal e para tirar qualquer dúvida ou até mesmo aumentar seu espanto, percorreu rapidamente com olhos pela costura da calça jeans que ele usava e encontrou a etiqueta da marca jeaneration. Ele ficou por alguns momentos estático em uma mistura de choque com surpresa, afinal em tempos passados era exatamente com estas roupas que se vestia, e se lembrava bem por que era uma das vestimentas que mais gostava de usar, a mesma calça com a mesma camiseta da Sea Club e o boné preto que levava o nome de sua banda favorita, o U2. Uma sequência de relâmpagos e trovões esbravejaram por todo o céu chuvoso fazendo com que Arthur em um reflexo fechasse os olhos por alguns instantes e quando fixou novamente o olhar no ônibus já não encontrou mais aquele jovem, olhou assustado no entorno da plataforma e não viu nem vestígios do rapaz, entendeu que definitivamente aquele dia não estava sendo dos mais normais e já começou a se preocupar com o que mais poderia acontecer nas horas seguintes. Uma pisada forte nos degraus do ônibus lhe chamou a atenção tirando-o de seus pensamentos acinzentados. Desta vez surgiu um homem aparentando ter seus trinta anos de idade corpo esguio a ponto de curvar a coluna para poder andar dentro do ônibus, cabelo bem penteado à base de gel formando um topete avantajado, usava uma camiseta lisa preta com um blazer igualmente preto, calça jeans semi-bag e sapatos pretos bem engraxados exalando um brilho que chamou a atenção de Arthur.

_Boa noite meu caro! – O homem cumprimentou Arthur sem descer o último degrau, com uma das mãos se segurou no corrimão da escada e com a outra acenou. _Vamos! Suba logo, ou iremos nos atrasar.

Arthur estava completamente perdido, nada fazia sentido.

_Deve estar enganado, eu não tenho passagem... – Antes que terminasse suas explicações o homem o intimou.

_Ora! Deixe de conversa fiada e entre logo. – O anfitrião do transporte estava animado, falava com uma voz rouca e grande sorriso amarelo no rosto. _Você não está indo para a selva de pedra?

_Como? – Por alguns instantes Arthur ficou perdido em sua compreensão do que estava acontecendo.

_A selva de pedra, a grande metrópole, São Paulo!

_ A sim, claro!

_Então não perca tempo, venha logo, este é o último da linha se perder não poderá mais ir resolver seus assuntos. – O homem falou e entrou no ônibus, ainda no topo da escada arqueou-se e olhou pelo para-brisa, acenou para Arthur chamando-o para dentro.

Ainda muito desconfiado Arthur se aproximou e iniciou sua escalada pela escada, o motorista de pele escura estava carrancudo em seu uniforme de camisa branca e quepe de chofer preto, suas sobrancelhas lembravam duas taturanas cabeludas, ele apenas fitou Arthur sem dizer nada ou fazer algum gesto, entrando pelo corredor do ônibus viu o anfitrião sentado no primeiro banco logo atrás do motorista e uma meia dúzia de pessoas espalhadas pelos assentos, o dia cinzento de chuva e a cobertura da plataforma de embarque tornavam o interior do ônibus escuro e sombrio. Arthur respirou fundo e iniciou sua caminhada pelo corredor, mas logo teve a sua atenção solicitada pelo anfitrião que em um gesto pediu que ele se sentasse na poltrona oposta à dele, do outro lado do corredor, muito provavelmente para que pudessem conversar. Sem jeito de negar o convite, Arthur sentou-se e se acomodou colocando sua pequena mala no banco ao lado, olhou pela janela e enquanto observava a chuva pensava no rapaz que era praticamente sua cópia da juventude e no que aquele homem tanto queria.

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