Ônix - Prelúdios Lúdicos - Volume 3
Ônix - Prelúdios Lúdicos - Volume 3
Por: William Morais
Flor-de-Lis - Parte 1

(Uma aventura pirata completa em 4 capítulos. Este e os três seguintes!)

Prelúdio                                

- Escrevendo sobre escrever -

– Tem certeza de que quer ser escritor? – a psicóloga pergunta. Temos conversado sobre isso, por ser algo que tem me incomodado. De todas as artes às quais me dedico, escrever é a que mais me agrada e queria poder me dedicar mais a ela. Falei disso e, pelo visto, ela acha que é preciso falar mais.

– Certezas são armadilhas perigosas – falo, sorrindo. – Poderia dizer que sim, mas não sei se é uma questão de querer e sim de precisar. Embora talvez eu só sinta que preciso por querer.

– Para você, o que é escrever? – ela pergunta.

– Escrever é construir no terreno do leitor – falo. – Ao abrir meu livro, o leitor abre sua mente para mim. Minhas palavras vão criar ali um cenário, personagens e situações. É uma relação bem íntima, em algum aspecto. Haveria alguma obscenidade aí, certamente, não fosse o fato de eu não ter acesso a isso. Entrego as sementes, programadas para gerar os frutos pré-escolhidos, mas só posso ter notícias de como foi a colheita depois. Ainda assim, é interessante. O resultado certamente depende do terreno nas quais as sementes foram lançadas. Seja como for, é uma relação de confiança.

– Para você, o que é escrever? – ela me pergunta. Acho curiosa a repetição. Ela pode se repetir e acho que a ideia é eu tentar responder sem fazê-lo. Deve ser uma forma de aprofundamento, penso. Confio nela e embarco na proposta.  

– Precisamos, de quando em quando,  estar fora de nós mesmos para podermos olhar de forma diferente para o mundo e, com isso, contribuir para inová-lo – falo, após pensar um pouco. – Foi nisso que me encontrei.  Escrevo porque preciso. Busco fazer de cada livro um convite a uma jornada mágica. Meu fascínio está em fascinar.

– Para você, o que é escrever?

  – Vivemos num mundo prático, onde praticamente não vivemos – digo. – Na maioria do tempo, estamos automatizados. Encarcerados. Corpo e mente. E eu... bem... sinto uma imensa necessidade de sentir. Acho que é através das emoções que exercitamos a alma. Escrever é uma forma segura de saborear emoções numa dose administrável. Ali posso sofrer ou me empolgar juntamente com um personagem, de forma moderada.

– Para você, o que é escrever?

– É trabalhar uma compreensão do macrocosmo a partir de um micro ­– argumento. – Escrever pode nos levar a entender a razão de personagens, criados por nós, não terem consciência de fazerem parte de um único escritor. Oriundos de uma mesma vontade, embora na maioria das vezes pareça o contrário, por terem objetivos tão diferentes. Escrever pode ser um caminho para uma compreensão maior de nossa própria grandiosidade, ao compreender que somos, também, personagens de uma Mente. 

– Para você, o que é escrever?

– Escrever é a busca de conexões que nos fortalece mutuamente. Me alegra imaginar que faço outras pessoas sentirem ao lerem o que senti ao escrever, em menores ou maiores proporções. Realmente sinto muito quando escrevo e sinto, além, quando outros sentem. É multiplicar todas essas sensações.

– Para você, o que é escrever?

– Escrever é sonhar acordado, com plena consciência. É reger uma orquestra. Cada personagem um instrumento.  É me deixar ser embalado pela minha própria canção. É lembrar que também sou um personagem e por isso também sou sonho e, sendo, quero me sentir realizado.

– Para você, o que é escrever?

– É expor um pedacinho de mim.  Um pedaço multifacetado e multiplicado que é lançado em várias direções em busca de pessoas que o acolham e escolham para, assim, reforçarem suas razões de existir. É uma busca por quem tem capacidade de compreender esse pedaço e, por isso, é uma busca por semelhantes; em alguns aspectos, no mínimo. É uma busca por alguma conexão que nos lembre pertencermos a um mesmo mundo; de estarmos no mesmo barco. 

– Para você, o que é escrever?

– É ousar. Tenho um público-alvo peculiar. Escrevo para pessoas que querem diversão fácil e filosofia difícil. É tanto para quem vai dar risadas da comicidade, quase constante, como para quem consegue ver que através do leve bater de asas de uma frágil borboleta houve todo um longo esforço, rastejando por uma eternidade, devorando folhas e mais folhas e se fechando em seu casulo escuro, para pura e simplesmente ser recompensado por breves momentos de cores e altura suficiente para nos lembrar que somos A Vida, multifacetada e multiplicada em si mesma. Somos os livros escritos pela Vida. Somos seu pequeno exército. A Vida está buscando a si mesma através de algo que nos conecte...

– Tem certeza de que quer ser escritor?

– Bem, tenho certeza de que, escrevendo, me encontro e me reencontro em mim mesmo, em um mundo onde é muito fácil se perder de vista. É, tenho certeza. Quero ser escritor.     

Satisfeita, a psicóloga é desfeita. Desaparece no ar. O consultório dissolve em seguida. Eu fico. Sentado na frente do meu computador. Escrevo essas palavras que você agora lê. A psicóloga existe, mas não me entenda mal. Existe na minha imaginação. Recorro a ela quando quero me entender melhor. Ela, porém, não sabe disso. Foi imaginada assim para levar seu trabalho bem a sério.  Há nela certa ousadia, certamente, mas direcionada ao seu trabalho.

Graças a esse meu exercício de escrita, estou pronto para escrever mais um episódio da minha série literária.

Não tenho dúvidas se quero ser escritor. Mas há outra questão: alguém, além de mim, quer que eu seja? Talvez você possa me ajudar a responder a essa pergunta.

Lúdio I

   - As duas primeiras -

Uma lição sempre prende quem ainda não a aprendeu. E dizer que o pirata Ônix não tinha muito ainda a aprender, seria tão impreciso quanto afirmar que não era culpa dele. Ele havia deixado muitas pontas soltas em sua jornada até aquele dia e uma delas o havia amarrado de um jeito que ele não teria como escapar, porque quem o aprisionou conhecia todos os seus truques.

O pirata despertou, sentindo a cabeça latejar. A roupa toda negra ampliava o calor no corpo. A luz do dia pareceu queimar seus olhos. Ele pôde ver, porém, onde estava. Era um navio. Não o dele. Estava acorrentado ao mastro principal.

Um grilhão apertava seu tornozelo esquerdo. Não era a primeira vez que despertava numa situação daquela. E nem todas eram culpa de alguma embriaguez.

Era o oitavo mês do ano 522 do Novo Tempo. Nove meses antes, o pirata havia enfrentado uma adversária muito perigosa e, como resultado, havia sido exposto a uma essência extraída de plantas raras. Desde então, passou a sentir, esporadicamente, uma paralisia nas quais um arrepio percorria seu corpo e embotava seus sentidos por alguns segundos. Tempo suficiente para ser derrubado. Cada vez que acordava, sentia-se com sorte em continuar vivo. Embora, em algumas situações, como aquela, seria muito mais simples estar morto.

Por sorte, ninguém percebia quando ele ficava paralisado. Mas sentia ser uma questão de tempo, encontrar a morte em decorrência disso. Chamava tais ausências de maldição.

Conseguir uma cura para esses devaneios estava tornando-se cada vez mais uma prioridade em sua vida, em prol de prolongá-la o máximo possível. Ouviu dizer que uma solução poderia ser encontrada com a bruxa Sara Skull, mas conseguir a localização dela teve um preço. Foi preciso se aventurar num lugar perigoso e o resultado era a corrente a prendê-lo ao mastro do misterioso navio.

Ônix sentou-se e avaliou a situação. Sara Skull teria de esperar. Ao seu redor, muitos piratas olhavam para ele. Nenhuma cara conhecida. Nenhuma cara amigável. Ninguém dizia nada. Os lábios esticados em risos silenciosos nas caras de muitos deles. Apenas a madeira e cordas rangiam. Os panos das velas içadas batendo forte. O navio balançava.

Sem nada dizer, levantou-se e virou-se. Além dos piratas ao redor, havia alguns estacionados nas duas escadas laterais que levavam ao castelo da popa e lá estava o capitão daquela nau. Ele estava sentado numa cadeira pomposa, bem de frente para o pirata, mas apenas suas pernas e solas das botas podiam ser vistas lá de baixo, apoiadas no parapeito acima da cabine do capitão. O tal capitão estava inclinado para trás e usava um chapéu de aba larga.

No parapeito abaixo das botas do capitão havia três prisioneiras amarradas e penduradas por cordas. Duas mulheres adultas, uma de cada lado, e uma menina de doze anos no centro.

Todas as três faziam parte da tripulação de Ônix. Pedra-Negra olhou para a primeira, da esquerda para a direita. A mulher loira. Lembrou-se, de imediato, do dia em que as apresentou para seus outros marujos. Todas foram aceitas a bordo na mesma noite. A loira, no entanto, foi a primeira a ser apresentada à tripulação.

*

Ônix estava em seu navio, o Camaleão, festejando com seus marujos, quando encostou-se na porta de sua cabine e pediu a atenção de todos para apresentar três novas integrantes do bando.

– Meus amigos. É com orgulho que lhes apresentarei, uma a uma, nossas novas tripulantes.

– Novas? – Um marujo, conhecido como Mulambo, espantou-se. – São mulheres?!

– Sim, são – Ônix falou.

– Que beleza, capitão, finalmente teremos alguma diversão a bordo – Mulambo escancarou os poucos dentes que resistiam na boca.

– Sim, elas com certeza vão nos divertir, quando você tentar conversar com elas e gaguejar, todo constrangido, dizendo bobagens sem sentido – Ônix falou. A tripulação riu alto e o capitão continuou: – Ou quando, um ou outro for lançado ao mar por elas, por ser desrespeitoso.

– Quê isso, capitão? Nenhuma mulher me deixa nervoso não – Mulambo afirmou.

– É verdade, capitão. Tenho de defendê-lo – outro marujo interveio, rindo. Era chamado de Test’Alta, por ter cabelo apenas na nuca. E foi logo emendando: – Nenhuma mulher o deixa nervoso, pois ele não tem interesses carnais nelas. Ele fala que vai se divertir porque finalmente vai ter alguma amiga com quem conversar sobre roupas e penteados. Mas, todos vamos respeitar as mulheres como parte de nossa tripulação, assim como respeitamos esse frouxo do Mulambo aqui.

Quase todos riram. O marujo desdentado em questão, com certeza não riu.

– Que bom que mencionou o respeito, que será cobrado – Ônix falou, bem sério. – Aliás, conjecturar que elas gostam de conversar sobre roupas, só por serem mulheres e chamar seu amigo de maricas, é o contrário de respeito, só pra deixar claro.

O marujo fez uma careta, por não saber o significado da palavra conjecturar. O capitão tinha mania de usar palavras difíceis na hora de repreendê-los e isso atrapalhava a assimilação da coisa toda. Mas sempre era possível entender que alguma coisa errada tinha sido feita e os outros se aproveitavam para apontar para o infeliz da vez e zombar dele.

– Agora estão todos desrespeitando o Mulambo – Ônix os censurou. E Mulambo apontou para eles, rindo. Pedra-Negra fez uma careta, ciente de que teria muito trabalho. Mas, como era uma celebração, continuou num tom mais alegre. – Você falou besteira, Mulambo, mas que bom que mencionou o interesse em roupas femininas, pois, nossa primeira maruja é ninguém menos, ninguém mais, do que a Pelada. 

A tripulação silenciou no mesmo instante. Mulambo cuspiu o rum que engolia. A bebida escapou pela boca e pelo nariz ao ouvir ao anúncio do capitão, sincronizado com o abrir da porta de sua cabine.

Das sombras, uma mulher saiu, parando diante dos marujos de olhos arregalados. Ela tinha cabelos loiros e cacheados. Apenas duas mechas, vindas da parte da frente, estavam presas na nuca da mulher de pele muita alva. Seus olhos eram verdes e os lábios bastante rubros. Ela estava vestida, para decepção da tripulação. Muito vestida, em verdade. O vestido começava bem no alto do pescoço e descia, cobrindo tudo, até mesmo as mãos enluvadas. O pano requintado do vestido reluzia feito uma pérola, embora em vários tons de verde. Os tons mais escuros estavam nas muitas camadas da parte inferior do vestido. Muitos marujos se perguntaram como ela conseguia andar com aquela vasta saia, que mais parecia uma gaiola coberta, impedindo que até mesmo seus pés fossem vistos.

A mulher sorria, olhando marujo a marujo de forma austera. Era evidentemente de linhagem nobre. Era uma mulher adulta. Ciente de suas vontades. Não se tratava de uma jovem moça querendo simplesmente irritar os familiares. Ela estava ali por ela mesma.

– Capitão... estou confuso – Test’Alta falou, decepcionado. A testa enrugada, pelo esforço de pensar. – Esse é o melhor nome para ela?

– Sim – Ônix fingia não entender.

– E por quê? Se me permite perguntar – Test’Alta insistiu.

– Certamente permito que pergunte e me permito lhe responder: Foi o codinome que escolhi para ela no dia em que a conheci – Ônix falou.

Um murmuro percorreu a tripulação como se aí sim tudo fizesse sentido.

 – Era um dia nublado – Ônix lembrou-se, iniciando uma narrativa esclarecedora. – Eu estava fugindo de um grupo de soldados, graças à minha audácia na Igreja de Dáverus, vista como um insulto imperdoável, quando virei num pátio amplo. Tudo o que havia, a menos de duzentos passos de mim, era esta bela mulher e ela sorriu, dizendo:

*

– Bom dia.

– Tem sido e espero que termine assim – respondi de imediato e fui direto: – Preciso não estar no campo de visão de alguns soldados que logo me alcançarão e, como está vestindo roupa demais para um só corpo; peço permissão para me esconder sob essa imensa saia e, depois, em retribuição, ajudo a tirá-la, caso se interesse; com muito prazer.

– Mais um idiota – ela disse, o semblante mudando drasticamente para a repulsa. – Minha cortesia não era um convite à depravação! E se pareceu, saiba que nem tudo é o que parece. Portanto, não me faça perder tempo. Não tenho saco para isso!

– Acho que você não tem saco para nada... espero que não, pois não ia combinar nada com a cor de seus olhos – falei.

– Não, não tenho saco e você também não terá se continuar na minha frente! Seu asqueroso petulante porco imundo...

A respiração dela tornou-se ofegante. A pele ficou vermelha. Ao menos não mudou para verde e ela não triplicou de tamanho, como acontecia com aquele moço do Passado Esquecido do velho tempo, sobre o qual lhes contei. Mas a fúria dela era proporcional.

– É bem justo pensar assim... – tentei compreender, embora tenha achado a reação desmedida.

– Você é tão repulsivo que eu vomitaria neste chão que nos separa, mas você é quem deveria se jogar aos pés do meu vômito e não o contrário!

O insulto dela tinha tanto vigor que não pude deixar de comentar, forçando um riso sem graça:

– Aí você já está exagerando...

– Exagero foi sua mãe ter permitido que você aprendesse a falar!

Ela me olhava com fúria mortal. Nem parecia a moça gentil de um momento antes. Recolhi meu sorriso e ergui o dedo indicador, dizendo, numa tentativa de repreendê-la:

– Agora você apelou. Não precisava ter envolvido minha mãe.

– Se preferir, posso envolver um tiro nessa sua cara desprezível, como um ponto final nesta perda de tempo.

Ela jogou uma camada bipartida da ampla saia verde, para o lado, revelando muitas pistolas, das quais sacou duas, de dois tiros cada. Não tive tempo de dizer mais nada.

Ela puxou cada cão e apertou os gatilhos, sem hesitar. Esquivei-me de dois disparos e, no processo, vi que os soldados acabavam de virar a mesma esquina. Dos dois tiros, um acertou o soldado mais próximo. Olhei para a garota e ela olhou pra mim. Ri e provoquei:

– Entendi porque precisa de tantas armas. Atira muito mal e precisa de muitas chances.

Enfurecida ela fez dois outros disparos com as mesmas pistolas, descartando-as em seguida, e muitos outros com cada nova pistola sacada.

Eu havia me posicionado na direção dos soldados que ainda estavam de pé e, enquanto eu ia me abaixando, pulando e me contorcendo, os soldados iam caindo atrás de mim, um a um. Ela não parava de atirar e vir em minha direção, cega de fúria. Era muito boa de mira. Não fosse meu rígido treinamento, eu não teria escapado nem do primeiro disparo. Essa é a verdade.

Não podia recuar. Todo milésimo de segundo era gasto para me mover de um lado para outro. Assim sendo, ela me alcançou e encostou o cano de uma arma carregada em minha cabeça. Não havia mais soldados em pé atrás de mim. Agora só havia o iminente disparo final e nem mesmo eu poderia escapar dele.

– Espere! – Pedi. – Você tem atitude e uma personalidade forte. Duvido que se encaixe nesta sociedade, portanto, tenho uma proposta...

– Meça bem suas palavras ou...

– Entendi que tem muitas armas por precisar de muitos alvos cretinos, dada a sua insatisfação, justificada, e isso eu lhe consigo fácil. Ou acha que esses soldados não eram sacanas?

Ela estreitou os olhos, ainda injetados de fúria e perguntou:

– E você não é?

– No geral eu só finjo ser – falei. – Um segredo que podemos manter só entre nós. Se um dia eu contar esta história para minha tripulação, vou mencionar que eu estava mentindo só para te acalmar.

– E eles acreditarão em você?

– Claro que sim. Prefiro mentira para eles, um bando de homens rudes, do que para uma dama – menti só para acalmá-la.

– E quem é você, pirata?

– Sou Ônix Pedra-Negra – falei. Para não restar dúvidas, bati o indicador em minha fivela de prata em formato de crânio com asas, algumas vezes, feito um pássaro pica-pau.

Ela soergueu uma das sobrancelhas. Já havia ouvido falar de mim, como imaginei. Afastou-se, baixando a pistola engatilhada e falou:

– E eu sou...

– Não precisa me dizer seu verdadeiro nome. Não sou o homem-morcego e respeito as identidades secretas de meus associados – falei, interrompendo-a, com muito tato. Percebendo que ela não sabia quem era o morcegão, continuei: – O meu não é Ônix e sempre dou um codinome condizente a meus marujos. E já tenho um para você, certamente. O meu convite é sério e deve considerá-lo seriamente. A menos que queira terminar casada com um velho escroto qualquer, graças a acordos feitos pelo seu pai, mantendo o costume dos nobres de manter alianças rentáveis. Um velho escroto no qual não poderá atirar.

– Posso atirar em quem eu quiser – ela falou, indicando os soldados mortos.

– Não sem pagar por isso – afirmei. – Mesmo fazendo parte da nobreza, como suas roupas e recursos bélicos indicam ser; só teria proteção de seu pai fazendo o que ele manda. Se quer matar quem quiser, precisará de minha ajuda para se esconder.

– Vai me ajudar a encontrar saias de damas? – Ela provocou.

– Ou pode ter livre acesso ao meu navio, que é bastante difícil de ser encontrado por quem não quero e por isso o batizei de...

– O Camaleão – ela falou, desengatilhando a pistola.

– Ouviu mesmo falar de mim. Deixe-me adivinhar: fortaleza do velho Agures?

– Meu pai é um grande comerciante. Já tive o desprazer de estar no mesmo ambiente que aquele velho depravado. Você se arriscou bastante lá, mas, que vida é vida se não for arriscada, não é mesmo?

– Agora estamos nos entendendo, que coisa linda – falei, aliviado por ver a pele perder o rubro de fúria e voltar à palidez de antes. As sobrancelhas dela desceram enrugando a testa, no entanto. Indícios mais do que suficientes de que não gostou de eu ter dito: coisa linda. Para mantê-la calma, e não dar muita margem de interpretação, tratei de esclarecer: – Não me refiro a você e sim a nosso entendimento meramente amigável. – Foi o bastante para suavizar sua expressão. – Não que você não seja linda – deixei escapar e ela engatilhou novamente a pistola apontando-a para mim.

– Não vou tolerar as suas depravações. Ou de qualquer outro marujo estúpido. Sou gentil até...

– Apelar – completei. – E o faz com bastante intensidade, devo dizer, por isso, seu codinome será “Apelada”.

– Isso faz parecer que estou nua. Está querendo me insultar?! É isso?

A voz dela indicava morte iminente e tratei de dizer:

– O que pensei, na verdade, é que nem tudo é o que parece, como você mesma disse. E tal codinome, por si só, já será aviso para os idiotas.

Ela avaliou a proposta e falou:

– Que seja. O risco é seu. Se algum dos seus marujos me irritar...

– Que vida é vida se não for arriscada?

Ela esboçou um sorriso e fechamos um acordo.

*

– E aqui estamos – Ônix falou, cercado pelos seus marujos, ao lado da mulher loira, bastante vestida. – E somos agraciados com a presença desta mulher determinada: Apelada.

– Quem se sentir decepcionado em me ver constantemente vestida, basta me procurar e lhe concederei alívio desse peso – Apelada falou, sorrindo.

– Faria mesmo isso? – Test’Alta ousou perguntar, esperançoso.

– Sim – ela respondeu. – Com um punhal, arranco seus dois olhos em um minuto.

– Credo! Ela apela mesmo – Test’Alta falou, recuando um passo para se sentar sobre um barril, desanimado.

– Vai, otário! – Mulambo falou, exaltado. – Tenta a sorte! Pelo menos terá um minuto com ela. E se fosse sexo, você não duraria tanto, não é?

– E você parece conhecer bem os limites sexuais do seu amigo – Apelada falou, indignada com o teor do comentário, e completou o insulto: – Se é que, com essa intimidade toda, são apenas amigos...

Todos riram, incluindo Mulambo. Até mesmo a novata se deu por vencida e esboçou um sorriso. Estava entre homens depravados; camaradas acostumados a insultos mútuos a todo instante. A camaradagem não apenas estava acima disso, como parecia ser pautada naquele tipo peculiar de relação. Teria de aprender a relevar o máximo. Estar ali seria um exercício e tanto de tolerância. Mas havia escutado mais sobre Pedra-Negra do que ele imaginava e o havia visto uma vez em ação. Ele salvou a vida de uma de jovem pedinte atacada por soldados e, quando achou que ninguém estava vendo, deu a ela um saco de moedas que trazia consigo. Não bastasse isso, ela não acreditava em coincidências e o pirata lhe ofertou abrigo no momento mais crucial de sua vida. Ela tinha pedido por uma ajuda para a força suprema que governa as vidas e talvez o pirata fosse o que podia se oferecido no momento.       

À medida que as semanas passavam, Apelada disparava menos tiros para o alto, em sinal de alerta. Os marujos eram como os muitos cães que já tivera. Aprendiam e eram leais. Só não eram bonitos como os quadrúpedes. Sim, ela aprendeu a tolerar bastante.

*

Pendurada, porém, pelos pulsos, esturricando ao sol quente, Apelada estava irritada. Transpirava em demasia, enfiada debaixo de tanta roupa.

– Como vai maruja? – Ônix perguntou a ela, forçando um riso sem graça.

            – Tenho vontade de enfiar esse mastro ao qual você está acorrentado bem no meio do orifício anal do capitão deste navio, embora tal mastro não seja tão largo como eu gostaria.

– Sutil como eu esperava – Ônix riu, dessa vez com mais graça.

O sorriso não durou muito, no entanto, quando os olhos do pirata alcançaram a segunda refém. Uma menina de doze anos, negra e magricela.

A menina havia sido a segunda a ser apresentada ao navio, naquela noite, e Ônix queria muito estar lá, sob a lua, e não ali, sob o Sol.

*

– Como podem ver, Apelada é divertida e se falarem o que não devem, escutarão o que não querem – disse Ônix. – O mesmo não acontecerá com nossa segunda maruja. No quesito fala, bem, ela tem uma característica peculiar. Recebam: Mudinha.

A menina veio da cabine do capitão assim que escutou a deixa para sua saída. Era uma menina de doze anos, de cabelos vastos e armados para o alto. Calçava uma bota de couro preto que ia até perto dos joelhos, vestia uma calça preta, sobre a qual havia uma curta saia. Tinha um cinto de couro com bolsas penduradas e usava um colete azulado sobre uma blusa preta tão colada à pele quando a calça.  Os olhos grandes da menina observavam com atenção. Era magricela e segurava uma mão na outra quando, a uma indicação de Ônix, deu um passo além para ser vista por todos.

– Capitão; ela não é muito frágil para o tipo de serviço que realizamos? – um marujo perguntou. Era chamado de Coceira-Louca.

A menina colocou a mão na cintura, fechou a cara e disparou a falar:

– Frágil é o seu raciocínio preconceituoso e desmedidamente tão infundado quanto equivocado e previsível oriundo de um cérebro acostumado a julgar as aparências descartando os fatos que não podem ser conhecidos enquanto não apresentados me fazendo deduzir o quanto esclarecedor seria você sentir na pele minhas capacidades de combate até então ocultas.

A menina só retomou o ar, demoradamente, quando terminou de falar, e o soltou de uma só vez. Até isso parecia uma demonstração de descontentamento com o comentário do marujo e não consequência do esforço de sua forma peculiar de falar.

– Tem certeza de que ela deve ser chamada de Mudinha, capitão? – Coceira-Louca cutucou a cabeça cabeluda, pensativo.

O capitão entendeu o não entendimento do marujo e falou: – Quando a conheci, ela tinha algo que eu precisava e, quando lhe pedi que me entregasse, ela respondeu assim:

*

– Se você pensa que pode me enganar está enganado porque sou mais esperta do que parece porque precisei aprender a sobreviver a qualquer custo já que desde muito cedo perdi meus pais e nunca mais tive quem cuidasse de mim e acho que foi por isso que acabei recolhendo esta inocente mudinha de planta delicada quando ela caiu de um carrinho no mercado e agora vou cuidar dela até ela se tornar uma árvore forte e não há nada que você possa fazer para me fazer pensar o contrário ou permitir que você leve a coitadinha.

Eu me senti quase hipnotizado pelos movimentos frenéticos daqueles lábios disparando palavras como uma pistola de tiros sem fim. Ela segurava o vasinho com a plantinha entre as mãos, na frente de seu corpo.

– É que preciso dela para fazer um antídoto para salvar a vida de uma pessoa – contei. – E essa é a última da espécie neste mundo.

– Mais um motivo para eu não lhe entregar porque o que não falta são pessoas neste mundo e se mais uma morrer tanto faz porque eu nem ligo pra ninguém além dela que agora é minha filha e duvido que você entregaria sua filha para morrer como está pedindo que eu faça com tanta falta de vergonha na cara como se eu lhe devesse algo na vida que tive e que não foi nada fácil a ponto de me fazer sentir que não devo nada a ninguém e por isso pode sumir da minha frente para procurar outra pessoa para gostar já que a sua está morrendo e vai morrer se depender de mim que não tenho onde achar outra mudinha desta como você mesmo acabou de dizer.

– Não é para curar alguém de quem eu goste, pra ser sincero – revelei, ainda admirado com o falatório da menina. – Mas é alguém com um conhecimento raro e necessário para um trabalho urgente.

– Quanto? – Fiquei tão surpreso pela pergunta quanto por ela ser capaz de dizer apenas uma palavra. Por isso indaguei, meio perdido:

– O quê?

– Quanto pagaria para essa pessoa fazer o tal trabalho urgente que evidentemente tanto lhe interessa a ponto de lhe fazer correr por aí atrás de uma última mudinha tão desesperadamente como se o mundo girasse ao seu redor e todos fossem atender aos seus pedidos mesmo quando um deles é tão descabido quando esse?

– Dez moedas de prata – respondi, um tanto quanto para calá-la, admito.

– Aceito trinta.

– Pela plantinha?

– Claro que não já que estou perguntando sobre quanto pagaria para a pessoa que certamente eu posso substituir já que ela está morrendo e vai morrer se minha mudinha for mesmo a única chance dela sobreviver como parece dizer que é e isso nem me interessa porque na verdade nunca me interessou embora eu talvez tenha me interessado no trabalho que obviamente vai render pra você muitas moedas das quais pode me passar trinta de prata por eu ser a solução do seu problema.

– Mas nem sabe qual é o trabalho.

– Se tem uma coisa que eu sei é que aprendo o que não sei muito mais rápido do que qualquer pessoa neste mundo desde que eu era muito pequena e o simples fato de eu estar viva é prova disso e deveria bastar pra você se fosse esperto o que obviamente não é.

– Teria apenas uma semana.

– Aprendi a lutar em três dias sendo que o último dia foi apenas para colocar em prática e acabar com muitos fortões que riram de mim numa roda de combates por apostas que acontecia no leste do Porto do Potro e que nem acontece mais pela vergonha que passaram quando derrubei todos eles e até hoje derrubo qualquer um que eu quiser.

– Aprenderia uma língua antiga e secreta, do Passado Esquecido, em apenas uma semana?

– Estou falando que se tem uma coisa que tenho é um cérebro bom que entende como as coisas funcionam já que tudo é muito lógico no fim das contas e não é nada demais na verdade mas nem por isso aceito menos de trinta moedas de prata mesmo sendo mais fácil aprender uma língua do que lutar.

– Se me derrubar, acreditarei que aprendeu a lutar, como diz, e que pode aprender a língua antiga e poderá substituir o cara que vai morrer para a mudinha viver – propus.

– Tá – ela colocou a plantinha cuidadosamente no chão, antes de fazer o mesmo comigo, violentamente. Até hoje me pergunto qual das duas ações demorou mais.

*

A cara de espanto dos marujos, ante o depoimento do capitão, satisfez a menina, que recuou um passo, parando ao lado da mulher loira e bem vestida, naquela noite agradável, a bordo do Camaleão.

*

Acorrentado no navio misterioso, no entanto, Ônix ainda mirava Mudinha pendurada pelos pulsos, quando levantou-se, testando o alcance, limitado, da corrente. E, para disfarçar essa averiguação, perguntou para a menina:

– É ou não é interessante fazer parte de minha tripulação?

A menina respondeu com uma careta e silêncio. E, vindo dela, teve tanto peso quanto as palavras de indignação da primeira prisioneira.

Os olhos de Ônix, agora mais altos, buscaram o capitão daquele navio, no castelo da popa. Não o alcançou, porém, assim como suas mãos não alcançariam ninguém naquele navio, acorrentado como estava. E isso fez com que seu olhar tivesse um lamento perceptível ao encontrar os olhos da última prisioneira.

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