Capítulo 2

- Tudo está ficando tão difícil, Júnior. Por vezes temo o que ainda está por vir para todos nós. – falou Tamí com voz cansada.

- Você falando isso, Tamí? É a mulher mais otimista e lutadora que conheço.

- Às vezes sinto como se tivesse uma barreira intransponível para nós...

- Lembre-se que a esperança é tão necessária para nossa vida com o sol para sobrevivência das plantas.

Ela sorriu:

- Às vezes acho que você deve ter um poeta em outra vida... Fala palavras bonitas... sempre tenho conforto em suas palavras quando preciso. Eu gostaria de ser como você.

Ela olhou para o rapaz magro, cabelos escuros encaracolados e desarrumados caindo sobre o pescoço e olhos castanhos claros. Júnior tinha um semblante sempre calmo, era muito tranquilo e doce. 

- Você é sim muito parecida comigo, Tamí. Só precisa ter um pouco mais de confiança em si mesma.

- Acho que precisamos mais união de nosso povo... precisamos fazer algo. Estas dificuldades não podem ser pra sempre.

- Sim, Tamí. A grandeza deste lugar não depende da extensão do nosso território, mas sim do caráter do nosso povo.

- Acredito tanto neste povo, Júnior... – falou ela com seriedade. – Mas precisamos lutar por condições mais dignas de vida. Precisamos uns dos outros, somos muitos... União é a base para conseguirmos sair desta situação que nos encontramos, no entanto esta palavra parece não fazer sentido para mais ninguém além do nós dois...

- Sim... parece um sonho distante unir todos por um ideal.

- A cada dia que passa vejo a situação piorando para todos... pobreza, fome...

- Sabemos que isto não pode ser resolvido de forma tão simples. Já faz muito tempo que você tenta abrir os olhos de todos mas ninguém dá importância.

- Todos estão cansados demais para ver o que realmente está acontecendo...

- Mamãe, vamos trabalhar?

Tamí olhou para o pequeno Albert todo preparado, com seu pequena picareta feita especialmente para ele na mão.

- Vamos lá, Albert. – disse ela.

Tamí foi acompanhando Júnior. Albert, como sempre, correndo na frente. 

- Tenho pena do meu filho... ainda é tão pequeno. Queria um futuro diferente para ele.

- Ele gosta do que faz. – disse Júnior com um sorriso olhando para o garoto correndo. – Esta é a diversão dele.

- Eu queria poder dar uma vida melhor pra ele. Ele merece.

- Todos aqui tem este sonho, não é mesmo? Mas Albert a acompanha porque gosta de fazer isso e de estar junto de você. Pense nas outras crianças que entram nas cavernas porque precisam sobreviver e não por gostarem de estar lá. 

- De onde você vem as crianças também trabalhavam cedo? – ela perguntou.

- Digamos que nada é muito diferente daqui, Tamí. As coisas mudam de um lugar para outro, é claro. Mas os sonhos das pessoas basicamente são sempre os mesmos: viver um vida boa, trabalhar e ganhar bem por isso e ter coisas.

- Você gostava de lá? Porque veio para a ilha?

Ele pensou antes de responder:

- Sinceramente já nem lembro tão bem como era viver longe desta ilha. Mas vim pelo mesmo motivo que algumas pessoas vem: tentar uma vida melhor. Gosto daqui. Não acho que a vida no continente, fora desta ilha, seja muito melhor não. Mas que tudo é muito diferente, sim, é... não há como negar. Todos lutam por dinheiro, aquisição e riquezas. E esquecem de serem felizes. Eu ainda acredito que estamos no mundo para sermos felizes acima de tudo. Amar e ser amados. 

- Eu acho que não me adaptaria ao continente... Me sinto pouco diante do mundo inteiro que há lá.

Ele riu:

- Nunca diga isso... pelo contrário. O continente é pouco para você, Tamí. Você está muito adiante do que eles pensam ou almejam. Nunca a entenderiam.

- Embora eu tenha muita vontade de conhecer o mundo fora desta ilha, tenho medo. Eu nasci aqui, dentro de uma mina... 

- Sim, você pertence a este lugar e este lugar está em você, querida Tamí. Você é parte destas minas, deste mar, deste céu azul que aparece todos os dias. Você não conseguiria viver em outro lugar sem ser aqui. O pó da mineração corre nas suas veias.

- Você já sentiu falta do continente?

- Não. Eu não trocaria este lugar por nenhum outro no mundo. – falou Júnior firmemente.

Tamí se impressionava pelo fato do amigo gostar daquele lugar mesmo não tendo nascido ali. Uma ilha onde tudo era tão difícil para todos... Ele não parecia pertencer àquele lugar pois era um homem inteligente, sabia um pouco sobre cada coisa que ela perguntasse. Lembrava que logo que ele chegara era motivo de chacota entre os demais garimpeiros. Achavam que ele não conseguiria se adaptar ao trabalho duro. Ele a procurou e pediu ajuda. No início ela tentou evitar aproximar-se dele, pelo motivo que ele era um homem. Mas aos poucos foi mudando sua opinião sobre ele e acabaram ficando grandes amigos. Ela confiava muito nele. Ele havia ensinado ela a ler e escrever. Todas as noites perdia seu preciso tempo ajudando-a. Tamí era uma aluna muito dedicada e uma das poucas pessoas da ilha que sabia ler e escrever. 

O sol, mesmo cedo, castigava. As roupas pesadas faziam o suor escorrer pelo corpo em grandes gotas salgadas. Perto das minas o pó doía um pouco os olhos. Ela já não enxergava seu filho. Ela gritou por ele, que logo parou para que ela e Júnior o alcançassem. Albert pegou Tamí pela mão, tentando fazer com que ela andasse mais rápido. Ela acabou olhando para Júnior sorrindo e deixando-o para trás, correndo com o menino. Pegou sua picareta, colocou o cinto de proteção no filho e em si e desceu logo atrás dele. Albert sempre estava junto dela... sabia muito sobre as minas. Logo ela começou a tocar a picareta com força na pedra. Demorou um pouco a encontrar um pouco de ouro. Aquela mina já estava quase escassa e provavelmente logo seria desativada, como tantas outras. Ela pensava muito enquanto trabalhava, mas não se desviava do objetivo, que era encontrar ouro. Albert ajudava muito, sabia o que fazia. Ela não queria vê-lo daquela forma, tão pequeno e trabalhando... Mas o garoto insistia e era uma forma de ficarem juntos o tempo todo. A única coisa que ela tinha para oferece ao filho era amor... E isso ela lhe dava muito. Albert era a razão de sua vida. Depois do que aconteceu ela só pensava em como queria morrer. Já não tinha mais nenhum sentido continuar viva. Mas logo soube que esperava um filho daquele homem que a fez querer morrer. Bem no início teve raiva de tudo, inclusive do próprio ser que gerava. Sempre se condenava quando pensava que um dia pôde sentir aquilo pelo seu próprio filho. A criança não tinha culpa do que o pai havia feito. Ela nem ousava pensar a palavra “pai” para Todi. Temia que o menino estava crescendo. Já estava com 7 anos e mais cedo ou mais tarde iria querer saber sobre seu progenitor. E ela ainda não sabia o que dizer ao menino no dia que isso acontecesse. Sentia tanto ódio, tanto rancor, tanta dor... Jamais esqueceria tudo que passou naquele dia. Jamais seria apagado de sua mente toda maldade que Todi lhe fez. Mas duas pessoas sabiam de tudo que ocorrera naquela fatídica tarde: Cátia, sua melhor amiga... e a Velha do Mar. E ela confiava que seu segredo estava bem guardado, embora atualmente tivesse menos contato com Cátia e se arrependesse um pouco de ter lhe contado. Nem mesmo Pai João e Mãe Esperança sabiam da verdade. Achavam que Albert era filho de alguém da ilha, que envolveu Tamí e não assumiu a criança. E ela não contaria nunca a verdade para seus velhos pais adotivos, pois não queria mais ódio e rancor na vida de ninguém, pois sabia o quanto este sentimento fazia mal. Tamí tinha medo de seus próprios sentimentos... tinha poucos bons dentro de si. Infelizmente a mágoa e a tristeza eram seus companheiros constantes. Ela não tinha espaço em seu coração para nada além do ódio. 

- Mamãe, me ajude aqui. – pediu Albert, tirando-a de seus pensamentos.

Ela percebeu que o filho tinha problemas com uma enorme pedra coberta com ouro e provavelmente muito dentro também. Ajudou o garoto e pôs a pedra em sua bolsa.

- Mamãe, pode ficar com o ouro que acabei de encontrar. – disse ele tentando entregar para ela.

- Não, meu filho, foi você que encontrou. É uma grande pedra... vão pagar bem. É sua.

Isso ela podia fazer pelo filho. Sabia que embora a pedra fosse grande não dariam muito dinheiro por ela, mas valia por ver a satisfação nos olhos de garoto. Ela ficava indignada com a exploração que acontecia ali e isso que lhe dava motivos para seguir sua vida: mudar aquela situação. Precisava mudar aquele perverso e sombrio futuro para o qual todos estavam indo. Queria poder dar um futuro diferente e melhor que o seu ao menino. Gostaria de um dia conhecer o dono da Companhia dos Conquistadores e lhe dizer o quanto de trabalho duro e árduo e vidas perdidas foram necessárias para lhe dar toda riqueza acumulada. Ele era um homem milionário graças à exploração dos garimpeiros da ilha. 

Tamí parou um pouco para descansar. Embora o suor escorresse quente sobre sua roupa, estava bem frio lá dentro. O menino continuava a cavar na parede e apesar de tudo com o semblante muito feliz. Como aquele metal amarelo podia fazer tanta gente viver para ele, na busca de encontrá-lo? Quantas pessoas perderam a vida tentando encontrá-lo ou até mesmo roubá-lo?

Os fiscais das minas eram antigos mineradores, comprados pelo sistema da Companhia dos Conquistadores. Poucos vinham de fora. Era ex-garimpeiros gananciosos que agora se achavam melhores que todos. Moram longe da vila, perto do porto onde o ouro era escoado. Tinham confortos como luz elétrica, comida a preço mais baixo etc. Eram responsáveis por fiscalizar tudo desde a entrada dos garimpeiros na mina até a saída. Usavam uma espécie de pistola plástica na saída que era passada a alguns metros do corpo dos trabalhadores para conferir se não levavam pedras escondidas. Era um sistema muito bem feito pois qualquer pedra presa ao corpo bipava muito alto e a pessoa era obrigada a devolver o que tinha, embora de nada adiantasse ter ouro pois não havia a quem vender. O metal preciso clandestino era o motivo de medo de todos... além de não ter validade poderia render “castigos” que não queriam conhecer.

Em pouco tempo todos os garimpeiros já estavam ali, por todos os lados. Muito barulho e o espaço ficando menor. Albert foi para perto de Júnior e ficou com o amigo. 

- Faz tempo que chegou? – perguntou Cátia algo para que a amiga pudesse ouvi-la melhor.

- Sim, acordei cedo. Precisamos muito do dinheiro. – falou Tamí seguindo seu trabalho.

Enquanto tentavam conversar ambas marretavam a parede com força. Desistiram porque não conseguiam escutar uma à outra e teriam que partilhar a conversa com todos presentes. O tempo passou rapidamente e todos pararam para tomar água e comer alguma coisa. 

Cátia observou a sacola cheia da amiga e falou:

- Não conheço nenhuma garimpeira melhor que você. 

- Não seja boba. Sabe que você é melhor que eu.

- Você nasceu numa mina de ouro... vai que seu destino realmente seja de muita riqueza, como todos dizem.

- Bem que podia ser assim... – Tamí deu de ombros. Não acreditava naquilo.

- Você tem tempo!

- Acho que nem tanto... olhe onde estamos. – Tamí olhou à sua volta, o lugar escuro e úmido, seguro por pedaços de madeira e ferro. – Basta estarmos aqui para o risco ser grande. Tudo pode desmoronar a qualquer momento.

- Está pensando nos seus pais? – perguntou Cátia.

- Não... Na verdade nem pensei deles esta vez. Pensei em todos nós mesmo.

Ela levantou-se, guardou suas coisas e voltou ao trabalho. Não poderia perder tempo. A tarde logo passou e ela convidou Albert para irem embora. Embora ele não parecesse cansado e sim feliz, não disse não. Ele sempre aceitava as coisas que a mãe falava. Nunca contestava. Era um menino de ouro. Por conviver muito com adultos e pouco com crianças era bem maduro para a idade. Era muito criativo em suas brincadeiras e inteligente e fazia questão de estar sempre próximo da família. Tamí havia iniciado um movimento na ilha para trazerem de volta a professora e a antiga sala de aula, mas não houve muita adesão. Queria muito que o filho estudasse, mas os demais garimpeiros precisavam de suas crianças trabalhando na mina ou ajudando em casa então não faziam muita questão da sala de estudos. Tamí começou a alfabetizar o menino em casa, mas não era sempre que ele estava disposto. Gostava de brincar, correr pela praia, descobrir novos animais na areia e o no mar e ela não poderia contrariá-lo pois também não vivia longe do mar. Quanto à questão da professora ela ainda não havia desistido. Continuaria tentando convencer os demais a aderirem à sua luta.

Tamí e Albert entregaram suas pedras, passaram pela “pistola de roubo”, que ela costumava chamar e receberam por seu trabalho. Qualquer garimpeiro poderia trocar suas pedras por dinheiro ou “vales”. Caso a opção fosse dinheiro, valia 30 por cento menos que o vale, que podia ser trocado nas mercearias e lojas e também aceito para pagamento de contas. Naquele dia, diferente dos demais, Albert preferiu dinheiro que vale. Ela não achou um bom negócio, até porque a pedra do menino valia muito, mas não interferiu na escolha dele. 

No caminho ele tentou entregar o dinheiro para a mãe, mas ela insistiu que era dele e que deveria comprar alguma coisa que quisesse. 

- Vou comprar um presente para você, mamãe. – disse ele feliz.

- Querido, quero mesmo muito que compre algo para você. Faço questão. Me deixaria mais feliz que qualquer coisa que me desse.

Quando chegaram em casa Mãe Esperança já os esperava com a tina cheia com água morna para o banho. Tamí sentia-se tão em dívida com seus velhos pais adotivos. Haviam feito tudo por ela. Não sabia se seus verdadeiros pais teriam sido tão amorosos e zelosos como eles. Nunca lhe falou nada, principalmente amor. E agora tratavam Albert com o mesmo carinho que deram à ela por toda sua vida. A criaram desde bebê, depois da morte de seus verdadeiros pais. Nunca tiveram filhos... Só tinham Tamí e Albert.

Tamí deu banho no filho e depois entrou na tina morna e com sabão. Fechou os olhos e respirou fundo. Aquilo era o que ela precisava depois de um longo dia de trabalho. Não tinham água encanada e utilizavam a vertente que havia nos fundos da casa para o que precisavam. Também não tinham luz elétrica, pois era um custo muito alto e estavam acostumados a viverem daquela forma. Na vila dos garimpeiros todos levavam aquela vida. Tinham casas simples mas boas, em grandes terrenos que precisavam pagar mensalmente à Companhia. Tinha melhores condições os que eram promovidos, como os fiscais das minas. Acabam morando perto do porto, onde havia confortos como luz elétrica, agua encanada e esgoto. Mas estes benefícios tinham seu preço: ser olhos e ouvidos da Companhia e muitas vezes ir contra sua própria gente. Mas pelo visto eram todos facilmente comprados por estes benefícios, visto que nunca um “promovido” voltou à antiga vida de garimpeiro. Não entendiam que também eram explorados, só que de forma diferente. 

Quando ela saiu da água, secou-se. Olhou—se no pequeno e velho espelho quebrado atrás da porta enquanto desembaraçava os fios de cabelos envoltos pela velha toalha. Era uma mulher muito alta e magra, por isso se destacava entre as demais. Cabelos claros, amarelados, longos até a altura da cintura e sempre embaraçados pelo vento. Possuía sardas no nariz e um pouco perto das bochechas. A pelo clara do corpo contrastava com os braços e o rosto queimado do sol. Tinha lábios grossos e dentes brancos bem alinhados. Os olhos, verdes esmeralda, eram herança de sua linda mãe. Sua beleza chamava atenção dos homens e mulheres da ilha... Mas poucos homens tentavam se aproximar dela, pois havia marcado seu território como bem queria: longe deles. Colocou um vestido branco de linho, bastante surrado e nada nos pés. Quando ia para praia não via outra maneira de sentir sua liberdade e felicidade a não ser pela areia sobre seus pés. Iria ver a Velha do Mar. Sempre que ia até lá, preferia não dizer aos pais, pois sabia que eles não aprovavam suas visitas, embora ela tinha quase certeza de que eles fingiam não saber que ela ia até lá quase todos os dias.

- Mãe, vou dar uma volta pela praia. – disse ela.

- Ver o mar? – perguntou Esperança.

- Sim...

- Você tem o corpo de uma mulher, mas continua sendo a menina de sempre. – disse Esperança sorrindo enquanto organizava o jantar.

- Eu sou uma mulher. – contestou ela.

- Sim... Embora nunca tenha deixado de ser a menina.

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