ENCONTRADO

O copo estava pela metade quando o chamaram.entendeu como um alerta do destino, conspiração do universo ou qualquer outra denominação mistica para evitar mais um gole daquele café. Não estava ruim e sim algo além do intragável. Quem quer que tenha preparado não poderia se iludir com a ideia de viver daquilo ou morreria de fome.

Derramou o copo na pia da cozinha, foi até a sala de estar. Metade das tábuas do chão tinha sido retiradas,as paredes  totalmente lixadas,sacos de cimento e argamassa,pisos de porcelanato se empilhavam pelos cantos. Dentro de alguns dias aquele mausoléu seria transformado em um ambiente pós moderno rabiscado por um garoto de barba estilizada e canudo com cheiro de recém formado que nunca sujou as mãos com rejunte. Tudo muito lindo e caro,muito caro.Bom, não era problema dele,estava sendo pago para seguir o projeto,nada mais.

-Patrão, achamos isso aqui escondido no chão.- disse Francisco, um dos pedreiros.

-Escondido?Onde?

-Num quarto, debaixo do piso.Tipo um esconderijo.

Abílio colocou os óculos ,abriu e retirou um caderno de capa verde oliva. A primeira página continha apenas a palavra Distorção datilografada. As páginas seguintes eram desenhos de quadrinhos em preto e branco. Aparentemente um original  com traços perfeitos, vivos de um jeito que jamais vira. A última vez que lera um gibi ele ainda acreditava que poderia mudar o mundo com uma banda de rock e espinhas na cara, depois nunca mais se interessou por aquele tipo de leitura. Mas aquela arte parecia agarrar sua atenção, arrastá-lo até a última página.Uma impressão estranha se formava em sua mente, como se as imagens ganhassem vida,como se de repente ele se teletransportasse para a realidade daquela história.

-Patrão, patrão.

Abílio levantou o olhar aturdido. Demorou dois a três segundos para voltar a si.

Francisco o encarava com a testa enrugada.

-Acho que  que essa semana dá pra começar o piso novo-ele avisou.

Abílio passou a mão no rosto.

-Isso é ótimo. Precisa de alguma coisa?

- Material tá tranquilo.

-Bom-Abilio empurrou os óculos para cima-Ate segunda será que termina?

Francisco levantou os ombros.

-Pode ser. Mas não prometo,patrão. Sabe que jogo limpo com o senhor. Vou fazer de tudo para entregar esse piso na segunda.

Sinceridade era a última coisa que esperava. Ultimamente andava precisando de boas notícias ainda que falsas.

Olhou a sala ao redor com seus resquícios originais .O novo dono fez questão de não preservar nada como uma espécie de expurgo. O momento pelo qual passava não era muito diferente, sentia que tudo do seu casamento era arrancado, derrubado como paredes e portas. A diferença é que não fazia ideia do resultado final. Tragedia ou felicidade? Só o tempo responderia.O fato era que podia sentir a poeira nas mãos de vinte e dois anos desfeitos.

- Algum problema se eu levar?- perguntou.   

Francisco meneou a cabeça.

-Sabe o que é?

-Só uma história em quadrinhos.

-Esquisito o cara esconder no chão.

-Devia ter algum valor,vai saber.

Francisco coçou a cabeça e não disse mais nada.

-Ta legal,vou voltar ao escritório.-disse Abilio-.Qualquer coisa me avise.

-Certo,patrão,vai na paz.

Desabava uma chuva quando Abílio saiu da residência. Correu até sua Ranger ,já com as portas destravadas, jogou a pasta no assento do carona e acordou o motor.

Era difícil pensar em voltar para casa quando já não era um lar e ao contrário de antes, desejava passar o maior tempo possível longe. Ainda precisava resolver algumas coisas no trabalho, o que de certo modo o confortava.

"Vai deixar as coisas desse jeito?"

As palavras soaram tão claras que olhou para o banco de trás. As preocupações estavam mexendo com sua cabeça. Ouvira dizer que determinados níveis de estresse podem causar esquizofrenia. Só esperava que não estivesse nesse processo.

A conversa com Marcela naquela manhã era mais uma das muitas detonações que implodiam seu casamento pouco a pouco. Ele sabia de tudo, mas esforçava-se em demonstrar ignorância. Podia enganar qualquer um; ele, jamais. Conheciam-se o suficiente para não conseguirem ocultar algo um do outro. Eram como filmes assistidos por décadas em que se sabe cada cena e, o mais assustador, a percepção real das motivações. Por isso não lidavam com o porquê e sim o como.

Talvez fosse essa calamidade emocional que estivesse provocando pensamentos ou vozes sem sentido. Não seria surpresa se começasse a ver coisas também.

Sua vaga no estacionamento estava ocupada por um Fusca vermelho cereja. Todo mundo sabia que era um grande erro estacionar ali, regra que não valia para a dona daquele carro.

Abílio respirou fundo, bateu os dedos no volante, estacionou na vaga ao lado. O dia ainda não terminara e estava longe disso pelo que parecia.

Mal entrou, Fátima o abordou com olhos verdes e desesperados.

-Eloisa está na sua sala. Ela não disse o que queria. Eu falei que não tinha certeza se o senhor ia voltar, mas ela fez questão de esperar.

Abílio levantou a mão. Seus lábios formavam uma linha.

- Já sei, Fátima.

Atravessou o corredor com um ou outro cumprimento discreto e breve. Seu andar era pesado, os ombros caídos, o semblante cansado. Empurrou a porta de sua sala com o caderno e encarou a filha, sentada sobre a mesa com as pernas cruzadas, brincando com um peso de papel em forma de bola de cristal.

-Você tem alguma coisa contra cadeiras, Eloísa?

Os lábios cheios da jovem desenharam um sorriso forçado. Olhos grandes e escuros piscaram.

-Não, papai, só que me sinto mais à vontade assim.

-Aqui não é lugar para se sentir à vontade.

-Nossa, quanta gentileza.

Abílio abriu um frigobar, pegou uma garrafa de água mineral.

-O que você quer?

Eloísa  olhou para as unhas pintadas de laranja. Notou que uma delas tinha uma falha.

-Por que acha que eu quero alguma coisa, pai?

-Porque ultimamente anda querendo coisas demais.

-Eu estou querendo coisas demais?

Ele deu uma golada na garrafa e apontou para ela.

-Não sei qual seu jogo, mas hoje não  estou com cabeça pra isso.

-Não tem jogo nenhum. Por que sempre acha que tenho segundas intenções ?

-Porque você sempre tem.

Eloísa levantou as mãos em rendição e desceu da mesa.

-Olha, é sério, não vim aqui com pedras. Só queria…ter uma conversa normal com meu pai.

Há quanto tempo não tinham esse tipo de conversa? Ele não lembrava de um momento recente em que tivesse ficado mais de dez minutos sem discutir com Eloísa. Até mesmo na adolescência eles conseguiam conversar.Agora era só afronta,sarcasmo e mágoa. Mas entendia que não era gratuito e em parte estava resignado,ele não era nenhum santo.Por outro lado, estava tão necessitado de um momento de paz que gostaria de acreditar nas intenções de Eloísa.

-Tudo bem,se importa se for aqui?

Ela levantou os ombros estreitos.

-Pode se tiver café e biscoitos.

Abílio sorriu breve,viu a garrafa térmica em uma bancada atrás da mesa.  O  café deveria estar frio.Pegou o telefone da mesa,discou o ramal e fez o pedido à secretária. Foi quando notou que ainda  segurava o caderno.

-Ei,dá uma olhada nisso.-estendeu para Eloísa.

-O que é?

-Algo que talvez interesse.

As sobrancelhas negras e delineadas dela saltaram quando começou a olhar as ilustrações.Traços fluidos, perfeitamente trabalhados .A anatomia dos personagens era quase fotográfica com uma vivacidade que ela nunca vira igual,o cenário com uma profundidade incrível de detalhes.

Estava virando mais uma página  quando seu pai interviu.

-O que  acha?

Eloísa riu baixo.

-Nossa, isso é perfeito.De quem é?

-Não faço ideia.Achei hoje em um imóvel,escondido no assoalho.

-Uou,pelo visto queria manter segredo.

-Sera que tem algum valor?

Eloísa repassou as primeiras páginas,olhou até o final.Havia apenas duas letras: R.V.Nenhuma outra informação que identificasse o autor.

- Bom, é um original bem antigo.Dependendo de quem seja nosso amigo artista,pode valer um bocado. Mas independente disso, o trabalho dele  é excepcional.Valor artístico tem.

-Fique com ele.

Eloísa estacou.

-Serio?Posso mesmo?

-Tem mais utilidade pra...- ele ia continuar a frase quando percebeu a expressão no rosto dela,uma que há muito tempo não via e se tornará uma lembrança nebulosa de anos mais simples. Pensava que nunca mais veria Eloísa como uma criança,que aquela garotinha hiperativa e carinhosa havia se perdido em algum armário do tempo.Mas por alguns segundos,um pouco mais que um piscar de olhos, viu uma menina surpresa,agradecida e que admirava o pai. Foi desse modo que entendeu que ela  estava tão cansada de brigas quanto ele.

A porta ginchou ao abrir.Fatima entrou com uma bandeja.

-Licencinha, gente.Só não coloquei açúcar .

Ela deu a volta e pôs tudo sobre a  mesa. Ao se virar pensou em dizer alguma coisa,mas desistiu.Murmurou licença e saiu rapidamente com um sorrisinho discreto.

-Talvez Misaki se interesse-sugeriu Abílio ao entregar uma xícara de café a ela.

Eloísa mordeu o lábio inferior,estalou a língua.

-Pode ser que ela goste.

-Não vejo por que não.

-Ela não trabalha com quadrinhos.

-Não quer dizer que não possa agora.

Por um tempo,Eloísa e Misaki administraram juntas  uma pequena editora de livros digitais  que nos primeiros anos decolou de uma forma que não esperavam.Embora os autores fossem novos,tiveram um grande número de vendas  e resenhas na internet.

Os vídeos promocionais em que elas comentavam os livros se popularizaram e a editora ganhou seu lugar no mercado.Na primeira feira de livros em que participaram sentiram-se como estrelas de rock  com uma multidão de fãs se acotovelando para vê-las.

Não demorou muito conseguiriam sair da garagem do pai de Misaki e alugar  um escritório. Alguns autores se tornaram reconhecidos internacionalmente e cada título lançado era como um novo iPhone com direito a histeria.

Mas os últimos dois anos não foram muito favoráveis,a editora perdeu a metade dos melhores escritores para as grandes, as vendas decairam e a empresa lidava com um período delicado de sobrevivência.Pouco antes,Eloísa abandonara a sociedade para se dedicar a uma clínica de estética.

Aquela grafic novel ,de algum modo, poderia ser a tábua de salvação,mesmo não se enquadrando no tipo de publicação da editora.

Antes de mostrar a Misaki, arrumaria um tempo para ler. Queria ter certeza de que valia a pena, embora o pouco que vira a surpreendesse.

- Acredito que ela vá gostar. Eu adorei e estou louca pra ver o restante.

Eloísa se inclinou e beijou o rosto do pai.

Abílio ficou paralisado,por um momento achou que sua mente o ludibriava de novo e pensou na possibilidade de procurar um especialista.Estendeu a mão,tocou no rosto dela,um nó apertou a garganta.

-Filha,eu…sinto tanto -achou que sua voz soou trêmula,mas isso importava?

-Não há nada pelo que sentir,pai. Não importa o que você tenha que fazer. Se acha que será bom pra você,tudo bem. Só quero que estejamos bem a partir de agora.

Abílio a abraçou com força,sentiu ela corresponder com sinceridade, o coração bater acelerado. Desejava que aquele instante nunca terminasse,que todos os dias voltassem a ser bons.Tanto tempo e foi como a  primeira vez quando viu o rosto dela.Sentiu-se pai,sem necessidade de defender suas razões,sem abrir mais uma ferida.

Ao mesmo tempo, ainda pensava nas palavras no carro.Parecia-lhe nítido que  ouvira uma voz e não uma frase em sua cabeça,não apenas isso, e essa percepção lhe deu um frio na espinha,tinha certeza que era sua própria voz.

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