Capítulo 3

Todo mundo dizia que Zhoe Nolan acordava com as galinhas. E talvez estivessem certos. Mas não havia nada que ela gostasse mais no mundo do que assistir ao nascer do sol, sentada em seu balanço na varanda, com uma boa caneca de café na mão.

                Era a hora do dia que mais apreciava, pois não precisava lidar com o barulho dos hóspedes ― embora não houvesse nenhum ali além de Paige ―, podia relaxar um pouco de sua função ininterrupta como mãe, tendo liberdade para colocar seus pensamentos em ordem.

                Naquele momento, porém, seus pensamentos estavam voltados para Paige O'Brien. Tudo bem que Zhoe tinha acabado de conhecê-la, mas isso não mudava em nada o fato de que tinha um faro muito bom para pessoas. E algo lhe dizia que aquela moça era uma boa alma apenas em busca de um caminho.

                Deixou passar algumas horas, acordou Colin e decidiu passar na cafeteria da tia para comer algo decente e conversar.

                O estabelecimento só abriria dali a uma hora, mas sabia que Cora teria um bom waffle para lhe servir.

                Ela já estava na atividade, preparando alguma coisa para o trabalho daquele sábado.

                ― Querida! Que bom que está aqui. Estava mesmo pensando em você.

                ― E em mim, vovó? ― Por mais que Cora não fosse mãe de Zhoe, Colin sempre a chamava de avó, pois era esse o papel que ela tinha em suas vidas.

                ― Em você eu penso vinte e quatro horas por dia, todos os dias. ― Cora puxou o menino para um abraço de urso, que foi retribuído com muito afeto. Colin era um menino muito carinhoso. ― O que a traz aqui, filha?

                ― Queria conversar.

                ― Então chegou em boa hora. Estou passando o primeiro café e preparei um bolo quase agora. Está quentinho ainda.

                ― Ah, sim, esse tipo de coisa também me incentiva a vir te ver. ― As duas riram, e Colin também, embora Zhoe tivesse a nítida impressão de que ele não tinha entendido nada da conversa.

                Cora serviu a sobrinha e a criança e debruçou-se no balcão, na frente deles, pronta para conversar.

                ― E então? Como é a tal Paige O'Brien?

                Claro que ela sabia o que Zhoe queria conversar. Ela sempre sabia, como se tivesse uma bola de cristal ou algum dom sobrenatural.

                ― Me parece uma boa pessoa, mas muito misteriosa. Não me mostrou documentos, pois disse que tinha sido roubada, mas não acreditei muito na história. Acho que ela está mentindo sobre quem é ― falou com sinceridade.

                ― E quem você acha que ela é, na verdade? ― Cora perguntava, mas, além disso, parecia analisar a expressão da sobrinha, enquanto ela pensava em sua resposta.

                ― Para ser sincera, ainda não sei. Mas acho que ela merece um voto de confiança. Parece que sofreu bastante na vida.

                ― E por que você acha isso? ― Algo na expressão de Cora dizia que ela já sabia a resposta, porque também já tinha formulado suas próprias teorias, mas queria que Zhoe compartilhasse as suas.

                ― Algo na forma como ela se comporta me diz isso. Parece ter medo de tudo e todos, como se todos carregassem pedras e estivessem prontos para jogá-las nela.

                ― Também percebi isso tudo. Por isso, espero que ela fique em Green Hill. Aqui é o tipo de lugar pacato que a fará esquecer de qualquer trauma.

                ― Assim esperamos. Mas se for ficar em Green Hill, vai precisar de um emprego. Eu bem que a empregaria na pensão, mas não tenho tanta demanda de trabalho assim.

                ― Mas aqui tem. Não é isso?

                ― Você sabe que está precisando de uma garçonete.             

                Cora cruzou os braços com uma expressão transigente e um sorriso nos lábios. Era impressionante o quanto era parecida com Zhoe, com sua forma de pensar e em tudo que fazia para ajudar os outros. Pensar nisso fez seu coração encher de orgulho pela sobrinha.

                ― Claro que eu estou precisando de mais uma garçonete. Vou dar um jeitinho de alertar Paige desta vaga de emprego sutilmente.

                ― Ah, eu bem sei o quanto você é sutil. Pode deixar que eu faço isso ― zombou Zhoe. ― A pobre coitada nem sabe onde está se metendo. Daqui a pouco vai receber uma flechada do cupido de Cora Fairlane. Já arrumou um futuro marido para ela?

                ― Mas é claro! Acha que eu ia deixar de lado meu passatempo favorito? Aliás, falando no pretendente...

                Cora virou seus olhos estrategicamente para a porta da cafeteria, fazendo com que Zhoe fizesse o mesmo. Por um momento, a mais jovem olhou para um lado e para o outro, procurando se algum homem estava entrando no estabelecimento atrás ou ao lado de Jacob Barnham.

                Mas não havia ninguém. O que fazia com que concluísse que sua tia estava REALMENTE falando sobre o xerife de Green Hill. O homem menos disponível da cidade, embora fosse solteiro.

                ― Tia, você ficou doida? Vai dar uma de cupido para cima de Jake? Acho que ele não vai gostar muito dessa história.

                ― Bobagem! No início pode relutar e espernear que nem uma criança, mas no final das contas vai me agradecer.

                ― Acho que você está se metendo em uma baita confusão. Jacob está com o coração partido ainda. Não conhecemos Paige direito, não sabemos o que ela esconde.

                ― Exatamente. Nada melhor que um policial para saber lidar com uma situação como essa.

                ― Mas e se ela decidir desaparecer? Se for embora e deixá-lo aqui novamente magoado?

                ― Se soubermos fazer a coisa direito, ela vai estar tão apaixonada que não vai querer ir embora. ― Enquanto falava, Cora parecia uma criança arquitetando uma travessura.

                ― Como sabe que eles vão gostar um do outro?

                ― O que haveria para não gostar? Ele é um rapaz bonito, ela é uma moça bonita...

                ― Você sabe que se beleza fosse relevante para isso, eu e Tate ainda estaríamos juntos.

                ― Vocês não eram feitos um para o outro.

                ― Ah, e Jacob e Paige são? ― Zhoe indagou, rindo.

                ― Vão ser. Você vai ver.

                E que Deus a perdoasse, mas Zhoe já não duvidava de mais nada vindo de sua tia. Aquela mulher tinha um dom para a coisa. Talvez conseguisse unir duas almas partidas, salvando aqueles corações machucados.

***

               

                Green Hill, aparentemente, era uma cidade de janelas abertas. E assim que Paige também abriu a sua, em seu quarto temporário na pensão de Zhoe Nolan, a primeira coisa que sentiu foi o doce aroma da liberdade. Raios do sol da manhã tocaram seu rosto sussurrando bom dia e palavras de esperança.

                Mas a verdade era que podia realmente estar agindo como uma tola, acreditando fielmente que poderia ser feliz dali em diante.

                Pela primeira vez em muitos anos, conseguiu dormir de verdade, sem ficar acordando de hora em hora, assustada depois de um pesadelo. E tinha acordado tarde. Já passava das nove. Uma novidade e tanto para quem costumava estar de pé às cinco, quando o sol não havia nem nascido ainda.

                Levantou-se, tomou um banho relaxada e foi para a sala.

                Já tinha percebido que a pousada estava vazia, que não havia nenhum outro hóspede além dela ― e de Tate, se é que ele contava como hóspede ―, mas surpreendeu-se ao se deparar com uma mulher jovem, de pé atrás do balcão. Rapidamente deduziu que deveria ser uma funcionária.

                ― Srta. O'Brien? ― ela chamou com muita educação. Paige cumprimentou-a. ― Fique à vontade para se servir no nosso café da manhã. Meu nome é Darlla Williams. O que precisar, pode me chamar.

                ― Obrigada.

                Depois de falar com Darlla, Paige se dirigiu à mesa, o que também a surpreendeu. Embora houvessem apenas duas pessoas presentes para comer, sendo que uma delas nem era um hóspede exatamente, havia um pouco de tudo para escolher. Café, leite, suco fresquinho, torradas, bolo, frios, ovos, bacon... Era uma fartura que Paige não via há anos.

                Sua vontade inicial foi correr até aquela linda mesa e devorar tudo que seu estômago suportasse, mas deteve-se ao ver que Tate já estava lá.

                Ele comia sozinho e em silêncio, com as costas curvadas; o que ela não sabia se tinha a ver com o tamanho da cadeira ou com o fato de estar de ressaca. Parecia inofensiv, mas o problema era que Paige ainda não conseguia se sentir confortável na presença de um homem estando sozinha, ainda mais um homem daquele porte, que poderia subjugá-la facilmente. Esse era um trauma que precisava combater. E aquela era uma boa hora para começar.

                Respirou fundo, pigarreou e cumprimentou-o:

                ― Bom dia. ― A voz não soou tão convincente quanto gostaria, mas ao menos estava tentando.

                Ao ouvir a saudação, Tate lentamente se virou para ela, como se qualquer movimento fosse doloroso demais para ser feito com pressa.

                ― Ei, loirinha! Vai me fazer companhia no café da manhã?

                ― Vou sim. ― Falando nisso, Paige puxou uma cadeira e sentou-se à mesa, mantendo uma distância segura de Tate. Ao perceber isso, ele riu.

                ― Zhoe conseguiu te deixar assustada em relação a mim, não foi? ― comentou de um jeito brincalhão.

                ― Não foi bem assim.

                ― Eu posso ser um babaca às vezes, mas sei me comportar. Não precisa se sentar a metros de distância de mim.

                Paige sentiu-se tão constrangida com a própria relutância que abriu um sorriso.

                ― Desculpa, é que eu não sou muito boa com pessoas. ― Foi a melhor explicação que encontrou.

                ― Eu acho que você é bem simpática. ― Claro que o elogio era parte de seu charme, mas Tate estava sendo gentil, e ela saberia retribuir. ― Ser tímida não significa que você não é boa em se relacionar.

                Se timidez fosse o problema, Paige tiraria de letra. A situação era um pouquinho mais séria do que isso.

                ― E então? De onde você vem?

                Diferente de Zhoe, Tate não parecia tão discreto, então, ela começou a se preparar para uma conversa um pouco mais difícil do que aquelas que tivera até então.

                ― Sou de São Francisco. ― A primeira foi fácil, nem precisou mentir.

                ― O que fazia lá?

                Pronto! Começava a complicar. Teria que começar a criar seu conto de fadas.

                ― Eu trabalhava como cuidadora. Cuidava de um senhor de idade. ― Pensara naquela história durante sua fuga, porque não era uma profissão comprometedora. Não exigia registros nem conhecimentos muito específicos. Era uma mentira segura.

                ― Então isso prova que você sabe lidar com pessoas ― brincou ele, e Paige não respondeu nada. Quanto menos falasse, melhor. ― E o que te fez vir para Green Hill, esse fim de mundo?

                ― Não gosta daqui? ― Tentou jogar o assunto de volta para ele; quem sabe não falava mais de si e perguntava menos?

                ― Ah, gosto, mas só porque nasci e cresci aqui. Já criei raizes. Se tivesse vindo e outro lugar, acho que não conseguiria me adaptar.

                ― Eu achei exatamente o lugar que estava procurando ― deixou escapar, quase que sem querer, pensando alto.

                ― Já ouvi algumas pessoas bem mais velhas que você falando assim ― novamente ele brincou.

                ― Talvez eu tenha mesmo uma alma velha. ― Ou talvez tivesse envelhecido pelas circunstâncias.

                ― Não acredito nisso. Acho difícil acreditar que uma garota tão bonita seja tão antiquada quanto diz ser. ― Paige não sabia lidar muito bem com elogios, então, sentiu-se embaraçada, chegando a corar. ― Que merda! Esquece o que eu falei! Nada a ver eu te elogiar desse jeito. Zhoe tem razão, eu sou ótimo agindo como um idiota.

                ― Tudo bem, não se preocupe. O problema não é com você. Sou mesmo muito tímida. ― Paige achou melhor justificar suas reações com a sugestão que ele mesmo tinha dado.

                ― Eu acho isso uma gracinha. ― Com uma piscadela, Tate se levantou da cadeira, deixando-a sozinha, como uma deixa de um filme.

                Não foi nenhum estrago tão grande, como ela pensara que seria, não precisara falar tantas coisas que não queria falar e, no final das contas, ainda se divertira.

                Nada mal.

***

                Jacob nunca sabia muito bem o que fazer nos seus dias de folga. Normalmente ele os evitava ao máximo, porém, precisava haver uma rotatividade na delegacia.

                Poderia ficar em casa consertando alguma coisa quebrada, mas preferiu ir ao Fair Cafe comer uma boa comida e ver pessoas.

                Para sua sorte, uma das pessoas que estavam lá, bem mais cedo do que ele esperava, era exatamente a pessoa com quem queria falar.

                Aproveitando que Cora estava cuidando de Colin, ele se aproximou de Zhoe, chamando-a em um canto para conversar.

                ― Fiquei sabendo que você aceitou a forasteira na sua pensão. Ela está se hospedando lá, não está? ― Foi direto, sem rodeios.

                ― Está. Por quê? ― Zhoe cruzou os braços, já sabendo que ele falaria algo de mau gosto.

                ― Não acho uma boa ideia. Você não sabe quem ela é. Na verdade, eu acho que tem algo muito estranho a respeito dela.

                Zhoe riu.

                ― Pare de ser rabugento, Jake! Ela só precisa de ajuda, como eu precisei quando engravidei solteira de Colin.

                ― Você tinha um filho, não um segredo.

                ― E como sabe que ela tem um segredo?

                ― Tenho um bom faro para isso.

                ― Ah, eu também tenho. E algo me diz que ela não é uma pessoa perigosa, mas alguém com um trauma muito grande. Talvez seja mais parecida com você do que pode imaginar.

                Jacob franziu o cenho. Será que estava mesmo agindo de forma tão rabugenta que não conseguia nem enxergar direito uma alma partica como a sua?

                E como uma trapaça do destino, o alvo de seus comentários surgiu na cafeteria, uma hora depois de sua conversa com Zhoe, como que para alimentar ainda mais suas suspeitas ­― ou talvez para fazê-las cair por terra.

                Jacob endireitou-se na cadeira onde estava sentado, enquanto ainda bebia um refrigerante bem gelado. Era a hora certa para observá-la.

                Em uma primeira análise, parecia inofensiva. Sorria para Zhoe e Cora como se já tivesse algum apego por elas. Fez um carinho rápido na cabeça de Colin, não parecendo ter muito jeito com crianças, e debruçou-se no balcão para conversar com elas. Parecia mais leve e menos desconfiada do que no dia anterior, mas ainda olhava de um lado para o outro, como se tivesse medo de alguma coisa. Da polícia, talvez? Ou seria algo mais trágico do que isso?

                Em um dado momento, os olhos dela se encontraram com os dele, percebendo que a estava observando. Isso a deixou nervosa de tal forma, que a fez derrubar o copo que tinha em mãos, de vidro, pelo qual bebia água.

                Já era a segunda vez que a sentia nervosa ao olhar para ele, e a sua dúvida era: por quê?

               

***

                Precisava manter o controle. Ou acabaria chamando atenção demais. Principalmente daquele xerife, que não parava de olhar para ela. Extremamente desconfiado.

                ― Desculpa. Eu vou pagar ― dirigiu-se a Cora.

                ― Não precisa, querida. É só um copo ― Cora falou, já começando a catar os cacos de vidro que estavam no chão.

                Paige também se abaixou para ajudá-la.

                Foi a deixa que Zhoe precisava para colocar seu plano com a tia em prática. Um deles, ao menos a princípio.

                ― Tia, não sabia que você estava contratando. ― Ela pegou um cartaz feito à mão, que estava sobre o balcão e o segurou.

                Imediatamente, Paige levantou a cabeça, bastante interessada no assunto.

                ― Ah, sim. Estou com muito movimento. Sandra não está mais dando conta sozinha.

                ― E já tem algum candidato?

                ― Não. Ainda estou à procura ― falou, despretensiosa.

                ― Posso me candidatar? ― Paige perguntou, finalmente.

                Cora também se levantou do chão e olhou para Zhoe com um sorriso no rosto.

                ― Claro que pode. Na verdade, estou precisando tanto de uma pessoa, que se quiser começar hoje mesmo, está contratada.

                ― Jura? ― Paige ficou tão feliz que ousou jogar os braços ao redor de Cora, mas durou apenas um segundo, pois ela logo se afastou, quase assustada com sua própria atitude.

                ― Sim. A vaga é sua, se quiser.

                ― Eu quero, com certeza.

                Cora pegou um avental atrás do balcão e entregou para Paige.

                ― Seja bem-vinda.

                E o mais estranho era que se sentia realmente bem-vinda. Como há muito tempo não se sentia.

                Zhoe parecia a mais feliz com aquela contratação. Sem nem saber por que, já gostava de Paige e queria ajudar.

                Paige também estava feliz, é claro, mas não conseguia se acostumar com o olhar fixo do tal xerife para cima dela. O que tanto ele queria? Ainda mais que parecia cada vez mais desconfiado.

                ― Já falei para não se preocupar com Jake, querida ― Cora intrometeu-se. ― Ele é cão que ladra mas não morde.

                ― Já estou farta de pessoas assim. Elas parecem inofensivas, mas sempre têm veneno escorrendo pela boca ― ela falou em um tom de confissão.

                ― Jacob não é assim. Ele é justo, amável.

                ― Não, tia, ele era assim ― Zhoe corrigiu.

                ― Ah, claro. Antes de a esposa sumir ― Cora revelou. ― Mas é claro que ainda tem muita coisa boa no coração dele. Tenho certeza que vão acabar se dando bem.

                Ah, pobre Paige!, pensava Zhoe. Só ela não conseguia perceber a malícia no tom de voz de sua tia.

                Na verdade, qualquer um que conhecesse bem Cora Fairlane iria compreender rapidamdente suas intenções. Especialmente quanto ela, mais tarde, apareceu na delegacia, com um pedaço de torta de maçã ― a preferida de Jacob ―, despretensiosamente.

                ― O que está fazendo aqui, Cora? ― ele perguntou desconfiado.

                ― Fiz essa torta que sei que você adora. ― Ao dizer isso, ela abriu um pouquinho do embrulho e mostrou a torta que cheirava maravilhosamente bem a canela.

                ― E veio até aqui só para me trazer um pedaço?

                ― Claro, e por que mais? ― Ela se sentou na cadeira em frente a dele, cruzando as penas e colocando o cotovelo em cima da mesa, apoiando o queixo.

                Muito suspeita.

                ― Por que será que eu não acredito nisso.

                ― Que bom! É um homem perspicaz. Vim aqui falar de Paige.

                ― Mas quem é Paige? ― ele sabia quem era, mas preferiu se fazer de desentendido.

                ― Ora, é a loirinha nova na cidade. Aquela para quem você não parava de olhar hoje, na cafeteria. ― Lá estava ela dando uma piscadela marota, cheia de más intenções.

                ― Não comece com isso, Cora. Eu estava olhando para ela porque não a conheço. Não gosto de forasteiros na cidade que aparecem sem explicação.

                ― Ela deve ter uma explicação. Só não vai sair dando para qualquer um que nem conhece. ― Como se não tivesse qualquer pretensão com o comentário, Cora começou a enrolar uma mecha de seu cabelo vermelho berrante e a olhar para o nada. Muito inocente. ― Acho que você poderia tentar conhecê-la. Só a nível de segurança. É o xerife da cidade, precisa nos proteger.

                Jacob encostou-se na cadeira e cruzou os braços. Aquela mulher não dava mesmo ponto se nó.

                ― Cora, não tem nenhuma chance de eu me envolver com essa mulher.

                ― Olha lá como fala, Jacob Barnham. As palavras vão com o vento. Não se deve usá-las levianamente ― ela fez uma pausa. ― Mas é claro que você deve saber o que fala e o que faz. Só sei que se quiser descobrir alguma coisa sobre essa mulher, é melhor tentar conhecê-la melhor. Que tal aparecer no pracinha, como ninguém quer nada?

                ― Na pracinha?

                ― É. Ela disse que queria dar uma volta depois do expediente, e eu indiquei a pracinha para ela passear.

                ― Expediente? Você a contratou? ― Cora fez que sim com a cabeça. ― Meu Deus, Cora, você não tem jeito mesmo.

                Jeito ela não tinha. Mas tinha faro para certas coisas. E sabia com certeza que havia agora uma chama da curiosidade acesa no coração de Jacob. Era tudo que ela precisava.

***

                Aquela era a primeira vez que tinha um emprego. E já começava com um bastante puxado. A sensação era um misto de pernas cansadas, braços doloridos, costas estalando e um coração feliz. Havia um sorriso bobo em seus lábios ao pensar que finalmente estava vivendo sua vida, fazendo suas escolhas e cuidando de si mesma. E estava indo muito bem até aquele momento.

                O caminho da cafeteria até a pensão era relativamente curto e ainda estava cedo, por isso, Paige decidiu caminhar e conhecer Green Hill. E ela o fez lentamente, tentando apreciar cada paisagem e cada momento. Essa foi a primeira decisão que tomou no exato instante em que escapou da prisão onde vivia: seria feliz, não importava como. Saberia apreciar cada vitória, cada bênção e cada dia como se fossem os últimos.

                Pegou o caminho pela orla, observando aquele lindo mar à sua frente, e depois, exatamente como Cora lhe ensinara, pegou a primeira ruazinha à esquerda.

                A cada passo que dava, observava as pessoas e os lugares ao seu redor. Chegando na pracinha da cidade, indicada por Cora, logo sentiu o cheiro do cachorro quente vindo da barraquinha, escutou os latidos ferozes de um cachorro, apenas para descobrir que se tratava de um pequeno Yorkshire ― o que a fez sorrir ― e, principalmente, observou um casal de namorados, que se beijava apaixonadamente sob uma árvore, sentados em um banquinho.

                Apesar de saber que era uma indiscrição, Paige não conseguiu não ficar olhando. Chegou até a se encostar em uma pequena murada, de longe.

                Tudo que pensava era em quando conseguiria se sentir livre ao ponto de conseguir se relacionar com alguém daquela forma? Principalmente porque ainda não se sentia segura ou à vontade perto de homens. Eles ainda a intimidavam, por mais inofensivos que pudessem parecer.

                Ainda estava divagando consigo mesma sobre o assunto quando ouviu alguém gritar "Cuidado". Instintivamente ela sabia que era para ela, mas nem teve tempo de descobrir qual era o motivo, pois apenas sentiu algo atingir sua cabeça com força, fazendo-a cambalear. Contudo, algo ― ou alguém ― a segurou antes que pudesse chegar ao chão.

                Um pouco desorientada, a pancada na cabeça fez com que Paige perdesse um pouco a consciência, mesmo estando acordada, imediatamente transportando-a para dias atrás, quando ainda vivia seu inferno particular.

                Fora sua primeira tentativa de fuga. Frustrada, é claro. Totalmente sem planejamento, realizada em uma situação de desespero total. Lembrava de como fora punida pela "audácia" e como ficara dias sem poder sequer se mexer, deitada em uma cama. Também lembrava do medo que sentira ao realizar sua segunda e última tentativa, do quanto estivera apavorada, pois sabia que não suportaria outro castigo como aquele.

                Aquele tipo de pensamento ficou rondando sua cabeça, sem conseguir voltar para a realidade.

                ― Paige?

                Ela escutou a voz a chamá-la. Era uma voz de homem, forte e incisiva, mas que ela não conhecia. Então como ele sabia seu nome?

                ― Paige?

                Outra vez. Talvez tenha sido a curiosidade o que fez Paige focar seus olhos finalmente e enxergar o homem que a segurava nos braços, amparando-a.

                Ela o reconhecia. Em um primeiro momento não conseguiu discernir de onde. Precisou de um tempo, respirou bem fundo e lembrou. Era o homem da cafeteria, o tal xerife da cidade.

                Mesmo agindo de forma tão gentil, ele ainda mantinha uma expressão sisuda, fechada, como se desconfiasse de qualquer coisa debaixo do seu nariz.

                Mas era bonito também. Não tão bonito quanto Tate, mas de uma forma mais máscula, mais madura. Não podia pensar nesse tipo de coisa, mas, quando era mais jovem, quando ainda podia se permitir sonhar com banalidades, era este o tipo de homem que a atraía, que fazia seu coração bater mais forte; não os botões do colégio.

                Vendo-se tão vulnerável nos braços daquele estranho, Paige levantou-se com pressa e acabou cambaleando por um instante, tendo que ser novamente resgatada por Jacob Barnham, como ela o conhecia.

                ― Calma. Você levou uma forte bolada na cabeça. Ficou fora de si por alguns instantes, precisa se estabilizar novamente.

                ― Eu estou bem.

                ― Sim, mas ainda está tonta. ― Ele fez uma pausa. ― Olha, eu sou o xerife da cidade, tudo bem? Moro ali, naquela casa. ― Ele apontou para uma casinha a poucos metros da praça. ― Vamos comigo até lá para que possa beber uma água e se sentar em um lugar mais confortável. Depois eu te levo à pensão de Zhoe. Ok?

                ― Não! Eu nem te conheço! ― falou por instinto, sem nem pensar no que dizia.

                ― Eu sei disso, mas não vou te fazer mal.

                Paige conhecia frases como aquela. Já a tinha ouvido vezes demais, e todas elas terminaram como mentiras. Todas as vezes que acreditara em promessas assim acabara em péssimas situações. Por isso soltou a mão que ele segurava e levantou-se, pronta para fugir dali, porém, foi novamente traída por seu próprio corpo e caiu sentada no banco, ao lado dele.

                ― Que teimosa! Já disse que só quero ajudar ― falou com certa impaciência, só não esperava olhar nos olhos da moça e surpreender-se ao vê-los apavorados, como se Jacob fosse um monstro pronto para comê-la viva.

                E ele não teve mais nenhuma dúvida de que houvera um monstro assim em sua vida.

                Por um momento, Jacob se arrependeu da forma como falou com ela e abrandou o tom de voz.

                ― Desculpa. Não queria soar grosseiro. Eu realmente só quero ajudar. Sou o xerife da cidade, não tenho qualquer intenção de te fazer mal.

                Grandes merda, não era? Exatamente como Cora tinha dito minutos antes, palavras podiam voar como o vento. Elas não serviam de nada se não vinham de um homem honrado. Provavelmente o oposto de alguém que ela tinha conhecido e que a tinha feito sofrer. Mas, apesar de tudo, ele tinha honra. E também uma curiosidade latente.

                Não podia negar que sua primeira intenção quando a convidou para ir à sua casa fora investigá-la e talvez compreender o que fazia ali, em Green Hill. Ainda queria descobrir, é claro, contudo, tinha uma intenção diferente. Apenas ainda não sabia qual era... Talvez... ajudar. Afinal, era seu dever como policial prestar auxílio a quem precisava.

                Para seu alívio, Paige finalmente concordou em ir até sua casa. Ambos começaram a caminhar enquanto Jacob a amparava.

                Poderia estar cometendo um erro, mas precisava confiar em alguém. Apenas esperava não estar enganada.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo