TRAÇOS DA ESCURIDÃO
TRAÇOS DA ESCURIDÃO
Por: TR ALTMER
ANTES

Estamos agora na Rodovia Laura Alvim onde um ônibus da linha 237 acaba de ser sequestrado.Pelo que fomos informados até agora, cerca de trinta passageiros estão sob o poder de três indivíduos armados com fuzis e pistolas. A polícia acompanha o veículo, mas até o momento não foi estabelecido nenhum contato...

O repórter se cala com um giro no botão do rádio. A campainha toca insistente do lado de fora. O homem em seu apartamento levanta da cadeira, pega meio cigarro do cinzeiro. Ia parar de fumar um dia.  Conseguiu resistir por dois meses até começar o trabalho. Agora também já não importava.

Abre a porta sem pressa. Depois das onze da noite ninguém precisa se afobar. A pessoa à sua frente usa o figurino noir -  capote marrom,chapéu preto com abas, sapatos opacos.Não se trata de  um estilo e sim uma resposta à chuva infernal. Silvio Alieri não lembrava se em algum momento de sua vida gostou de chuva.

Ele cumprimenta o homem  e entra.

-Muita chuva, hein- comenta o homem ao abrir passagem para Silvio.

-Um dilúvio,meu amigo,um dilúvio.

- Noite do cão.

-É,o tipo que eu gostaria de estar debaixo do meu teto. Menos hoje, é claro. Então, onde está a mona lisa?

Olha ao redor e é socado pelo cheiro causticante de cigarro, mofo e qualquer outra coisa indefinível. Apartamento padrão da periferia com pisos de cerâmica castanha, paredes brancas e lâmpadas incandescentes. Latinhas de cerveja estão  jogadas em um ou outro canto, um cesto de lixo transborda de bolas de papel, cortinas encardidas cobrem metade da janela, um sofá roxo de dois lugares  com um dos braços puído.

O homem não o convida para sentar,tampouco se preocupa em oferecer alguma bebida.Vai até uma mesa pega algumas folhas de papel e entrega.Depois senta e  volta a desenhar.

O sofá geme com o peso de Alieri. Percebe tarde demais que esquecera de tirar o capote molhado,mas acredita que o anfitrião não se importa. Nas primeiras páginas tem algo diferente.Os traços mais fortes e fluidos.Havia um  realismo nas expressões dos personagens que em trinta anos no mercado de quadrinhos jamais viu.

A diferença entre um homem talentoso e o gênio é que o primeiro impressiona enquanto o segundo pode marcar a sua vida para sempre. Aquele trabalho atesta as linhas de um gênio. 

Alieri se esforça para desgrudar do sofá. Queria mais daquela história. Vai até a  mesa, analisa outras páginas.

Mexe a cabeça, passa a mão no rosto, permitindo se tomar por uma comoção que só experimentou quando garoto.

-Isso aqui é incrível!Se eu não estivesse vendo você desenhar agora diria que era de outra pessoa.

Sua boca congela. Franze a testa,sorri e bate com o nó dos dedos nos papéis.

- Foi por isso que me chamou. Uma nova abordagem, não que eu não apreciasse sua arte, entenda bem.So que está em um nível... transcendental. Nem vi a história direito  e já tô vidrado.

Os lábios do desenhista se curvam para baixo. Coloca um lápis na orelha, levanta a página que trabalhava à frente do rosto.

- É, tem razão- ele responde- se eu entregasse esse trabalho pronto não ia acreditar.

Silvio hesita em responder. Aquele tom parece perigoso.Já não eram amigos como antes, se é que alguma vez o foram.

-Cara, só posso dizer que você se superou.

O desenhista faz um movimento afirmativo com a cabeça.

- Quero  o Bronson nisso.

Silvio coça um olho com o dedo médio. Inspira fundo.

-Não pode tá falando serio, cara.Olha, conheço uns caras que vão adorar sua arte,não vão pensar duas vezes em jogar na praça.

-Só mostra pro Bronson.

-Cara,posso até mostrar, ele vai gostar, eu sei.Mas quando souber que é seu,vai desconsiderar tudo.

-Acho difícil.

-Dificil?-Alieri trava no cesto de lixo-Você esqueceu do que aconteceu?Esqueceu por que não está mais trabalhando lá?

-Nunca esqueci.

-Então não precisamos perder tempo com isso.

Um sorriso sombrio se alinha no rosto do desenhista.

-Garanto que não será uma perda de tempo.

-Ele é capaz de rasgar seu trabalho só de raiva.E ai?

O homem levanta e vai até uma estante. Pegou uma pasta de couro.Abre sobre a mesa, aponta para os desenhos.

Silvio revira os olhos e entrega.

-Não prometo nada- protesta.

-Guarde com sua vida,Alieri e mostre pra aquele idiota.

-Perda de tempo,só perda de tempo.

Silvio abraça a pasta. Tem em mente alguns nomes, mas teria que passar por Bronson primeiro,mesmo sabendo ser inútil.

O mundo precisava daquela arte tal como o Davi de Michelangelo ou a Persistência de Memória de Salvador Dali, não seria a teimosia de um cabeça dura que impediria.

O desenhista coloca a mão no ombro de Silvio, sustenta o olhar.

- Conto com você, amigo.

Silvio engole em seco. O rancor havia mexido com a cabeça do homem. Talvez aquela obra tenha sido até mesmo a expressão da mágoa fermentada por anos.

Queria dissuadi-lo a deixar para trás aquela sombra. Queria que suas palavras tivessem algum valor. Mas o que fez quando o cara estava na pior? Nada. Mais do que qualquer outro, sentia se responsável.

Se houvesse algum tipo de redenção em mostrar aqueles quadrinhos para Bronson, tudo bem, ele  faria. Convencer o editor chefe da Incrível Comics a publicar já estava fora do seu alcance.

-Darei notícias - finaliza.

De repente, um baque surdo seguido de uma sequência de pancadas abafadas vindo de algum lugar do apartamento. O desenhista aperta os lábios, joga fora o cigarro e sai por um corredor mal iluminado.

Silvio solta a maçaneta lentamente e aguarda, mesmo não sendo mais necessário estar ali.

Um grito sufocado, barulho de pés, metal, mais pancadas,um grunhido inumano se eleva. Os pelos dos braços de Silvio se arrepiam. Devia ir embora, não precisava se meter em problemas, mas suas pernas estão congeladas. Um berro lancinante despedaça no ar. Silvio segue até o corredor. Uma luz tênue escorre por uma porta semiaberta.

- Ei ,cara, ta tudo bem ai?

Um estalo. Avança hesitante. A porta explode,um vulto disforme se lança para fora  desequilibrando Aliesi.Rola para o lado, apoia-se na parede, depois volta para a sala. Uma dor lancinante rasga seu estômago. Uma mulher de cabelos negros,a pele pálida como leite,vestida em uma camisola suja grudava se ao desenhista, as pernas enroscadas na cintura,os braços encaixados no pescoço assim como a boca vermelha de sangue.

O desenhista grita,os joelhos lutam para não sobrarem ,as mãos tentam empurrar a cabeça dela.

Uma tira de couro grosso por debaixo da cabeleira se remexe como uma cauda. Silvio contorna e puxa com as duas mãos. A mulher engasga, emite um ruído angustiado e tomba de costas. O desenhista desaba,a mão no pescoço, a expressão petrificada.

Silvio da três voltas da tira na mão.A mulher cospe uma massa vermelha e o encara.Seu rosto é jovem, muito mais do que pareceu no primeiro momento.

Um bolo estanca na garganta de Silvio. Um frio ácido sobe pela espinha,as mãos estremecem.

-Não pode ser- sussurra.

Volta-se para o desenhista que geme, a roupa empapada de sangue.

- Ela...ela é...o que você fez,cara?O que você fez?

As sobrancelhas do desenhista se unem.Os lábios se retesam. 

-Quem é você pra me julgar,Aliesi!Eu fiz o que foi necessário e você nunca vai entender isso.

Um chiado áspero escapa da garganta da garota.Circulos escuros no antebraço magro,realçados pela palidez da pele. Uma cicatriz amarelada  do joelho até a canela.

 Silvio afrouxa a pressão da tira,mas imediatamente solta como se fosse algo contagioso. Ajoelha-se perto da garota e com os dedos encontra uma coleira comprimindo a jugular. Tateia um fecho, abre. Ela arregala os olhos,um odor pútrido expele de sua boca.

-Fique calma...vai ficar tudo bem.-a voz de Silvio sai baixa,tremula.

A garota movimenta a cabeça de um lado para outro,tenta dizer alguma coisa,mas só consegue emitir uma espécie de ganido.

- O que ele fez com você? o que ele fez?-Aliesi a segura com cuidado pelo braço

Ela pisca,entreabre os lábios,franze a testa.Um pensamento estoura  na mente de Silvio com a potência de uma bomba nuclear.

-Isso é loucura!

-Se afasta dela- o tom de voz não insinua um pedido. Nas mãos do desenhista um revólver e tão chocante quanto, o buraco escarlate no pescoço.

-O que pensa que esta fazendo, cara?.-Silvio se coloca à frente da garota.

-Agora temos um problema.

-Não precisa ser assim,cara.

-Infelizmente sim,Aliesi.Não espero que concorde com o que fiz.

-Do que você tá falando,homem?

O rosto do desenhista brilha de suor, sua pele em um   tom acinzentado os lábios descoloridos .A ferida no pescoço lembra uma boca escancarada.

-Nem você nem ninguém vai entender...ainda.

Dois passos para o lado.

-É muito maior do que você pensa.

Aliesi se levanta, o queixo projetado para a frente, os olhos estreitos.

-O que penso é que você sequestrou essa criança.

-Ela não é minha prisioneira.

-Com uma coleira?-Silvio grita e sua voz precede um silêncio sufocante.

Um grande vazio o devora, arranca nacos de sua sanidade. Um monstro voraz destripando suas forças. Todo o respeito que tinha por aquele homem se esvai.

-Olha.- Ele dá um passo,as mãos a frente.-Podemos resolver isso tudo da melhor forma. Eu levo a garota, dou a assistência que ela precisar e você fica na sua.

O homem sustenta o olhar e ri. Leva uma mão ao pescoço.

-Nem eu,nem você e muito menos ela podem mudar as coisas, agora.

-Você ficou maluco.

O desenhista trinca os dentes amarelados.

-Cai fora daqui,Aliesi,e leve meu trabalho.

-Eu não vou levar nada.Como pode se preocupar com isso?

-Estou tentando salvar a sua vida,seu imbecil.

-Minha vida!Por que você vai atirar em mim se eu ficar?

Silvio se pergunta se algum vizinho pensou em  chamar a polícia, deduzindo que o barulho no apartamento levantasse suspeitas.

Avança para frente vigiando a arma.Esperava que não houvesse reação.Uma pressão esmagadora envolve sua carótida.Seu corpo desequilibra para trás.As mãos sacodem freneticas o pescoço,sente o couro da coleira cada vez mais apertada.Os dedos grossos lutam para desafrouxar,o coração bombeia como uma locomotiva,os pulmões ardem.Uma névoa leitosa cobre a visão.

O desenhista aponta a arma para a cabeça da garota que se esforça em estrangular.

-Não me force a isso.-rosna o desenhista.

A garota ri.O rosto colado ao de Silvio.

-Você ia mata-lo de qualquer jeito,não ia?

-Não, não ia.

Um gorgolejar escapa dos lábios de Sílvio. Os pés resvalam,os joelhos desabam no piso com o barulho de algo se partindo.

O dedo do desenhista pressiona o gatilho. Um estampido corta o ar,lacera a carne da garota. Suas mãos se soltam,dedo a dedo. A dor causticante lambe o ombro atingido.As pernas vacilam como que prestes a flutuar. Trinca os dedos, equilibra, avança com um salto.Mais um tiro rasga o abdômen e ela  tomba derrubando o desenhista .Com o que resta de força, ela morde a região do pomo de adão,esmagando como se fosse uma maçã. Os braços do desenhista convulsionam,as pernas se retesam, um suspiro breve.

A garota se afasta , as mãos no ferimento, o rosto retorcido.

-Não, não, não,não.-

Cambaleia até Aliesi e se agacha.

-Não morra, não morra, não morra.

Engole as lágrimas, mancha de sangue o rosto de Silvio.

-Eu não queria...

Rescostada a um canto,como um artefato hediondo,a pasta de couro.Enquanto o seu conteúdo existisse,o pesadelo não cessaria.O horror tinha vida própria e ambições insaciáveis.Sentira seu poder arrastando-a para uma existência de desespero.

O corpo parecia carregado de chumbo,um gosto de ferro apodrecia em sua língua,frio intenso corroía seus ossos. Foi se arrastando, os braços tiritantes sobre o chão.A visão oscila.Chão,teto,paredes tornam-se um só.

Lembra de um rosto mais velho, cheiro de avelãs e açúcar,mãos sobre seus cabelos,voz aquecida. Vomita um bolo de sangue.

Seus dedos sentem a superfície rugosa do couro. Precisava destruir aquilo. Faltava-lhe força nas mãos, uma dormência começa a dominar seus membros.

Sorve oxigênio com tudo o que restava.O braço cai por cima da pasta e não se move mais. Os olhos esbugalhados fixam o vazio, o vazio de si mesma que a encarava.

-Isso é só o começo, é só o começo,isso é só o começo...-geme.

Às suas costas, alguém sussurra uma canção que ouviria pela ultima vez.

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