Um Rosto, Muitos Mistérios

Jean andava apressado, quase a correr. Desejava com fervor sair daquele bosque. O som das folhas secas sendo amassadas pelos seus pés o deixava ainda mais nervoso. Era como se mais passos o acompanhassem.

"Não, não pode ser!" ᅳ Ele repetia e repetia em pensamento. Olhou para Jindo, que também guardava um fio de horror no olhar.

ᅳ Por que você foi lá, Jindo? É perigoso. Você poderia se perder. ᅳ Repreendeu o cão, tudo para tentar afastar a lembrança da sua memória. A visão do que havia naquele buraco o tinha perturbado ao ponto de deixar suas pernas bambas.

"Um braço… O braço! Aquela pulseira… Não! Não pode ser!" ᅳ Ele mais uma vez retomava o assunto, não conseguia afastá-lo.

Lembrava-se dos detalhes. O braço estava em alto grau de decomposição. A pulseira dourada e fina, apesar de imunda, cintilou. Tudo rebobinava em sua mente, fazendo suas pernas bambearem ainda mais. Tornou-se difícil caminhar. As mãos também tremiam, acompanhando todo seu corpo. Realmente, havia um morto naquele bosque.

Homem e cão deixaram para trás o caminho rodeado por árvores. Saiam do bosque e podiam avistar a pequena cabana alguns metros à frente. Continuavam seus passos de maneira nervosa e ágil. E atrás deles, em meio a escuridão do bosque,  uma ventania incomum ganhou força. Começou a balançar as folhas das árvores de uma maneira agressiva. O vento assobiou, conseguindo arrancar arrepios em Jean. Por um instante ele parou e pensou que deveria olhar para trás. Estava curioso. Por alguns segundos se viu paralisado pelo medo, não conseguia mover nenhum músculo, foi isso que o impediu de saciar sua curiosidade. 

Jindo aproveitou-se do momento. Deu um arranque súbito e desprendeu-se da mão daquele que o segurava sem muito força. O cão saiu em disparada, seguindo rumo à cabana. Bateu contra a porta frágil, ela abriu facilmente. O cachorro entrou no local parecendo um furacão desajeitado. Foi diretamente em busca de Andressa, subindo sobre a cama onde ela dormia e a acordando com toques insistentes de seu nariz gelado e várias lambidas. A cauda se agitava toda descontrolada.

ᅳ Jindo… ᅳ Andressa murmurou enquanto tentava se levantar. Não conseguiu. Tinha um pesado cão sobre ela, lambendo-a sem parar, conseguindo arrancar sonoras risadas.

ᅳ Vamos, Jindo! Você não pode subir na cama. ᅳ Ela disse enquanto tentava empurrá-lo para o chão, mas o cão grande e forte se recusava a descer. Deitou-se sobre ela.

Jean chegou esbaforido em frente à  cabana. A arrancada de Jindo foi o combustível para fazê-lo se mover. Logo após o cachorro sair em disparada, ele fizera o mesmo, finalmente tendo controle sobre seus movimentos. De forma alguma iria permanecer na saída do bosque sem algum tipo de companhia, nem que fosse a companhia de um cão. E ele não podia negar, por mais que tentasse se manter centrado a todo o tempo, admitiu sentir medo. 

Agora, na frente de sua casa, tentando recuperar o fôlego, acabou rindo. Decidido a esquecer momentaneamente o acontecido, Jean entrou,  indo diretamente para o pequeno quarto. Deparou-se com o lençol claro da cama repleto de marcas escuras feitas pelas patas de um cão. Jindo permanecia sobre a cama, Andressa já havia desistido de fazê-lo descer. Deitados lado a lado, eles ouviram o volumoso grito:

ᅳ Jindo, se manda daí!

O cão levantou sua cabeça e moveu suas orelhas caídas. Olhou na direção do rapaz com certa despretensão, até perceber  que Jean corria furioso até ele. Rapidamente o cão saltou da cama, correndo de maneira veloz, passando ao lado do rapaz e conseguindo fugir com maestria para o lado de fora. 

Andressa apenas ria. O grito a havia despertado por completo e todos os movimentos e sons fizeram com que imaginasse a cena. Ela se divertiu e se sentou sobre a cama. Jean fez o mesmo, ficando ao seu lado. Ele apoiou sua mão sobre  a perna dela. Carinhosamente e em silêncio ela tocou a mão do rapaz, passando a acariciá-la. Andressa apoiou sua cabeça sobre o ombro da coisa.

Observando todas as atitudes sinistras da esposa, Jean, que estava de pé a alguns passos distante da cama, encarava toda a cena com uma expressão clara de interrogação. Andressa acariciava o nada. Na verdade, ela parecia acariciar alguém, mas alguém invisível. Acreditando que tinha o marido ao seu lado, passou a acariciar as costas dele, levantando um pouco mais o toque, sentindo algo diferente roçar em sua pele. Estranho! Naquele exato ouviu Jean chamá-la, indagando:

ᅳ Andressa, o que está fazendo?

O som vinha de longe. A certeza surgiu abrupta. O que acariciava, o que tinha ao seu lado, não era seu  noivo. O sangue gelou e o coração passou a pulsar desgovernadamente. Ela ergueu a cabeça, afastando-se da presença indefinida. Levantou um pouco mais a mão, conseguindo tocar o que parecia um longo, seboso e áspero cabelo liso. Gritou tão alto que sentiu sua garganta arranhar. A sensação sinistra se manifestou uma vez mais. Era como estar na companhia do sobrenatural. E a sensação se tornou ainda mais pesada, o pavor tornou-se quase insustentável. Andressa sentiu a vulnerabilidade. Os olhos mortos se moviam de forma frenética, buscando pela visão de qualquer coisa. Ela precisava enxergar. Mas não podia. Andressa não sabia o que tinha ao seu lado, mas sentiu que se levantava calmante. 

Jean correu até ela. Subiu na cama. Os braços partiram para um abraço. Os olhos confusos não desviavam de Andressa, ele não conseguia imaginar o que acontecia, apenas a via gritar. E ela se arrastava sobre os lençóis, buscando o afastamento. Os olhos frenéticos e apavorados se arregalaram ainda mais, ela sentia a aproximação e, afundada nas sombras, desejava apenas ficar longe. Até algo inexplicável acontecer. Das sombras da cegueira um rosto tomou forma. Nos primeiros instantes era algo coberto por uma névoa e praticamente indecifrável. Jean estava próximo o suficiente, repetia seu nome, perguntava insistentemente o que acontecia. Tentou tocá-la. E seu rosto se confundiu a uma outra visão. 

Quando tudo se tornou mais claro, Andressa pôde enxergar um rosto. Oriental como o de Jean, mas feminino. Era muito pálido. O  globo ocular estava vermelho vivo e a íris completamente negra, sem nenhuma pupila, a encarava. A presença fantasmagórica aparentava uma mistura de sentimentos indecifráveis. Os olhos bizarros estavam quase escondidos por detrás das mechas escuras. A criatura abriu sua boca. Se desejava falar algo, decepcionou. Apenas conseguiu emitir um som abafado. E tossiu. Tossiu uma, duas, várias vezes., Parecia estar engasgando, quase sufocada. Terra negra salpicou o corpo apavorado de Andressa. Logo lama passou a escorrer pela boca da criatura, caindo sobre as pernas da mulher apavorada. Os olhos sob os fios negros se arregalaram. Andressa gritou mais alto. Empurrou de forma brusca aquele corpo, afastando-se ainda mais. Apenas parou quando conseguiu sentir o toque gelado da parede às suas costas. Não tinha para onde fugir. Sua visão retornou à escuridão completa. Ela tremia como nunca. Agarrou-se às suas pernas, encolhendo-se no canto, confusa, assustada.

ᅳ Andressa, o que está acontecendo? ᅳ A voz de Jean foi ouvida. Ele, já recuperado do empurrão que quase o derrubara da cama, estava igualmente confuso. Preocupado, viu Andressa levar suas mãos ao rosto e chorar em desespero.

ᅳ Andressa, por favor, fala o que houve… ᅳ Aproximou-se com cuidado, tentando abraçá-la mais uma vez.

ᅳ Por favor, eu preciso ficar sozinha, eu acho que… Estou enlouquecendo. ᅳ Ela disse ainda a chorar, insistindo em se esquivar de qualquer toque. Aflita, apavorada, não confiava em mais nada naquele momento. Jean se mostrou persistente, demorou, mas ele conseguiu envolvê-la em seus braços para um abraço forte e disse tentando tranquilizá-la enquanto acariciava seus cabelos:

ᅳ Provável que o Erick venha aqui amanhã para acompanhar sua recuperação. Ele trará os resultados dos últimos exames. Você vai ver, não está ficando louca. ᅳ A tinha aninhada em seus braços, afundada, agora sim, em seus ombros. ᅳ O acidente é algo recente e o próprio Erick disse que até uma recuperação completa, muita coisa poderia acontecer. Não se preocupe, tudo ficará bem.

ᅳ Espero que sim, espero mesmo. 

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