O hálito da morte

Capítulo 3

O hálito da morte

Ouvi alguns dos amigos saírem do bar e fazerem alguma observação sobre mim que nem prestei atenção. Eu estava com a cantora e sabia que seria alvo das piadinhas deles.

Não fazia muito tempo que estávamos ali sobre a moto e ela já gemia baixinho diante da minha destreza. Então puxei os cabelos da menina com delicadeza para trás, expondo o pescoço e beijei a pele macia e perfumada. Deslizei a língua hábil até a orelha e lambi, depois deslizei a língua até a boca. Eu sempre queria a mulher em ponto de colisão com as estrelas quando estivesse comigo. O meu beijo era demorado, gostoso, mordido, lambido. Eu me demorava muito beijando e deslizando as mãos pelo corpo da garota. Segurei então as mãos dela e as levei ao meu peito sob o colete. Senti que ela se excitou ao percorrer o peito e abdome com as mãos, sentindo os músculos retesados e cheios de pelos que eram aparados, crescendo e espetando suas frágeis mãos.

Desci os beijos até o colo e logo acima dos seios, mas aquele monte de roupas me atrapalhava tanto que chegava a me irritar. Quando o amigo de baixo ficava bem enrijecido eu me tornava o lobo louco que adormecia dentro de mim. Aliás os momentos em que aquele lobo solitário chamado de louco pelos amigos me dominava eram justamente bem específicos, na estrada e com as mulheres. A fera aflorava, mas não de uma maneira ruim. Muito pelo contrário. Um ser dominador tomava conta da minha mente e atitudes e gestos refletiam isso. E eu acho que elas gostavam daquela fera. Deixei as mãos penderem até o traseiro dela e o apertei, a puxando para junto do meu corpo com as mãos espalmadas em meu peito. A cantora não teve outra opção a não ser me enlaçar pelo pescoço e permitir que eu a beijasse mais demoradamente. Eu amava beijos longos, gostosos e molhados e garotas quentes que os sabiam dar. Ela era uma. Quando nos afastamos por poucos centímetros enfiei o rosto entre os cabelos perfumados dela e me declarei.

- Tá difícil ficar só aqui...

- Eu sei, mas eu não posso...

        Afastei meu rosto e a olhei nos olhos. Aquele foi o momento em que eu tive certeza de que ela era diferente, que esperava ser conquistada e que isso não seria fácil. Senti uma ponta de decepção afinal o meu amiguinho de baixo não queria muito saber de cortejos e frases bonitinhas. Nunca quis, mas naquela situação isso se tornava ainda menos importante já que eu estava em trânsito, na estrada, de passagem. Será que ela era inocente àquela altura? De repente ouvi um grito de ódio ecoar pela rua. O grito foi tão alto que eu achei que ia acordar toda a rua, que chamariam a polícia, que alguém tinha sido assassinado. Vi a cantora se afastar de mim para olharmos para o mesmo lugar de onde vinha o grito. Foi então que vi a moto de Bill ser “puxada”* no mesmo instante em que ele saía do bar. O ladrão ainda podia ser alcançado e eu subi na minha moto.

- Me espera aqui!

Dei partida na minha moto ouvindo todos os outros me gritarem para não fazer aquilo. Era difícil para um homem como eu ver um assalto e ficar de braços cruzados esperando. O ronco do meu motor era alto o suficiente para encher de adrenalina o meu cérebro e partir na caça do assaltante que estava na moto de Bill. Ele estava há alguns metros somente na minha frente, calculei mais ou menos uns vinte metros de distância a uns noventa quilômetros por hora. A moto do Bill não se comparava a minha, que alcançava cem quilômetros por hora em três segundos e meio. Cheguei a ouvir os gritos dos companheiros para não fazer aquilo, mas eu não fugia de uma boa briga, principalmente quando esta se tratava de velocidade. O vento frio no rosto sem capacete a mais de cem quilômetros por hora me dava a exata emoção da iminência da morte. Acho que alguma vezes eu procurava por ela. E era por isso que eu tinha a alcunha de “lobo louco”. Era inevitável me chamarem de louco quando me jogava em situações como aquela sem ouvir a mais ninguém. Eu não queria ouvir. A morte era minha mais doce amiga na estrada, eu a testava a me abraçar em todas as curvas, quando meus joelhos quase beijavam o asfalto em estradas sinuosas. Aquela situação foi uma das várias em que cheirei o hálito de enxofre da morte. Sem medo. Eu queria. Achava que eu a procurava a todo momento para estancar os sentimentos tão desagradáveis com relação a minha família. Eu sabia que queriam me trancafiar em um escritório da AF construtora. Eu sabia que meu pai queria se aposentar depois de comer todas as mulheres que aparecessem em sua frente e o velho já tinha lá seus quarenta e dois anos e a careca lustrosa como uma bola de bilhar. Ele queria parar de trabalhar. A única forma de parar seria me parando. A única forma de me parar seria me colocando a frente da empresa metido em terno todos os dias, engaiolado em um prédio e comandando um monte de gente que me chamaria de senhor aos vinte e poucos anos. A minha morte estava próxima. A morte do meu espírito, da minha liberdade, da minha alegria de viver. Eu precisava fugir daquilo, mas não seria me rebelando na minha moto e sim abdicando da minha vida. O único detalhe é que a morte não me queria por mais que eu a procurasse. Eu era um homem dramático que não via saída na vida a não ser a morte para fugir do tédio. Se eu morreria de tédio em breve, era preferível morrer na estrada a cento e cinquenta quilômetros por hora.

Quase emparelhava minha esposa com a moto de Bill por vários momentos, mas eu não queria empurrar o infeliz e acabar com a moto do meu amigo, só queria que ele parasse. Em determinado momento em uma curva passei a ser perseguido por outra moto e para minha infelicidade notei que o cara apontou uma arma para mim. Naquela velocidade a chance de ele me acertar era muito pequena, mas ele me perseguiria e qualquer movimento em falso meu, estaria perdido. Eu chamava a morte, mas não daquela forma. Se ele não me matasse eu poderia ficar paraplégico que era bem pior do que ser diretor da empresa, então decidi por desistir. O ódio imenso que senti naquele momento ao diminuir minha velocidade e encostar me fez arremessar meu capacete longe. Desci da moto gritando muito alto. Já tinha saído da cidade há bastante tempo pelo caminho que eles tomaram. Tudo estava escuro a minha volta. Somente um poste iluminava meu corpo. Eu estava solitário ali no meio da escuridão quando ouvi minha consciência e ela me dizia para parar. Talvez o medo estivesse me pedindo para parar e eu odiava sentir medo. A escuridão pareceu entrar em mim, fazer um buraco na minha alma, me consumir. Pela primeira vez na vida senti medo real de me perder de mim mesmo. Ouvi ronco de motores ao longe enquanto deixava algumas lágrimas descerem pelo meu rosto. Não sabia porque estava chorando, talvez de raiva mas existia algo mais. Entretanto naquele momento eu não sabia o que sei hoje. Eu não fazia ideia de que eu queria aquela adrenalina sempre, mesmo com o medo. Era sobre aquilo que me visitava a escuridão naquela noite. O vício pela adrenalina e o medo do tédio estavam fazendo buraco na minha escura alma. Mas eu não a deixaria me vencer. Eu era um kamikaze aos vinte e cinco anos e não queria mudar.

O ronco de motores de moto foi se aproximando e vi que era meu grupo tentando me achar. Assim que se aproximaram me viram na beira da estrada. Inventei qualquer desculpa para me acharem daquele jeito, que estava “puto”, com ódio dos caras, o que em parte era verdade, mas também por eu ter deixado o medo tomar conta de mim no meio da minha adrenalina. Bill gritou comigo e muito alto.

- Tá maluco, moleque?! Se você vira pasta aqui na estrada o que eu falo para tua mãe?!

Ele segurou minha nuca me puxando para ele me fazendo o encarar sob os holofotes dos faróis das outras motos.

- Minha mãe?! Ela só liga para o meu pai e para as garrafas de vodka que ela derruba, Bill!

- Foda-se, cara! Você tem que parar de ser metido a macho ou vai encontrar a morte mais cedo!

- Foda-se, Bill! Eu não ligo para a morte!

Bill deu um soco no meu rosto. Tão forte que eu quase caí sentado. Após o susto de ser socado por meu melhor amigo, ergui o olhar para ele e parti para cima do velho. Tentei socar e soquei o nada, o vazio. Ele se esgueirou tão facilmente que eu senti mais raiva ainda.

- Ta sentindo isso?! - Gritou ele - É vida, é dor! É sobre isso que estamos aqui, para nos sentirmos vivos e não procurar a porra da morte! Se você não entendeu o nosso objetivo pode pegar tua menina e voltar para a saia da tua mãe porque eu não quero alguém assim no meu grupo!

Todos olhavam quietos, calmos e em silêncio. Aquele silêncio era de consentimento. Todos deviam pensar o mesmo que Bill e eu estava nada consonante com o propósito dos White Wolves. E devia um pedido de desculpas.

- Me desculpa, Bill...

- Eu não quero pedido de desculpas, rapaz! Eu quero que você pare de correr atrás da morte seja por uma moto ou pela merda do motivo com o teu pai! Eu quero que você entenda que somos uma família, uma família sobre rodas que se preocupa com o outro!

- Tá certo, Bill...

- Moto será achada pela polícia, eu compro outra, todos nós aqui temos a possibilidade de fazer isso, você não tem que tentar fazer justiça com as tuas mãos, rapaz!

- Certo, Bill...

Eu tinha que me curvar. Bill era um homem decente e ponderado. Ele sabia que eu era o mais novo e o mais louco de todos. Mas o clube de moto não era sobre loucuras, não era sobre justiça, não era sobre certo e errado. Os White Wolves era sobretudo a respeito de superação, amizade e aventura. O que eu andava fazendo em nada tinha a ver com isso. Eu precisava de ajuda profissional naquele momento da vida e não sabia pedir. Era machista demais para admitir estar triste ou revoltado e que por isso precisava de ajuda. Bill sempre dizia isso, mas eu não conseguia compreender a dimensão das palavras dele. Apesar disso era meu guru na vida. Quando eu perdi a referência de homem decente e honesto pelo meu pai, conheci o Bill. Ele era a minha referência de pai mesmo sem saber ou sem querer ser. Eu o respeitava muito a ponto de baixar minha cabeça e reconhecer que estava errado e isso para mim era algo muito raro de deixar acontecer. Eu era um turrão selvagem e grosseiro de ego inflado. Ele se afastou e subiu na garupa de Mad Max para irem a delegacia mais próxima e alguns amigos ficaram ali comigo até que eu me decidisse subir na minha moto para voltar a cidade e achar uma pousada para descansar. O dia já tinha sido por si só estressante e aquela noite foi a cereja do bolo azedo que tivemos que engolir.

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