Capítulo três

Chegando ao bar, ponho meu avental e começo a trabalhar. Dona Guta surge da cozinha e me olha preocupada.

– Aconteceu alguma coisa, menina? – ela analisava meu rosto enquanto esperava a minha resposta.

– Nada demais, dona Guta. Só os problemas de sempre, sabe? A Luz anda mais curiosa que o normal e já não tenho mais ideias de como responder às suas perguntas.

– Tente conversar com ela, conte a verdade e oculte as partes dolorosas. – Olho para ela por alguns instantes e por fim lhe digo.

– Dona Guta, se eu for contar a história real para ela, só tem as partes tristes, entende? Como vou contar para a criança que o pai não a quis, que a mãe sofreu na gestação sozinha?

– Mas você também pode contar que a mãe não desistiu dela e mesmo sabendo que enfrentaria tudo sozinha, a quis. – Uma lágrima escapa pelos meus olhos e a limpo rapidamente.

– Menina! Desculpe essa velha intrometida. Eu não queria te fazer chorar. Vai lá na cozinha tomar café porque saco vazio não para em pé e daqui a pouco o movimento vai estar grande.

– A senhora não é e nunca foi intrometida, sempre vou agradecer por todos os conselhos que a senhora me deu e vou pensar no que fazer a respeito de Luz. Agora vou lá tomar um cafezinho para começar a ajudar a senhora. – Ela sorri para mim e me sinto grata pelos amigos que conquistei.

Assim que começamos o atendimento, o bar já enche. Aqui nem serve café da manhã, mas o povo vem para tomar uma “talagada” antes do trabalho. Por ser uma cidade pequena, muitos tem plantações e vendem seus produtos no mercadão, que é uma espécie de feira. No Rio de Janeiro, as feiras ao ar livre tinham dias específicos, já aqui, o mercadão funciona todos os dias até tarde. Sabe, uma das coisas boas aqui é que compramos tudo saudável sem aquelas quantidades de agrotóxicos.

A hora do almoço chega e a movimentação é grande, apesar de ter outros lugares que vendem comida, as pessoas gostam de vir aqui. Já conversei com dona Guta para ver se acrescentamos café da manhã e refeição noturna, na verdade, eu comentei com seu Zé que eles poderiam modificar o bar e transformar em um restaurante, mas eles dizem que já estão velhos e que não precisam de mais correria na vida. 

Estava ajeitando uma mesa que acaba de ser desocupada quando dona Valentina chega para almoçar. Ela é uma senhorinha muito legal, o problema dela é só a língua quilométrica. Se alguém quer saber de alguma novidade, é só perguntar para ela. Eu costumo brincar dizendo que o FBI a está perdendo. Assim que trago o seu almoço, ela conta uma novidade.

– Cindy, acho que você não vai mais poder se banhar no rio da fazenda do Toinho. 

– Por que, dona Valentina? – pergunto curiosa.

– Minha filha, você não está sabendo? Os filhos dele venderam a fazenda e parece que é pra gente de fora. Na verdade, é um homem e dizem que ele é bonito e não tem família.

– Larga a mão de ser uma velha fofoqueira! – seu João, que estava chegando, diz e deixa dona Valentina muito revoltada.

– Uma pessoa bem informada não é fofoqueira, seu velho rabugento. – Ela diz e nem se dá o trabalho de olhar para o seu João. Começo a rir com a cena e logo vou ao balcão pegar o licor de menta que seu João toma todos os dias antes do almoço, diz ele que é para abrir o apetite.

Dona Valentina pede mais um pouco de sal, mas sei que é pretexto para continuar com a fofoca e eu estava certa. Depois que a hora do almoço termina, vou para a cozinha lavar a louça suja e enquanto esfrego uma pilha de pratos, penso no que meus pais diriam se me vissem desse jeito: unha por fazer, a pena um pouco seca e as mãos com calos e picotes da faca. Imagino minha mãe aos berros dizendo: “Cindy Laura Campello, criamos você para ser uma princesa e não uma atendente de balcão em um bar de quinta categoria xexelento”. Balanço a cabeça para esquecer meus pais, o dinheiro modifica as pessoas. Minha avó, que Deus a tenha, dizia que meus pais não eram desse jeito, eles mudaram depois que ganharam o dinheiro.

Termino de lavar a louça e volto para o atendimento. Faço o possível para que dona Guta e seu Zé trabalhem o mínimo possível, eles sempre dizem que sou a filha que eles não tiveram. Eles têm três filhos, e nesses quase seis anos conheci dois, o Gustavo e o Henrique. O João Carlos, que todos chamam de Joca, mora no exterior e não aparece aqui, dizem que ele é metido. O Gustavo é casado e é um amor de pessoa, a esposa dele também é um doce e Nandinha, filha deles, é amiguinha da Luz e da Bia, eles moram na cidade vizinha e quando eles vêm aqui pra cidade as meninas fazem uma festança. Já o Henrique é solteiro e tem fama de “pegador”. Ele não é um cara ruim, mas se acha gostoso. Quando cheguei à cidade, ele estava de partida para São Paulo e até me convidou para passar uns dias com ele, mesmo eu dizendo que não estava afim. Ele insistiu e só desistiu quando contei que estava grávida. Ele não é uma má pessoa, mas esse seu jeito incomoda um pouco.

Trabalho até às nove horas da noite e assim que tranco tudo corro para pegar Luz na minha amiga. Chegando lá, Jô me conta que Luz fez um caminhão de perguntas sobre seu pai, seus avós e muitas outras coisas.

– Amiga, acho que tá na hora de você contar algo mais concreto para que ela entenda melhor. A Luz é uma menina esperta e sei que ela vai entender.

– Mas Jô, Luz só tem cinco anos, como explicar para ela que os avós não a quiseram? E o pai muito menos? Eu não posso magoá-la dessa forma.

– E vai ficar contando a história como se fosse um lindo conto de fadas até quando? Uma hora ela vai perceber que tem algo errado e vai começar intensificar as perguntas.

– Você pode ter razão, mas enquanto isso não acontece, vou deixar como está. – Ela segura minhas mãos e depois me abraça.

– Sei que é difícil amiga, mas pensa no assunto. Luz é uma menina muito especial, um serzinho cheio de luz e  merece saber pelo menos a metade da verdade. – Eu sei que Jô está certa, mas ainda não é o momento para isso.

– Vou pensar no que será melhor para Ana Luz, mas por enquanto não conte nada além do que eu já contei para ela, tenho medo que sua cabecinha fique mexida e que ela se sinta culpada por tudo que aconteceu. – Minha amiga me dá mais um abraço e sinceramente não sei o que faria sem ela e Ricardo em minha vida.

 Chamo minha baixinha para irmos para casa e no meio do caminho fico repassando a conversa que tive com minha amiga. Realmente preciso dar um jeito de contar à Luz a verdade, mas como fazer isso sem magoá-la? Me pergunto como estão os meus pais, como estão as pessoas que faziam parte da minha vida... se eu tivesse minhas redes sociais, poderia saber como estão. Jô me mostrou uma matéria recente dos meus pais onde eles citam que eu fui viver no sítio da família para me afastar dos holofotes, pensei que por ser filha deles, eles tentariam me encontrar e fazer contato, mas a verdade é que eles só ligam para o dinheiro e a fama. Talvez seja melhor assim, pois como eles não queriam que eu continuasse com a gravidez, seria capaz de destratarem minha filha e isso seria inadmissível.

Com muita dificuldade, carrego Luz e consigo abrir o portão e a porta. Vou para seu quarto e a deito na cama. Também exausta, vou ao banheiro e tomo um banho rápido. Logo após, vou para a sala onde me sento com uma garrafa de vinho e fico um tempo remoendo o passado. Definitivamente preciso parar de remoer o passado, estou prestes a fazer 28 anos e não posso ficar nesse estado.

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