Flor-de-Lis - parte 4

- Desfecho -

– Você, Ônix Pedra-Negra, assassino de meu irmão, foi julgado por mim e aqui estamos para executar sua sentença – disse o capitão, do alto do castelo de popa, acima da cabine principal de seu navio. As três mulheres aprisionadas abaixo dele não conseguiam ver seu rosto, mas escutavam claramente suas palavras.

Ônix recuou um passo. A corrente prendendo seu tornozelo ao mastro principal o limitava tanto que era besteira explorar seu alcance total. Era mais sensato, aliás, não fazê-lo, na possibilidade de algum dos marujos ali não perceber que ele poderia ir um tanto além. Um tanto que poderia permiti-lo agarrar o incauto e usar isso como vantagem. O que, sinceramente, Ônix duvidava que fosse acontecer.

– Fiz o que precisava ser feito – Pedra-Negra falou. – Não o que eu desejei. 

– Pois farei o que preciso e o que desejo e isso me torna um capitão mais eficiente – o homem careca falou.

– Faça o que quiser comigo, mas as liberte – Ônix pediu. – Elas sequer faziam parte da tripulação quando o Unha morreu.

– Acontece que o que eu farei com você será pior do que lhe matar – o homem, conhecido como Carne, falou.

A um estalo de dedos, três dos marujos com as pistolas se posicionaram, cada qual em frente a uma das prisioneiras, e apontaram suas armas para elas.  

Ônix fechou a cara. O quarto marujo, que recebeu a pistola do capitão, parou diante dele, mas não lhe apontou a arma. A uma distância segura, lançou a arma de fogo para Pedra-Negra e ele ficou confuso.

– Estamos todos ansiosos, por isso, lhe ajudo a entender a situação – Carne falou. – Esses três marujos meus, diante de três marujas suas, estão dormentes, programados por mim para duas possibilidades.

O termo “dormente” significava que não estavam cientes de suas ações, escolhidas pelo seu capitão. A técnica foi descoberta por Carne quando ele foi aprisionado por soldados do rei e selecionado para experimentos secretos. Quando foi libertado por Pedra-Negra e aceito como parte de sua tripulação, tentou convencer o capitão a usar aquilo a favor deles. Ônix nunca se interessou a obrigar um homem a fazer o que ele não queria, no entanto.

Carne não tinha tais reservas, Ônix sabia.  Restava saber a necessidade daquilo e a razão de ele mesmo ter recebido uma pistola. Não teve de esperar muito. Como prometido, Carne o ajudou a entender a situação:

– Uma das três pistolas apontadas para minhas prisioneiras, não tem munição. A sua pistola tem. Você pode atirar em um dos meus marujos, antes que eles recebam o sinal para dispararem nas moças. Se você tiver sorte, vai derrubar um marujo com munição e, nesse caso, apenas uma morrerá. Se não tiver sorte, vai atirar no marujo que não tem munição e perderá duas moças. Mas, seja como for, ao menos uma você pode salvar.

– E se eu atirar em você? – Ônix apontou a pistola para o capitão Carne.

– Perderá a chance de tentar salvar a segunda vítima – o capitão Carne estava certo.

Pedra-Negra sentiu uma gota de suor escorrendo pelo queixo. A situação não estava boa para ele, definitivamente. Saboreando o momento, o capitão Carne continuou:

 – O certo é que pelo menos uma delas morrerá e você carregará a culpa até o fim dos seus dias. Pode ser a culpa pela morte de duas delas ou de uma, se tiver sorte. Seja como for, após os disparos, libertarei quem sobreviver.

Ônix entendeu a razão de aqueles três marujos estarem dormentes. Um deles estaria no caminho da morte e não há muitos homens dispostos a encarar a chance de uma em três. Talvez pela fortuna certa, mas Carne conhecia Ônix e seu poder de persuasão. Com os marujos adormecidos, Pedra-Negra jamais poderia convencê-los a não seguir com aquilo. 

– Não perca a oportunidade de matar este cretino, capitão – Apelada falou, enquanto Ônix ainda mantinha a arma apontada para ele. – Mesmo que, com isso, apenas uma de nós sobreviva. E garanta que vai atingir um local que fará com que a morte dele seja lenta, dolorida e inevitável.    

– Sim, pode atirar em mim – o capitão Carne falou, rindo seco. – Mas, se eu morrer, além de não tentar salvar mais uma delas, perderá a chance de sair daqui com a sobrevivente, vale à pena mencionar. Esses homens são animais. – Ele abriu os braços para indicar sua tripulação. Os homens riram; como se tivessem sido elogiados. – Sem eu aqui para garantir meus termos, eles não libertariam a sobrevivente; fazendo dela a boneca de diversão de todos. Acho que te obrigariam, inclusive, a assistir a tudo isso, enquanto morre aos poucos de fome e sede.

– E se eu me matar? – Ônix perguntou, colocando a pistola apontada para a própria cabeça.

– Bom, nesse caso a coisa toda perde sentido. Meus marujos não vão disparar. Minha tripulação, porém, ganha três novas bonecas para a diversão.

A tripulação gostou de ouvir aquilo. Ônix detestou. As prisioneiras ainda mais.

– Sabe que preferimos a morte – Viúva falou. As outras concordaram em silêncio.

– Só não pense muito, Pedra-Negra – Carne avisou. – A ordem foi de mirarem em seus alvos e, logo depois manterem os olhos na chama desta lamparina, exatamente como estão fazendo. Quando a chama se apagar, vão disparar.  E, pelo que posso ver daqui, a chama não durará mais nem dois minutos. Você demorou a acordar, sabe? Se ficar pensando demais, vai perder a chance de, quem sabe, derrubar um dos meus marujos com munição.

 Ônix olhou para a chama na lamparina. Ela dançava freneticamente. Lutando para se manter por mais algum tempo. O pirata conhecia bem aquela rotina das velas. Pareciam sentir o iminente fim do combustível e se agitavam em desespero. Isso também acontecia com as pessoas. Ônix e suas marujas faziam um esforço tremendo para não tremerem de pavor. Ônix sabia que se contorcer em desespero para tentar se livrar da corrente seria tão em vão quanto o desespero da chama no pavio ante o fim. 

O silêncio foi quebrado por Mudinha:

– Não atire no homem apontando para mim pois já vivi bastante e sinceramente sofri tanto para me manter nesta vida sem muita perspectiva que a morte provavelmente vai ser um alívio se tiver de ser e até espero que seja porque seria muito chato sobreviver lamentando a morte de uma amiga ou duas que tornaram minha vida mais bacana a ponto de eu até dizer que valeu a pena todo o resto de penúria até chegar a conhecê-las.

– Ela é a mais nova, capitão, tem muita coisa para viver ainda – Apelada falou, nervosa. – Atire no marujo dela. Sobrevivam e vinguem quem de nós morrer aqui, arrancando, os dois, os dedos dos que estão se divertindo com esta atrocidade, para enfiá-los em seus próprios olhos, antes de arrancar-lhes as línguas.

– Ora que divertido – Carne falou, saboreando a expressão concentrada de Ônix. – Ao menos já entendeu que não vai conseguir escapar desta situação e salvar todas as prisioneiras.

– Não. Não vou – Ônix finalmente falou, apontado sua pistola para o alvo escolhido. O marujo que mirava em Apelada. – Elas vão me salvar.

O sorriso na cara de Carne desapareceu enquanto um sorriso brotava na cara de Ônix.

Naquele instante, Viúva caía no convés, finalmente livre. Irritada por várias razões; incluindo a demora para conseguir se livrar das amarras. Estava perdendo a prática. Não ficou parada, no entanto. Correu e saltou para o corrimão da escada do seu lado esquerdo para roubar a espada de um dos marujos surpresos.

O capitão Carne sacou a própria espada e desferiu um golpe mirando lamparina, enquanto Viúva saltava da escada e desferia um corte na direção da corda que prendia Mudinha.

A espada do capitão estilhaçou a lamparina no exato momento em que a espada da Viúva atingia a corda e Ônix disparava a arma contra o marujo que mirava em Apelada. Os dois adormecidos de pé também dispararam.

Apelada foi salva por Ônix, que derrubou o marujo que mirava nela milésimos de segundos antes de ele ter a chance de disparar. O tiro disparado em Mudinha acertou a cabine do capitão milésimos de segundos depois de Mudinha pousar, em segurança, no convés, ao lado de Viúva, que correu até Apelada para cortar suas cordas também. A pistola que mirava Viúva não tinha munição e, mesmo que tivesse, ela estava livre para escapar do tiro.

Uma vez livre, Apelada desamarrou a imensa saia revelando, como Ônix já esperava, as muitas pistolas debaixo dela. Se a tivessem revistado, ela estaria apenas com a saia mais leve de baixo. Mas se apressaram em montar o cenário.

Ônix recuou, de braços cruzados. Pistola vazia em mãos. O cano ainda quente. Encostou-se no mastro e assistiu enquanto Apelada atirava a torto e a direito, Viúva fatiava cretinos e Mudinha castigava, severamente, homens imensos, até não restar ninguém de pé a não ser o capitão Carne, que foi convidado a descer ao convés depois que Ônix foi libertado.

Carne encarou aquilo da melhor forma que pôde e desceu as escadas, enquanto Ônix recebia a espada usada por Viúva.

– O que eu sempre tentei lhe ensinar, Carne? – Ônix perguntou e ele mesmo respondeu: – Nunca perder a esperança.

– Você escolheu bem sua tripulação – Carne falou, reconhecendo.

– Foi você quem escolheu mal suas vítimas – Ônix deu de ombros. – Mulambo, Chapuleta e Mequetrefe nunca teriam se libertado.

– Mas você não se importa com eles, a ponto de lamentar suas perdas – Carne falou. 

– Me importo por todos que já lutaram ao meu lado – Ônix falou e, por se lembrar de Unha, acrescentou: – Me importo até com quem luta contra mim.

– Bom. Acho que nunca se importou comigo enquanto lutei ao seu lado – Carne disse, sacando a espada. – Quem sabe eu estava apenas do lado errado e passe a se importar comigo agora que luto contra você.

– Nunca deve perder a esperança – Ônix repetiu.

Nada mais foi dito. A espada de Ônix e Carne se chocaram por várias vezes, até que o homem de cicatriz foi perfurado no peito.

 O capitão Carne foi morto. Não era um exímio espadachim. Era inteligente, apenas isso. Era a cabeça. Os braços, verdadeiramente versáteis em combates, eram os marujos que haviam garantido sua segurança até aquele dia.

– Ótimo trabalho, minhas queridas – Ônix elogiou. Elas não estavam de bom humor e suas expressões denunciavam isso. O capitão percebeu e, ainda assim, forçou, apontando para o corpo de Carne: – Também não me saí nada mal não é?

Apelada sacudiu a cabeça e o olhar de Ônix percorreu o lugar, repleto de corpos e sangue, no qual o capitão Carne era apenas um.

– Ainda assim, fiz a maior parte – Ônix gabou-se, convencido de estar certo.

– Que foi? – Viúva ousou encará-lo.

– Ora! Reuni-las!

Apelada riu, pra não soltar xingamentos, e mudinha disse:

– Sempre vamos nos lembrar disso sem deixar de esquecer todas as confusões das quais já te tiramos e só torcemos que daqui em diante seja mais cuidadoso pra não depender dos seus marujos.

– E marujas? – Ônix quis confirmar.

– Não mais – Viúva falou. – Enquanto estava desacordado, combinamos entre nós que, se sobrevivêssemos, seguiríamos nosso caminho.

– Compreensível – Pedra-Negra não podia culpá-las. – Mas vão precisar de um navio e não é fácil conseguir um... – Ônix parou de falar e entendeu o óbvio. Era justo. Elas tinham merecido aquela embarcação.

– Esperamos que seja mais sensato daqui em diante, Pedra-Negra – Apelada falou. Sabiam dos planejamentos de Ônix para invadir o castelo do rei Valdrick, num levante contra o maior soberano de todos os reinos.  

– Sensatez é uma moeda com valor questionável, se queremos comprar uma vida mais plena.

– Ele vai invadir o castelo e não há nada que possamos fazer pra mostrar o quanto isso é arriscado e estúpido pra dizer o mínimo – Mudinha sacudiu a cabeça. Ônix era um caso perdido, na opinião delas.

Para mudar de assunto, ele perguntou:

– E como vão chamar esse navio?  

– Na época do deus Dáverus, existia uma ordem de mulheres, chamada Flor-de-Lis – Apelada contou. – Estudei isso nos livros da minha família. O símbolo era feito de três pétalas e somos três. Pode ser um sinal.

– Já vi tal símbolo – Ônix falou. – Mas a pétala central é maior. Quem será a capitã?

As três se entreolharam e Viúva respondeu:

– Nós três. Cada uma tomando a frente, quando tiver mais argumentos sensatos sobre determinada questão. 

– Isso não funciona – Ônix falou.  – Há momentos nos quais decisões devem ser tomadas numa fração de segundos. Quase nunca há tempo para deliberações e escolher entre três opiniões; isso quando cada uma tiver apenas uma. É pouco provável que consigam manter o navio em ordem, dessa maneira.

– Tão improvável como tomar o castelo de Valdrick – Viúva rebateu. Ônix teve de considerar.

– Vai ter de confiar em nós – Apelada completou.

– Tanto confio que as queria ao meu lado; vocês sabem.

– Sempre estaremos do seu lado, na luta contra as injustiças – Viúva falou, sorrindo. – Só não estaremos mais... ao seu lado.

– Posso fazer um último pedido? – Ônix arriscou: – Se eu falhar em salvar os reinos da opressão dos nobres, completem a missão por mim.

– Completar a missão, nesse caso, significa fazer todo o trabalho pesado? – Apelada perguntou, sorrindo.

– Corre sério risco – ele admitiu.

– Imaginei – Ela deu de ombros.

Jogaram os corpos no mar e havia muito sangue para limpar. Mas deram-se ao luxo de subirem até o castelo da proa para contemplarem o pôr do Sol. A escuridão estava chegando.

Pedra-Negra apoiou-se na amurada da embarcação e falou:

– Vão precisar de outros para manter a Flor-de-Lis funcionando. Principalmente com os mares cada vez mais vigiados.

– E não vamos nos limitar ao mar – Viúva revelou.

Pedra-Negra enrugou a testa sob a bandana, por um segundo. Pelo visto já estavam pensando em deixá-lo antes mesmo daquela aventura, e Apelada confirmou:

– Percebemos como podemos ser mais fortes juntas e imaginamos como seria com dezenas ou centenas de outras.

– Outras? Aceitarão apenas mulheres?

– Como era antes, quando a Ordem era mantida – Mudinha falou e sua concisão surpreendeu Ônix. A confirmação, nem tanto. Rindo, ele perguntou:

– Querem que eu pule agora ou...

– Pode esperar chegarmos até as águas frias – Viúva falou, sorrindo.

– Ah! Então sirvo como comida para os tubarões! Que bom que conseguem ver alguma serventia pra mim. Mas tomem cuidado, meninas. Não se tornem aquilo que mais odeiam.  Nem todos os homens são como Jarbal.

– Não se preocupe. Sabemos bem. Conhecemos um que apenas finge ser um cretino – Apelada falou.

– Vou aceitar como um elogio – Pedra-Negra inclinou a cabeça.

– E quem disse que ela estava falando de você? – Viúva riu, por um instante, mas parte dela lamentava. Ônix era realmente um amigo estimado e queria o bem dele. – Vamos torcer por você, Pedra-Negra.

– Principalmente porque se você conseguir o que planeja nós não teremos tanto trabalho como imagino e isso seria uma surpresa boa já que não acreditamos muito nas suas chances de sucesso em seu plano desprovido de sensatez e elegância – Mudinha completou.

– Você vai ser a que mais sentirá saudades de mim, menina – Ônix sorriu para ela.

– Nem tanto porque posso arrumar um saco de pancadas pra pendurar na minha cabine pra te substituir de forma adequada e até melhor porque o saco de pancada não fala muito.

– É. Falar muito é feio. Muito – Pedra-Negra apontou o dedo para Mudinha.

A menina agarrou o dedo num bote veloz e o torceu, levando Ônix ao chão. O pirata tentou se retorcer para sair da imobilização e foi surpreendido por outro movimento de Mudinha. As duas mulheres, de pé, assistiam e Apelada perguntou à Viúva:

– Separamos?

 – É a forma dela se despedir. Deixe. É divertido e logo não haverá tempo para diversão. A coisa vai ficar séria.

O navio seguiu vagarosamente, por estar operando em condições mínimas. E ninguém lamentou por isso.

*

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