3 Ponto de partida...

Depois disso, passamos uma semana inteira juntos, resultando numa agradável e romântica noite de virada do ano, contando até com uma ceia improvisada feita dos ingredientes que conseguimos comprar encima da hora, mas no fim, foi maravilhoso da mesma forma.

Porém, como nem tudo são flores, em alguns dias, ele já estava indo embora por causa de um telefonema urgente do trabalho, deixando-me melancólica e solitária novamente. Sem reclamações ou indagações, não fiz nada além de me despedir tristemente, ainda mais porque não podia sequer o acompanhar até a estação.

Foi nesse momento que me senti ainda mais uma amante, e na verdade, estava aproveitando o máximo possível enquanto ganhava coragem para questionar-lhe a respeito da nossa condição de casal. Eu temia que ele fosse casado, e receber uma resposta positiva me assustava mais do que tudo, sem contar que não sabia nada sobre ele, nem mesmo onde trabalhava ou endereço.

            E naquele dia, quase às 14h da tarde, ainda estava deitada em minha cama de solteiro, sentindo o cheiro suave do perfume que ele havia deixado nos lençóis, solitária e sem ânimo nenhum em procurar alguma coisa para fazer, mesmo sabendo que deveria aproveitar as curtas férias para estudar os componentes que ainda estava tendo dificuldades, ou mesmo trabalhar em minha coletânea de contos curtos.

Suspirei cansada e fitei o teto de gesso branco, saindo dos meus devaneios apenas quando ouvi meu celular vibrando sobre o criado-mudo, era um som estridentes de ligação e pela insistência parecia urgente. Estiquei o braço, e o peguei segundos antes dele cair por causa da forte vibração, notando que era uma ligação da única amiga que fiz desde a mudança.

Diga-me, por favor, que você não está mais deitada! Mari exclamou em sua voz estridente e naturalmente alta, quase fazendo um escândalo do outro lado da linha. – Abra a porta, estou congelando aqui do lado de fora.

Fiquei surpresa, não tendo muito tempo para raciocinar quando a ligação foi encerrada abruptamente, e logo, ouvi o som de batidas na porta, fazendo com que me levantasse da cama para ir atender. O caminho pelo corredor entre o meu quarto e a sala, eu segui xingando-a de doida somente em imagina-la do lado de fora naquele frio de -2°C abaixo de zero.

“Essa criatura nunca ouviu falar em hipotermia, não?” Questionei para mim mesma, ainda descrente, e um tanto contrariada, vesti um casaco pesado por cima do pijama quentinho, abrindo a porta logo em seguida.

Fitei pelo olho mágico enquanto coçava um pé com o outro e confirmei que ela realmente estava parada na rua, segurando um guarda-chuva que não parecia forte o suficiente para conter a chuva de neve que caia grudando em seu pulôver cor de rosa.

– Eu não sei se te chamo de corajosa ou doida... – Murmurei soltando um longo bocejo de sono enquanto abria a porta para que ela entrasse, dando-lhe passagem enquanto observava a grande diferença de altura que tínhamos.

– Amada, precisamos cuidar da vida! Mari tornou a exclamar com seu costumeiro sorriso enorme e irrompeu pela porta quase saltitando. – Se eu te deixar em paz, você vira um zumbizinho, escondidinha no escuro.

– Eu nem fico no escuro... – Murmurei rindo baixo, mas concordei, pois, não planejava sair de casa até, no mínimo, minhas compras da semana acabarem. – Aliás, você não veio só para me acordar né, o que está planejando?

Parando para pensar, aquela história de que introvertidos não fazem amizade, e sim, são “adotados” pela energia contagiante de outros indivíduos extrovertidos, no fim das contas, é verdade, e nós duas éramos a prova viva disso.

– Na verdade, eu quero experimentar uma receita da internet... – Ela murmurou de repente sorrindo um tanto tímida, algo nem um pouco normal para sua personalidade alegre. – Diga que me ajuda, sim?

– E eu tenho escolha? Respondi com outra pergunta enquanto arqueava uma sobrancelha, não tão animada quanto ela, mas disposta a ajuda-la afinal, não tinha mais nada para fazer mesmo. – O que está você ainda planejando?

– Obrigada! Ela exclamou, abrindo um sorriso enorme e fazendo um coraçãozinho com os dedos, assim como as fãs de kpop. – Eu vim te buscar na verdade.

Concordei sem pensar muito novamente, pedi apenas que me esperasse tomar um banho e em poucos minutos, estava pronta para sairmos.

No caminho, passamos em um hipermercado para comprar os ingredientes da lista, peguei um pedaço do papel, sorrindo ao ver os desenhos que por algum motivo, ela fazia nos cantinhos com caneta colorida enquanto escrevia, parecia ter se tornado um hábito.

Mari tinha apenas uma irmã de quem não se desgrudava na infância e aparentemente, sempre faziam coisas como aquelas aos domingos, porém, devido à situação complexa com a família, a aproximação esfriou um pouco, o que era muito triste, e então eu acabei tomando o lugar dela temporariamente.

Era um infeliz ponto que tínhamos em comum.

Quando chegamos ao apartamento em que ela morava com o namorado, ele não estava, havia saído para se divertir um pouco com os amigos e justamente por isso ela estava sozinha. A fitei procurando algum resquício de que não estivesse feliz com a situação, e fiquei satisfeita ao perceber que ela apenas estava dando espaço a ele, era bem madura.

Colocamos as sacolas sobre o grande balcão de mármore e enquanto ela buscava o notebook, comecei a lavar os ingredientes, reservando-os cuidadosamente sobre a taboa de cortar e quando estava prestes a procurar uma faca, ouvi seus passos se aproximando. Me virei para a observar e notei seu sorriso enorme, parecia uma criança prestes a fazer uma travessura.

– Achei que seu namorado gato estaria com você! Mari comentou apoiando o notebook sobre a mesa de vidro e voltou a tela em minha direção.

– Na verdade, não tenho tanta certeza se ele é realmente meu namorado... – Murmurei sentindo-me melancólica novamente e soltei um longo suspiro enquanto lia a receita que para a minha surpresa, era uma torta salgada.

– Filho de uma put*! Mari xingou arregalando os olhos, parecia não acreditar no que ouvia. – Como ele pôde fazer algo tão desonesto com você?

– São apenas suposições minhas... – Expliquei com tristeza, começando a cortar todos os ingredientes em uma tigela grande de vidro transparente. – Ele aparece de repente, às vezes ficamos tempos sem conversar... eu realmente não sei.

– O que você está pensando em fazer? Mari indagou, um semblante amuado formando-se em seu rosto. – Nos conhecemos a pouco tempo, não devo me intrometer em sua vida, mas ser amante é muito doloroso, digo por experiência própria.

– Quero descobrir a verdade! Exclamei firme, não aceitaria ser uma amante de modo algum. – Se ele realmente for casado, então nem temos um relacionamento para terminar.

Mari concordou, mesmo que seu rosto apresentasse certa tristeza, provavelmente pelo meu relato, então decidi mudar de assunto ou seriamos duas a chorar.

– Cadê a sardinha? Perguntei mostrando a tigela com os temperos já cortados, e planejando partir para a massa.

– A que droga, comprei a lata de sardinha errada! Ela reclamou quando pegou as duas latas de alumínio de dentro das sacolas do mercado. – Não percebi que estão sem lacre fácil, e não tenho o equipamento.

– Ora, não se preocupe com isso... – Falei procurando por uma faca de corte pequena, e quando a encontrei, comecei a empurrá-la onde ficava a junção entre as extremidades. – Basta abrir a moda antiga.

Mal terminei a frase, e já estava com um grande corte na mão, resmunguei um palavrão baixo e enfiei a mão na água tentando parar o sangramento que estranhamente parecia interminável.

– Oh, Meu Deus! Mari gritou ao ver o pequeno drama que acontecia em sua pia, começou a andar de um lado para o outro e quando pareceu recobrar os sentidos, correu para o banheiro no corredor, retornando com uma caixa de primeiros socorros alguns instantes depois.

– Esse é o seu jeito de mudar de assunto? Ela questionou em tom de brincadeira, parecia querer me distrair do sangramento, mas seu rosto estava pálido como se fosse ela a machucada.

– Diga se não é dramático? Questionei rindo baixo, mas chiei ao senti-la apertar minha mão cortada. – Melhor do que me preocupar com isso, não?

Senti meus olhos marejando. Por mais que não quisesse admitir, já estava perdidamente apaixonada por ele, mesmo estando a tão pouco tempo juntos.

– Eu queria perguntar, mas tenho medo da resposta... – Murmurei fungando baixinho, esfreguei meus olhos com a mão que já estava com um curativo e tive que me segurar muito para não irromper em lágrimas.

– É muito complicado... – Mari sussurrou me abraçando e acariciando meus cabelos, não parecia se importar com meu drama, ou com a mancha que estava fazendo em sua camiseta cinza. – Sempre tenho essa sensação de angustia quando tenho que contar a um namorado que sou trans.

– Colocando assim, o meu drama nem se compara... – Resmunguei secando as lágrimas novamente, e suspirei sentindo meu corpo tremer um pouco.

– Não quis minimizar seu problema! Mari se apressou em explicar, tentando erguer meu rosto para que nos olhássemos nos olhos.

– Não se preocupe, eu vou ficar bem! Exclamei voltando meus olhos ao curativo e sorri de canto, tentando me animar. – Você fez um bom trabalho, hein.

Ela concordou, secando minhas lágrimas com as pontas dos indicadores, e sorriu gentil enquanto me ajudava a arrumar a postura, erguendo meu queixo

 – Se machuca te machuca é porque não te ama, lembra? Mari questionou de repente, lembrando-se de algo que nem eu mesma lembrava mais. – Foi o que você me disse quando cheguei na sua casa chorando porque meu ex-namorado não queria me apresentar para a família dele.

Concordei, balançando a cabeça positivamente, não dava para esquecer uma cena tão dolorosa como aquela, e ainda sentia meu coração se apertar com a memória.

Eu sempre tive consciência do sofrimento que as pessoas que compartilhavam da homoafetividade passavam, mas somente tive dimensão do quanto era complexo quando conversamos sobre aquele assunto, ao ver a grande angustia em seus olhos unicamente por ser ela mesma. E me senti mal, não sabia sequer o que dizer para ajudá-la, apenas limitando-me a acariciar suas costas enquanto a ouvia chorar.

– Obrigada... – Murmurei abraçando-a com força, em seguida, ergui a cabeça enquanto secava as lágrimas novamente e a fitei com seriedade. – Tem razão, chorar só vai me deixar desidratada.

Ambas rimos, estava se tornando um hábito fazer piada com coisas sérias para descontrair, e por hora, estava funcionando, então deixei assim.

Quando finalmente terminamos a torta, a noite caia, olhei pela janela, notando a enorme lua cheia encoberta por nuvens sombrias e pensei no quanto era um cenário perfeito para uma história de lobisomens. Ri dos meus próprios pensamentos, apoiando a mão no queixo, mas senti vontade de escrever um conto sobre aquele tema.

Peguei a agenda que sempre carregava na bolsa, para o caso de histórias abruptas que visualizasse no dia a dia, e comecei a anotar os pequenos parágrafos que discorriam com facilidade, eram inicialmente versos livres, sem tanta profundidade, mas eu sabia que poderia mudar a estrutura depois de uma boa leitura em outro momento.

Levei o bocal da caneta à boca e me questionei como deveria começar uma história como aquela, rabiscando na parte sem linhas, duas épocas em que poderia estar ocorrendo os fatos, imaginando que, caso escolhesse o passado, teria que optar pelas antigas lendas, mas ainda havia a possibilidade de escolher o presente, e trazer uma perspectiva daquela figura mítica na mesma sociedade em que vivo.

            Fitei minha amiga saltitando animada enquanto retirava a torta do forno e senti vontade de coloca-la como uma das personagens, rindo baixo ao questionar-me o que ela acharia quando descobrisse, e isso me deixou ainda mais interessada em continuar.

Eu queria um conto que tivesse um final em aberto, e como não planejava estendê-lo muito, escolhi poucos personagens, decidindo me incluir já que ela também estaria envolvida. Esbocei rapidamente as características de alguns personagens e enquanto imaginava alguém que poderia se defender, a figura de Dylan me veio à mente.

“Se ele realmente for casado, deixarei o lobisomem o comer...” Pensei comigo mesma e sorri, sentindo-me a maldade em pessoa.

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