Capítulo 3

Tamí sentia os últimos raios de sol daquele dia tocando sua pele e caminhava pela beira do mar, sentindo a água levemente fria brincando com seus pés descalços. Sabia que o caminho até a sua amiga era longo. Aquela sensação de liberdade, aquele lugar todo a encantava e era parte de si. Não havia um dia que ela não ia até o mar sentir a brisa, a areia e a água. O trabalho era árduo, mas ela sabia que ao final do dia estaria ali, vendo um espetáculo que poucos tinham interesse, mas que para ela era o mais lindo do mundo: o pôr do sol na ilha. Lembrou do quanto sua infância foi feliz antes de ser desgraçada por Todi. Sim, ela era uma menina feliz, uma menina do mar. Ela se perguntou se algum dia seria perdoada por Deus pelo que havia feito. Ela não ia à igreja como seus pais, todos os domingos, não importava como estivesse o tempo ou o que ocorresse. Ela tinha dúvidas sobre Deus... por tudo que havia passado até agora. Se questionava se este Deus, tão bondoso quanto seus pais achavam, havia esquecido dela naquela ilha, levando seus verdadeiros pais através da morte e deixando aquele homem horrível tomar sua infância aos 13 anos. Mas ao mesmo tempo pensava que talvez o perdão deste Deus havia vindo na forma de seu filho... Albert poderia ser seu perdão. Mesmo com tudo que ocorrera, aquele menino era uma dádiva, o que ela tinha de mais importante, um amor que ela jamais pensou sentir. Ela fazia com que ela nem pensasse na forma como ele foi concebido, mas simplesmente que veio ao mundo para ser o seu anjo, lhe ensinar o mais profundo e puro amor. Ainda assim o ódio não deixava seu coração. O menino era o único capaz de tranquilizar seu corpo e sua alma feridos. Fora isso, só tinha tristeza e ódio. Muitas vezes ela pensou em esquecer seu passado e viver o presente, mas não conseguia. Quando fechava os olhos à noite, ainda lembrava de tudo. Todi também vinha em seus pesadelos muitas noites, quando ela acordava suada, com um grito reprimido e lágrimas nos olhos, demorando a entender que já havia tudo passado há tanto tempo e ele não estava mais ali. Aquelas lembranças amargas fizeram com que ela crescesse diferente de todos. Era uma mulher forte, que não se importava com sentimentos. Focava somente no que queria e em seus objetivos. Sabia que mesmo com todos os seus esforços, tentando criar associações de moradores, sempre pensando no bem de todos, não era muito bem vista pelo pessoal da vila. Mas sim, ela tinha um coração, mas ele não tinha espaço para o amor, pois o ódio tomava conta dela. Quando um homem a olhava com outras intenções, ela tinha nojo. Detestava quando era observada. Lembrou de Rotsey... mais uma triste história do passado. Albert ainda era pequeno, Esperança e João estavam nas minas e aquele dia ela não havia ido junto pois o menino não estava muito bem. Foi cortar uma lenha para cozinhar e quando viu ele já estava segurando-a pelos seios, por trás de si... Foi tudo muito rápido e ela não teve tempo para pensar. Tudo que viu foi Todi e aquele dia voltando em sua cabeça. Então quando voltou a si já havia jogado o machado no pé dele. Rotsey era um garimpeiro não muito bem quisto no povoado. Um bêbado pervertido que falava besteiras sempre que ela passava por ele. Ela não revidava, simplesmente fugia dele. Quando ele teve aquela atitude ela não tinha o que fazer. Faria com qualquer homem que a tratasse daquela maneira. E o fato de ter um filho jovem fazia com que alguns homens pensassem que ela era uma mulher que todo mundo poderia usar. Isto fez com que ela precisasse se impor daquela forma. O pé do garimpeiro precisou ser amputado. E com isso ganhou sua fama de maquiavélica, pois ninguém se preocupou com o motivo pelo qual ela havia feito aquilo e sim pela forma violenta como ela reagiu. Arrependimento? Ela não sabia ao certo... por vezes sim, outras não. E o certo foi que aquele ato fez com que todos se afastassem dela, exceto Júnior, que quando chegou à ilha não a conhecia. E ela se sentia segura desta forma. Muitos achavam que Júnior era o pai de Albert, pois havia vindo do nada para a ilha... Mas nunca saberiam se sim ou não e se impressionavam pelo fato de Tamí relacionar-se bem com ele de alguma forma. Muitas vezes quando ela passava pelo povoado, em especial no centro de compras da ilha, via olhares curiosos e conversas ao pé do ouvido sobre ela, quem seria o pai do garoto etc. Ela procurava não se preocupar com o pensamento dos outros. Tinha muito que cuidar de sua vida para dar importância a comentários que não lhe ajudariam em nada. E mesmo com todos os julgamento, todos a conheciam... A menina que nasceu na mina de ouro, filha do casal que veio para ilha a fim de transformá-la num lugar lindo e perfeito para que todos pudessem viver em harmonia. Ela não conhecia outro lugar senão a ilha. Sabia que jamais conseguiria viver longe daquele lugar... morreria se algum dia não visse o mar, não molhasse seus pés ou não sentisse o cheiro do pó da mineração. Além do mais jamais poderia deixar aquelas terras, pois seus pais estavam enterrados ali.

Ela procurou ir mais rápido pois logo a maré iria subir e ficaria difícil retornar para casa. Logo avistou a velha casa feita de folhas de palmeiras. Ali morava a Velha, quase dentro do mar. Um grande mistério pairava sobre ela, fazendo com que ninguém na ilha fosse até aquele lugar. Tinham medo dela, achando que era uma bruxa. A Velha do Mar parecia não se importar muito com isso... nem com a forma como lhe chamavam. Muitas lendas eram faladas sobre ela, mas a que mais chamava a atenção era de que a mulher era uma sereia que havia sido amaldiçoada por um pescador quando jovem e virou uma velha. Não satisfeita, passou a fazer bruxarias para quebrar o encanto e voltar à sua velha forma. Por isso ela vivia ali, sozinha. Mas Tamí ainda criança a conheceu na praia e ficaram amigas. Tamí a procurava sempre que podia e levava comidas gostosas feitas por Esperança, mesmo a mão não sabendo. E sim... Ela dizia que via o futuro através do mar. E isso impressionava Tamí. Gostava de ouvir suas previsões, embora não sabia se realmente acreditava. 

Quando ela se aproximou a mulher estava sentada em uma velha cadeira de frente para o mar, envolta nos próprios pensamentos, em busca de uma resposta desconhecida. O mar já tomava tons negros, devido à noite que ia chegando para tomar o lugar do dia. 

- Tamí, menina... o que a traz aqui? – perguntou ela sem olhar para Tamí.

- Vim ver se a senhora estava bem.

Ela riu, mostrando dentes desalinhados e escuros:

- Sim, estou viva. Diga ao povo que ainda não morri, se é isso que eles querem saber.

Tamí sentou na areia ao lado dela, sentindo seus pés afundarem na maciez. 

- Eles acham que a senhora nunca vai morrer... pois é uma bruxa. – observou ela.

- E Você acredita neles?

- Claro que não... Se você fosse uma bruxa não seria tão boa comigo.

Ela riu novamente:

- Não sou boa com você, menina. Você que é boa comigo. Se não fosse por você eu não teria nenhum humano para conversar. Teria somente meus bons e velhos amigos do mar.

Tamí ficou em silêncio. Já ouvira sobre os amigos do mar. 

- Eu gostaria de trazer meu filho para conhecê-la. Acho que já está na hora. 

- Infelizmente não vou conhecer seu filho, minha menina. O destino decidiu assim. E se você insistir sabe que algo ruim pode acontecer.

- Mas... Eu gostaria muito que ele a conhecesse, que fosse seu amigo tanto quanto eu sou. Ele é um menino adorável e...

- Eu gostaria de conhecê-lo também. – disse ela interrompendo Tamí. – Mas não vou. 

Tamí ficou em silêncio, observando ela não desviar os olhos do mar.

- Vê alguma coisa sobre mim? – perguntou.

- Sim, eu vejo você, Tamí... E um ódio muito grande.

- Eu sei. – falou ela confusa.

- Precisa tentar esquecer o que aconteceu no passado, Tamí. Precisa tirar este ódio do seu coração. Você já se vingou de tudo que ele lhe fez... Não há mais o que fazer. Não pode trazê-lo de volta para matá-lo outra vez. Você precisa deixar seu coração livre para o amor.

- Não consigo... Eu já tentei, mas não consigo nunca esquecer aquele dia. Acho que nunca vou deixar de odiar Todi e o que ele fez comigo.

- Pense que ele lhe deu o que você mais ama: seu filho.

- O espírito dele vaga por esta ilha. E só você pode libertá-lo.

- Penso o que meus pais achariam de tudo que aconteceu... Eles seriam capaz de perdoá-lo, sendo pessoas tão boas?

- O perdão não cabe aos seus pais... Este perdão só pode ser dado por você e por mais ninguém.

Tamí sentiu uma lágrima grossa correr pelo seu rosto:

- Não consigo... Nunca vou conseguir perdoá-lo.

- Então seu caminho continuará escuro e triste.

- Eu não acredito nestas coisas. – falou Tamí levantando. – Minha vida não depende de ninguém.

- O mar não mente.

- Toda esta escuridão no meu futuro é por conta do ódio que sinto? – perguntou Tamí.

- Talvez... Mas não é preciso muito conhecimento para saber que quem vive com tanto ódio não pode ser feliz.

- Eu preciso ir... Volto assim que puder. – disse ela mudando de assunto.

- Cuide-se, menina.

Tamí refez seu trajeto de volta para casa. A lua iluminava o mar escuro e também seu caminho. Ela gostava muito da Velha do Mar, mas não sabia se acreditava em suas previsões sobre o futuro. Fazia pouco tempo que ela começara a falar com Tamí sobre isso, no início impressionando-a, mas depois pensou que pudesse ser da idade avançada. Ela dizia que o destino das pessoas estava na água do mar... Que cada gota era um destino. E sempre ela dizia que tudo que o mar nos dá, ele toma de volta. Isso sim incomodava um pouco Tamí. Lembrava sempre da forma como Albert havia sido concebido e nascera... Tudo à beira do mar. Ele era sim um presente do mar para ela. E qualquer coisa que lhe falassem que mencionasse a perda do filho a deixava muito vulnerável. 

O sonho de Albert era ser pescador. Ela tirou isso da cabeça do menino. Embora soubesse que ele era só um menino de 7 anos, qualquer coisa que oferecesse risco à vida dele ela não aceitava. Já ouviu de Júnior que as minas também não eram tão seguras e ainda assim ela aceitava o menino lá. Mas para ela era diferente. As minas eram a vida dela e ela protegeria a vida do menino sempre que estivesse junto de si. Não via perigo nas minas, mas em qualquer coisa que o menino fizesse que fosse longe dela ou da ilha. Talvez com o tempo ele fosse brigar por seus sonhos, quando se tornasse um homem... Mas por enquanto era um menino amável que aceitava que tudo que a mãe fazia era para o bem dele. 

Passando próximo à casa de Júnior ela decidiu ir até lá pedir um livro emprestado. Na busca por um que lhe interessasse, lhe chamou a atenção um sobre minerais preciosos. Folheou rapidamente e viu algumas gravuras em forma de fotos.

- Olhe isso. – mostrou ela impressionada com a imagem.

- Diamante. – disse ele olhando.

- Poderíamos ter também diamantes aqui. Sabemos o quanto esta ilha tem minérios diferentes. O solo é extremamente rico.

Júnior deu de ombros:

- Se houvesse diamante aqui a Companhia já teria encontrado. Já reviraram tudo que podiam.

- Nunca foram para os lados das florestas.

- Certamente já foram e não encontraram nada. Não deixariam um espaço sequer sem ser explorado. 

- Lembro que há muitos anos atrás exploraram as florestas... Mas nada foi encontrado então logo a paisagem voltou ao normal e depois disto não me lembro de terem tentado novamente. – observou ela.

- Jamais deixariam qualquer tipo de riqueza para descobrirmos.

- Poderíamos procurar. – sugeriu ela.

- Certamente não há nada lá, Tamí. Eles têm todos os equipamentos e máquinas necessárias para encontrarem o que precisam. O que temos além de nossas ferramentas manuais? Além disso, nada que encontrarmos nessa terra será nosso, pois este lugar tem dono.

- Mas... não custaria tentar. – insistiu ela.

- Posso ir com você. Mas tenha certeza de que não encontraremos nada além de terra.

Ela olhou cheia de esperança para o livro que acabara de encontrar perdido na estante de Júnior.

- Você aprende tudo muito depressa. – observou ele. – Tenho orgulho de você, Tamí. Pode levar o livro e não tenha pressa de me devolver. Só não ponha ideias loucas na sua cabeça. – ele sorriu.

- Levarei com prazer. 

- Você vem amanhã para terminar sua lição e estudar mais um pouco?

- Vou tentar. Pouco tempo e muita coisa para fazer. Vou ver se consigo ler este livro. 

- Tudo bem. Quando quiser vir, estarei esperando, sabe disso.

- Nos vemos amanhã. – disse ela.

- Não sei se vou ficar na mesma mina amanhã. Ouvi rumores de que vou para as minas do sul.

- Que bom. Fico feliz por você. Soube que as minas lá estão bem recheadas.

- Peça para ir também.

- Sabe que não adiantaria de nada pedir...

Tamí voltou para casa. Quando chegou já era bastante tarde e somente Pai João estava acordado, colocando um pouco de lenha no fogo, com o lampião quase apagando. 

- Fiquei preocupado, minha filha. Onde esteve até agora?

- Fui ver a Velha do Mar, depois passei na casa de Júnior e acabei demorando mais do que previa.

- Não gostaria que você fosse visitar aquela bruxa. Sabe que não gostamos dela.

- Pai João... Ela não é uma bruxa. E além do mais eu gosto muito dela... É minha amiga há muitos anos.

- Não gosto quando sei que você está lá. 

Tamí riu. Até mesmo ele acreditava naquelas coisas.

Ela serviu um pouco de comida que tinha sobrado ainda quentinha sobre o fogão:

- Faz tempo que Albert adormeceu?

- Não muito. Esperou por você, mas estava muito cansado. Ele está ansioso com uma surpresa que disse que tem para você.

- Albert é um menino incrível. – disse ela sorrindo feliz e orgulhosa do filho.

- Sim... um menino de ouro. Seu pai ficaria orgulhoso de vocês dois.

- Pai João, minha mãe também garimpava nas minas?

- Sim... Alberina não fugia do trabalho nunca. Não importava o que era, sempre estava lá para ajudar, mesmo com o estudo que tinha. Seus pais foram muito importantes para este povo. Tinham muitas ideias incríveis de um futuro bom para todos nós. Infelizmente acabou não dando certo quando a ilha foi comprada. Então nossas ideias de vivermos nesta ilha longe de tudo, provendo nosso próprio sustento, longe da poluição e de todo consumismo acabou se tornando este pesadelo que vivemos hoje. Mas seus pais sempre serão lembrados pelos mais velhos por tudo que fizeram por nós.

- Como eu gostaria de ter conhecido eles.

- Sei que estão no paraíso hoje e sabem o quão boa menina você é, mesmo não indo à igreja. – repreendeu ele sorrindo e colocando a mão sobre a mão dela. – Lembro que sua mãe sempre dizia que seu futuro era a riqueza por ter nascido dentro de uma mina.

Tamí sorriu feliz. Gostava de ouvir histórias sobre seus queridos pais. 

- Deveria ter ido descansar, pai. Não precisava esperar por mim. Já está tarde.

- Precisava de um tempo para pensar, minha menina. Estou ficando velho e cansado. Espero ter forças para aguentar mais uns anos.

- Por que não para de trabalhar? Já conversamos sobre isso. Eu consigo garantir nosso sustento.

- Eu jamais deixaria você trabalhar sozinha para sustentar nossa casa, minha menina.

- Sou jovem e forte. Além do mais Albert gosta de ajudar.

- Eu me sentiria um inútil em casa o dia inteiro vendo você e seu filho se acabarem nas minas.

- Não pense assim, Pai João. Já fez tanto por mim e meu filho. Agora é minha hora de retribuir. 

- Não há o que retribuir, minha filha. Você é a luz de nossas vidas. 

Tamí deu um beijo na testa de João:

- Vou dormir e acho que o senhor deveria fazer o mesmo. Sabe que precisamos acordar bem cedo. E eu não vou desistir de convencê-lo a deixar as minas.

- Boa noite. – disse ele.

Tamí foi para o quarto e viu que o filho já dormia tranquilamente em sua cama. O cobriu até o pescoço, lhe deu um beijo carinhoso e deitou-se em sua cama. Estava muito cansada. 

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