1. Boneca de Pano

            Brenda sentia febre. Chegou a ter esperança de ser imune à doença. A probabilidade era baixa, mas existia. Todos no campus já tinham como fato garantido a imunidade de Rogério. Todos os seus colegas de casa tinham sido contaminados, mas ele, apesar de dizer ter se sentido ‘esquisito’ por alguns dias, não desenvolveu nenhum sintoma real. Quando Letícia ficou doente, Brenda teve certeza que logo ficaria também. Não sentiu nada nos primeiros dias. Mas logo agora que ela tinha começado a criar expectativas de que não adoeceria, os sintomas começaram a aparecer.

            A estudante entrou no quarto, que dividia com Letícia, e trancou a porta. Ainda não estava preparada para o que viria a seguir. Precisaria de uns dias para se preparar, mas ela pensaria em tudo depois. Aquele momento ela precisava para si.

            Abriu o guarda-roupa. No lado interno da porta, havia um espelho. Brenda encarou o próprio rosto. Os cabelos negros, ondulados até a altura da orelha, se transformavam em cachos grandes que, penteados para o lado direito, repousavam em seu ombro. O lado esquerdo de sua cabeça era raspado e seus cabelos tinham apenas alguns milímetros de cumprimento. Passou as mãos, primeiro na parte raspada, depois pela parte longa, sentindo toda a maciez que os cachos possuíam. Passou o dedo pela curvatura suave do próprio nariz, depois pela boca, cujo tom vermelho estava mais evidente como consequência da febre. Brenda sorriu ao pensar que a doença a deixara mais sensual. Olhou para os olhos castanhos e grandes que também apresentavam um brilho febril.

            Brenda se despiu. Tinha os braços grandes e fortes, os seios eram redondos e rígidos e os mamilos, geralmente de um tom próximo do da própria pele, estavam vivazes pela febre. Passou as mãos por todas as curvas de seu corpo, enquanto arrepiava e tremia. Sentia o suor frio brotar em suas costas e sabia que precisava entrar em um banho frio. Mas queria contemplar seu corpo por mais uns instantes. Logo se despediria para sempre de tudo aquilo que contemplava e, definitivamente, não se sentia preparada.

            Escutou um barulho suave na porta, como se alguém raspasse algo macio. Apurou os ouvidos e escutou o barulho se repetir. Foi então que ouviu a voz:

            - Brê? Sou eu. Abre pra mim?

            Era a voz de Letícia, mas não era. Talvez, alguém que conversasse apenas eventualmente, como um tio, um vizinho ou um colega, não percebesse a diferença, mas Brenda, que dividia o quarto com ela há quatro anos, sentia calafrios toda vez que ouvia aquele som que parecia uma imitação da voz original. O chamado se repetiu:

            - Tá tudo bem, Brê? Abre pra mim!

            A estudante não se importou com a própria nudez. Não tinha nada ali que a companheira de quarto ainda não tivesse visto. Abriu a porta.

            Por saber que estava doente, não suportou a visão daquele corpo que não era o de Letícia, mas comportava Letícia. Abraçou a companheira, com cuidado para não derrubá-la, e se esvaiu em prantos, enquanto dizia:

            - Eu também tô doente, Lê. Eu também tô doente.

            Letícia envolveu a amiga com seu braço de pano. Ela não estava preparada para aquele momento, não queria ter que confortar a amiga. Ainda era tudo muito novo para ela também. Mas era assim que as coisas aconteciam e, mesmo sendo a última coisa que gostaria de fazer naquele momento, mentiu o melhor que pôde:

            - Não é tão ruim assim, meu amor. Aproveita que o pessoal tá com muito menos costura pra fazer agora e vão ter mais tempo pra fazer seu corpo com capricho. Vai ser bem melhor que os das primeiras levas! Vai ser bem melhor até que o meu!

            Brenda se afastou alguns centímetros, pra poder olhar o corpo falso da amiga e, entre lágrimas, riu:

            - E o seu já é até bem caprichado!

            As amigas soltaram o abraço e se sentaram na cama. Brenda conseguiu controlar a crise de choro, mas ainda suspirava quando voltou a falar:

            - Desculpa não ter ido ao crematório. Eu juro que tentei, mas eu não ia conseguir ver seu corpo ali jogado, como se não fosse nada. Na verdade, eu não sei como você conseguiu ir... eu... eu não vou ser capaz... – conforme falava, Brenda percebeu que não conseguiria conter as lágrimas, antes de concluir a frase, então se deixou chorar novamente, enquanto concluía – eu não vou ser capaz de ver meu corpo queimar.

            - Você não precisa ir. Cada um tem seu jeito de aceitar. Eu precisava ver meu corpo ser destruído pra conseguir acreditar que não tinha mais volta. Que agora eu sou isso aqui.

            E se levantando da cama e erguendo os braços, Letícia mostrava o próprio corpo. Ela era uma boneca de pano de um metro e setenta de altura. O tecido de sua pele era marrom e levemente felpudo. A boneca era muito bem feita e possuía todas as áreas do corpo bem demarcadas. O detalhamento da mão era impecável, tornando suas habilidades motoras, quase completamente, funcionais. Apenas o rosto não se parecia em mais nada com um rosto humano. Os olhos e a boca eram desenhados e, portanto, não possuíam profundidade. Nos olhos, pequenos pedaços de tecido tinham sido costurados. O aspecto estético não era dos melhores, mas permitia que Letícia pudesse fechar os olhos quando quisesse, e até mesmo piscar. Os cabelos eram feitos de tranças de lã e era a única coisa que sobrara do corpo original de Letícia. O molde havia sido seu próprio corpo, permitindo que ela pudesse continuar vestindo as antigas roupas por sobre seu formato de boneca.

            Brenda olhou a boneca e, pela primeira vez, pensou que estava sendo egoísta. Que a pessoa em sua frente havia passado recentemente pela mesma situação que ela passava agora e, de fato, acabara de ver o próprio corpo arder em uma fogueira. Admirou a amiga pela força que demonstrava e decidiu que, como em outras vezes, nos últimos quatro anos, se inspiraria na resiliência de Letícia.

Já exibia um sorriso no rosto quando disse:

            - Na verdade, sua cintura é mais definida agora do que era antes.

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