Capítulo 4 – Reencontro

Aos quarenta anos de idade, vinte deles enlouquecido e com aparência de um homem de sessenta, ainda tinha as forças necessárias para prosseguir na maldita jornada como pedinte de esmolas e assim seria sua caminhada rumo a um futuro incerto e cheio de sofrimentos.

Não tinha ilusões de que a felicidade voltaria a lhe sorrir, talvez a sorte já tivesse lhe sorrido o suficiente e esgotado todas as oportunidades.  Afinal, não é rotineiro aparecerem senhoras boazinhas e milionárias, querendo adotar pobretões, principalmente tratando-se de um velho rabugento.

Naquela manhã seguiu pelo trajeto costumeiro e atravessava a principal avenida do centro comercial, quando se deparou com vários carros luxuosos que estacionaram em frente a um dos mais requintados hotéis. Frequentado por grandes personalidades, intuitivamente decidiu parar e observar quem seria a celebridade a chegar no local.

A mulher era de expressiva aparência. Usava um longo vestido vermelho com uma abertura do lado da perna direita, pisando firme sobre saltos altos e finos, desce do veículo e dirigiu-se rumo a entrada do hotel. Seguida de perto por seguranças enormes que mais pareciam quatro paredes de concreto em volta dela.

Garantindo-lhe total proteção.  A distância entre ela e seu observador era de apenas uns quatro metros, e seus olhos mesmo turvos pela grande quantidade de álcool ingerido. Minutos antes e da confusão mental que continuamente lhe embaralhava a razão, foi possível identificá-la, o passar do tempo não mudou em nada a senhora da borracha.

 Que continuava deslumbrante.  Seus sessenta e poucos anos pareciam não existir, aparentava os mesmos trinta e tantos da época em que o adotou. A beleza da poderosa mulher permaneceu intacta, eram os milagres que o dinheiro podia fazer. Ela desaparece no elevador que iria conduzi-la ao seu destino, talvez para a cobertura ou ao cassino, reunir-se-ia com outros empresários em alguma das várias suítes existentes ou simplesmente buscaria descansar de seus inúmeros compromissos.

 Ele, do lado de fora e sem a menor chance de entrar no lugar para tentar uma maior aproximação, ainda podia lembrar da rotina dela, mesmo de forma embaçada. Seu coração acelerou ao vê-la. Aquela sensação não poderia ser confundida com uma atitude normal de quem naturalmente rever uma pessoa amiga ou um parente distante.

Os loucos jamais agiriam de forma natural. O que acontecia ali era puro instinto, como um animal de estimação que depois de abandonado por vários meses ou anos rever seu dono e é capaz de reconhecê-lo. Luís Gustavo reconheceu Naomi, apesar de sua insanidade. Desde aquele instante permaneceu rodeando o prédio, intentando revê-la. Não podia se aproximar demais, o ambiente era frequentado por pessoas pertencentes a elite social, a guarnição era permanente.

 Mas nada o impedia de se manter pelas imediações, observando, e assim fazia. Foram quarenta e oito horas de espera, ela realmente veio ali para descansar. Certamente na cobertura, onde ficava a piscina. Tomando seu whisky predileto, acompanhado com algumas pedras de gelo. Como o perturbado mendigo podia entender tanto de suas preferências e do lugar que ela escolheu para relaxar?

Bem, no passado ele também teve o prazer de acompanhá-la numa dessas andanças pelo cinco estrelas. E tomou banho nas águas tratadas da mesma piscina onde naquele momento a milionária se esfriava. E apesar de ter ficado para trás, perdendo o direito e a oportunidade de continuar com tais privilégios ainda podia ter flash com boas lembranças.

Restou-lhe na fragilizada memória um pouco de tudo que viveu, talvez tenha sido isso que despertou nele o instinto de se aproximar e ver mais de perto aquela mulher que de certa forma lhe trouxe lembranças embaraçosas, confusas, mas acompanhadas de saudades.  Ela entrou no carro e seguiu seu caminho sem sequer perceber que bem próximo de onde passou tanto tempo relaxando esteve aquele que um dia amou. Como a um filho deu um lar e planejou dar toda a sua fortuna.

Sua vida, desde que desistiu de lutar pela cura do futuro herdeiro, não foi mais a mesma. Enganou a todos que a admiravam e os críticos com uma história fantasiosa. Tal atitude nunca mais permitiu paz à sua consciência.  A pergunta que não queria se calar na pesada consciência da herdeira dos Guimarães Velasco era o porquê de ter desistido de Luís Gustavo. Todas as noites ela ficava com insônia, teve até pesadelos sem encontrar respostas para essa indagação que lhe trazia fortes inquietações.

Era uma mulher de muitas posses, a medicina e a ciência evoluía instantaneamente.  Sem dúvida, com um pouco mais de esforço e determinação, teria encontrado uma maneira de tratar seu filho. Qualquer outra mãe teria demonstrado mais compaixão ao invés de tê-lo abandonado à própria sorte em um asilo para doentes mentais. Numa conversa com Lúcia, após confessar o terrível ato cometido a sua melhor amiga, eram várias as interrogações:

— E depois que o hospital de tratamento psiquiátrico foi fechado, qual destino teve o pobre coitado? 

— Sinceramente, minha amiga, não sei ao certo

— Mas você sequer foi à sua procura, não lhe pesou a consciência de tê-lo abandonado numa cidade sem parentes, perdido meio a desconhecidos?

     — Devo te confessar que me doeu muito tomar tal decisão, mas, sendo uma mulher com tamanho prestígio social, como poderia continuar convivendo às voltas com um demente mental na minha casa? Foi a única saída encontrada dizer a todos que Luís Gustavo estava morto

     — Naomi, minha amiga, você enganou a todos nós com essa bárbara mentira, até nos fez ir a um falso funeral, eu mesmo derramei muitas lágrimas, pois o amava como se fosse um verdadeiro sobrinho. Isso não se faz, é uma crueldade com todos aqueles que te amam e respeitam!

  — Sei disso, por essa razão estou aqui te revelando meu erro e te pedindo que me perdoe

  — Desculpe, somos amigas desde nossa infância, tenho profundo carinho por você, mas sinto que jamais serei capaz de esquecer o que fez contra mim e aquele pobre rapaz, abandonando-o como se fosse um cão sem dono e forjando sua morte, enquanto o coitado era mantido preso dentro de uma ala psiquiátrica, tratado com as piores torturas, como bem sabemos

  — Mas o que eu poderia fazer a respeito, minha amiga, tornar público que meu herdeiro perdeu completamente o equilíbrio mental e seria num louco que estaria apostando o destino de toda minha fortuna?

  — Não, mostrar um pouco mais de sensibilidade e investir todos os recursos disponíveis na busca pela cura e cumprir com seu dever de mãe, protegendo-o no momento em que ele mais precisou de sua compaixão! Mas ao invés disso o que fez? Preferiu defender o bom nome dos Velasco e lançar o pobre diabo num calabouço, escondendo da sociedade que sua escolha havia sido um fiasco. Que o menino colhido na feira do Ver-O-Peso foi uma semente que realmente não vingou, como muitos opositores afirmaram que seria?

  — Sim, é verdade. Admito que essa foi a principal razão que me levou a tomar tal decisão. Quando adotei Luís fui deveras criticada por pessoas que diziam ter sido um erro adotar um menino de rua para dar a ele o importante nome der minha família, mas fui pedante e insistir em dizer que tinha feito a coisa certa e que mais tarde iria provar isso a todos quanto ousavam me contradizer. E a aprovação de meu menino nas três mais concorridas faculdades deste Estado seria o momento de passar no rosto deles essa grande vitória, mas por infelicidade ele foi acometido de tamanho mal e a única coisa que me restou foi a vergonha e humilhação. Tentei encontrar cura, fomos até o exterior, mas tudo em vão. Então não tive escolha, forjei sua morte

   —  Mas que maldade, preferiu sacrificá-lo a ter que ouvir os escárnios de seus opositores?

   — Sim, amiga, fui extremamente covarde

   — Sinto pena de você, Naomi, e ao mesmo tempo vergonha de suas insanas atitudes. Não sei ao certo quem dos dois é o mais mentalmente perturbado, se ele ou você

   — Pensei que pudesse contar com sua compreensão

   — Como posso compreender tamanha maldade, ciente de que meu sobrinho foi jogado na sarjeta e hoje pode estar morto ou perambulando feito um João ninguém sabe-se lá por onde? Não, eu não posso perdoar nem compreender tamanha falta de amor ao seu semelhante!

 Daquele dia em diante a amizade entre as duas mulheres chegou ao fim e Lúcia nunca mais quis qualquer tipo de contato com Naomi. Durante os encontros nas festas e reuniões sociais evitava qualquer aproximação. E fez questão de revelar a todas as outras pessoas do mesmo nível o que a insensível empresária tinha feita com o próprio filho, que adotou tempos atrás.  Fez isso afim de manter seu prestígio diante das luzes sociais que iluminam os mais poderosos, e com isso fez cair sobre ela o menosprezo por parte dos que se sensibilizaram com tamanha perversidade.

 Uma jornalista, pertencente a um importante grupo da mídia local, decidiu investigar mais a fundo a história do jovem herdeiro que foi deixado ao relento pela então empresária. Tinha como principal objetivo publicar em detalhes um livro com o verdadeiro destino do rapaz pobre que passou de herdeiro dos senhores da borracha. Que se tornou um indigente, impiedosamente abandonado pelas ruas da cidade de Belém do Pará ao perder completamente o juízo.

Isso, sem dúvida, não apenas seria o maior furo jornalístico até então visto, como também a mais emocionante obra literária já publicada. Naomi, ciente que Lúcia não havia guardado seu segredo ficou indignada e apreensiva com o escândalo que certamente aconteceria. Não demorou muito para surgirem os comentários nas revistas e colunas de fofocas locais, bem como no âmbito social da qual fazia parte. 

Grupos de pessoas voltadas a defender os direitos humanitários passaram a fazer críticas indiretamente à empresária. E já havia rumores de que os mesmos estariam planejando reunir uma multidão, numa passeata pelo centro da cidade. Para protestar o ato desumano praticado pela milionária contra Luís Gustavo. 

A revolta popular pelas denúncias feitas contra a proprietária aumenta diariamente. Principalmente de maior parte das grandes empresas do Estado, que iam de simples lojas a bancos, postos de gasolina, clinicas, transportadoras. E várias outras, fez com que ela se tornasse reclusa dentro de sua própria casa. Ciente de que todo aquele repentino repúdio foi originado a partir da indiscrição de Lúcia, em quem teria confiado seu maior segredo, irou-se grandemente e tomou mais uma de suas decisões impensadas.

 Para tentar impedir que seu tradicional nome e o de sua família caísse em completa desgraça. Convocou um de seus mais fiéis funcionários para que cumprisse uma imediata missão, dando-lhe ordens restritas:

   — Lembre-se, seu Matias, aquela infeliz deve pagar um alto preço pelo que fez a mim e ao valoroso nome de minha família. Tome o máximo cuidado para que tudo ocorra como planejado, afim de que não ocorram erros

  — Pode deixar, senhora, aquela infeliz nunca mais irá dar com a língua nos dentes outra vez

  — Muito bem, então vá e execute com perfeição o plano que traçamos. E não esqueça, seu Matias, sem falhas!

  — Pode deixar!

As ordens da patroa era para que o pistoleiro cometesse um crime por encomenda. Lúcia, por ter denunciado publicamente a antiga amiga deveria ser morta. Mas de forma que o nome da assassina não fosse envolvido no acontecido. Matias era um matador profissional.

Foi contratado para executar esse tipo de serviço e haviam rumores de quem tinha medo de se manifestar por causa de represálias.  Que ele já teria assassinado muitos desafetos da patroa. Se assim fosse, então aquele seria apenas mais entre tantos outros. Lúcia era uma médica conceituada e proprietária de uma clínica de estética localizada numa área privilegiada da capital. Naquele final de tarde ela pretende retornar para casa e dirige seu automóvel por uma das várias avenidas.

 Todas com o trânsito totalmente engarrafado.  Passavam das vinte horas e ela permanecia encurralada entre dezenas de outros veículos sem conseguir encontrar um meio de adiantar-se. Matias e mais dois de seus subordinados a aguardavam no cruzamento a dois quilômetros dali.

 Tinham conhecimento do modelo e placa do carro, além da localização exata de sua residência. Assim que alcançou as proximidades do luxuoso condomínio onde residia, foi seguida de perto pelos criminosos.  Eles a abordaram antes mesmo que passasse pelo portão eletrônico, seis tiros certeiros de pistola foram disparados que culminou na morte da médica.

Os marginais deixaram o local após confirmarem o óbito. A polícia passou a investigar as causas do crime, com características de acerto de contas.  O atentado que parecia ter sido perfeito chamou a atenção da população que de imediato passou a desconfiar da grande coincidência entre as denúncias. Que foram feitas pela vítima e seu assassinato.

 Os noticiários comentavam sobre o episódio e os mais ousados lançavam desconfiança sobre a empresária Naomi Velasco. Como sendo autora do crime hediondo. Pessoas de todas as idades desfilaram naquela manhã de sábado pelas ruas. Seguiram pelas avenidas da capital paraense reivindicando que fosse feita justiça e os culpados punidos. Enquanto a multidão exigia que as autoridades tomassem as devidas providencias o imundo mendigo caminhava entre eles sem que se dessem conta de se tratar do mesmo homem abandonado décadas atrás pela milionária, depois de enlouquecer.

Ele era a razão pela qual Lúcia havia sido assassinada a mando de Naomi. Pois a mesma teria descoberto que sua morte não passou de uma farsa forjada pela assassina, com a finalidade de ocultar seus erros. Inconformada com as atitudes da amiga tomadas em relação ao filho, quando este se tornou um inválido.

 Devido à loucura que lhe destruí parte da saúde mental. Ela foi quem denunciou o descaso e abandono do pobre jovem. Naquela época já um homem de quarenta anos e manchou a boa reputação que aquela mulher gozava na sociedade paraense, tida como um exemplo de amor e misericórdia pelos amis carentes. Pois Naomi, para mascarar sua verdadeira personalidade desalmada e impiedosa, incapaz de pensar no bem maior, buscando apenas para si mesma os frutos de suas ações, era a maior doadora de fundos para orfanatos.

 E entidades de caridades. Passando para a sociedade a ideia de se tratar de uma pessoa totalmente preocupada com o semelhante.  Com as denúncias feitas toda essa farsa caiu por terra e acendeu a ira da farsante que ordenou a morte covarde da medica. Como qualquer resíduo de lixo exposto no chão e que era pisoteado de forma indiferente pelos manifestantes, assim mesmo era o pobre diabo, ninguém percebia sua presença.

E ele, igualmente, não entendia do porquê de tanta arruaça. As reivindicações feitas pela multidão não significavam nada para o esfomeado. Que só queria encontrar algo com o que se alimentar. Na verdade, o que sua mentalidade distorcida podia entender era que eles estavam atrapalhando o ir e vir das pessoas, ou seja, se tornou impossível pedir esmolas durante a demorada passeata.

 Teria que se virar de outra maneira, como pudesse. Com as cobranças da massa popular para que as autoridades dessem uma resposta positivo sobre o crime cometido dias atrás, não houve outro jeito além de intimar a milionária a depor sobre tais acusações. Claro que neste país os poderosos nunca cometem crimes e são sempre inocentes.

 Acompanhada de meia dúzia dos melhores advogados ela compareceu por apenas meia hora na delegacia. E seus defensores trocaram algumas palavras com o delegado que a dispensou sem muitos pormenores. Sob o protesto de uma tumultuada multidão ela sai protegida por vários seguranças.

Em seguida retorna para a mansão onde residia, completamente livre de todas as acusações. Mais uma vez a impunidade impediu que a justiça fosse de fato feita contra os culpados. Os familiares da médica assassinada se indignaram com a maneira infame como as autoridades trataram o caso. E buscaram recursos de todos os lados para condenar a criminosa, porém, sem provas concretas e testemunhas que dessem maior respaldo às denúncias feitas, foi tudo uma tremenda perda de tempo. A milionária vencia mais uma vez.

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