Crime de ódio

Aquele não parecia meu irmão, a alegria de Martin havia sumido. Aqueles tubos intravenosos davam a ele um aspecto frágil. Martin não era frágil. Lembro de como ele lutou para conquistar a aceitação da família. Mas nunca escondeu quem era. Meu pai condenava mais as noites de balada dele, do que o fato dele ser gay, mas no início foi muito difícil para ele.

Olhei para os hematomas que tomavam todo o seu rosto e tronco. Seu rosto havia perdido os traços delicados que herdara de mamãe. Estava inchado e com muitas marcas. Seus braços estavam da mesma maneira. Eu pude notar no seu tórax alguns pontos, próximo ao peito e no braço direito.

-Meu irmão. O que fizeram com você? 

Martin estava sob o efeito de sedativos e não me responderia. Uma grande revolta se apoderou de mim.

Como era possível, que alguém fizesse isso a um ser humano apenas por ele ser quem é? Como é possível, que muitos crimes de ódio como este fiquem impune? É esse o país no qual eu nasci? Viver na Europa durante quase toda a minha vida, me trouxeram uma visão diferente. Não sou capaz de entender que o ódio seja maior que o sentimento humano. Essas pessoas olham para gente como Martin e pensa: -É viado. Mas não pensa: é um ser humano, tem direitos e deveres como qualquer outro. Meu irmão tão amado fora agredido por ser quem é. E Will, pobre Will, morto aos dezenove anos por um motivo tão frívolo. Ele tinha toda a vida pela frente e perdeu assim de maneira tão trágica e fútil. 

De repente, senti que tinha que ver Will. Toquei o rosto de Martin por um instante, ele estava frio. Coloquei a mão na boca e sai do quarto. Uma torrente de lágrimas rolavam por meu rosto. Minha blusa de cetim rosa já estava molhada. Passei pela minha família, que tentou me conter, mas eu apenas maneei a cabeça negativamente.

O hospital parecia um labirinto. Eu não o conhecia bem, mas não demorei a encontrar o necrotério. Dei o nome de Will e a mocinha me levou até onde ele estava.

Will estava deitado sobre uma mesa de granito. Ele estava nu, exceto por um lençol que lhe cobria as partes íntimas. Ao seu lado segurando a sua mão estava seu pai. Sua irmã o olhava chorosa abraçada ao pai.

-Oi - Disse me aproximando.

Mirela correu até mim em silêncio e me abraçou. 

-Meu irmão Belinda...

-Eu sei, é muito triste.

O pai de Will olhou para mim e voltou seus olhos novamente para o filho. Ele nunca aceitara que Will gostasse de garotos. Ele tolerava por ser seu filho, mas eu podia imaginar o que ele sentia agora, que "a escolha" de Will, como ele costumava entitular a questão do homossexualismo, tinha tirado sua vida.

Eu não acreditava que era a homossexualidade que havia tirado a vida dele, ou quase tirado a de Martin. Eu acreditava que a ignorância das pessoas havia feito isso. Me aproximei mais e toquei no ombro daquele homem.

-Eu deveria tê - lo amado mais.

-O senhor amou.

-Não, não amei. Se eu não tivesse discutido, ele não teria saído e os dois estariam bem agora.

-Não temos como adivinhar o que vai acontecer.

-Você tem razão. Mas ainda assim me sinto culpado. Sou igual ou pior do que essas pessoas. Ele era meu filho.

-Não sofra assim.

-Ele sofreu, porque eu queria que ele fosse o que não era. Eu vou me retirar agora, não me sinto bem.

-Eu vou ficar um pouco mais.

O homem saiu andando de cabeça baixa, Mirela o acompanhou.

Fiquei a sós com o corpo de Will. 

Ele era loiro e tinha os olhos azul cobalto. Seu corpo era bem definido. Ele era muito bonito. Martin fizera uma ótima escolha. Martin... Ah, Martin. Como sofreria ao descobrir que Will estava morto.

Olhei para o rosto desfigurado dele. Haviam vários cortes com pontos mal feitos. 

Em seu tórax haviam muitos hematomas. Sua cabeça tinha uma ondulação, como se os ossos tivessem sido sugados para dentro. Circulei a cama e li o prontuário. 

Dizia que havia sido provável morte por hemorragia interna e por traumatismo craniano.

-Meu Deus! Meus olhos se encheram de lágrimas e eu senti mãos me abraçarem. Me virei assustada e vi Cristian.

-O que faz aqui? Ficou maluco?

-Não podia te deixar sozinha nesse momento tão difícil. 

-Obrigada.

Haviam apenas alguns dias que eu conhecera Cristian, mas nosso amor era tão sólido, que pareciam anos luz de convivência. Ele ficou ali comigo por alguns minutos, fitando o rosto desfigurado de Will. Quando resolvi que já era demais e voltei a sala de espera. Pedi a Cristian que fosse comigo.

-Você tem certeza?

-Tenho sim.

Quando chegamos a sala de espera Estevão veio na minha direção. 

-O que esse cara faz aqui?

-Eu o chamei.

-Você é minha noiva!

-Não, você pode até ser meu noivo, mas eu nunca fui sua noiva.

-Estamos prometidos e vamos nos casar!

-Estevão, éramos amigos de infância, não podemos casar.

-Você não entende...

-Não, realmente eu não entendo. Meu irmão está em uma cama, Will no necrotério e tudo o que você consegue pensar é nesse casamento estúpido. Cris está aqui para me apoiar, coisa que você não fez até agora!

Meu pai, que não havia me visto até então, ao ouvir a alteração em minha voz foi ao meu encontro.

-Cristian Montesano, o que faz aqui?

-Vim prestar meu apoio...

-A Belinda suponho?

-A toda a família. 

-Não é bem vindo aqui.

-Ouça senhor Castro, eu não sou a minha família, seus problemas são com eles e não comigo.

-São com todos.

Me abracei ao tronco de Cristian de lado e ele correspondeu. Meu pai olhou com olhar desdenhoso. Comecei a chorar e lágrimas pesadas conseguiram inundar meu rosto.

-Vocês só se importam com vocês! 

Gritei e sai correndo. Entrei no quarto de Martin, que era uma Uti privativa.

Olhei meu irmão inerte naquela cama. Pensei em Estevão que só pensava nesse casamento, em meu pai que valorizava mais seu dinheiro do que a vida e chorei. Chorei por Martin, por Will, por mim. Chorei por todos os homossexuais que sofreram preconceito e que ainda vão sofrer. Chorei pelos que morreram por esse motivo é chorei pela humanidade que deixava de amar ao próximo. Após o que pareceram horas, meu pai entrou no quarto.

-Você precisa ir para casa.

Eu não respondi. Me limitei a fitar o rosto de Martin. 

-Olha Bela, não me leve a mal, só que sua amizade com esse rapaz não me agrada.

-Ele não é meu amigo...

-Você tem um noivo.

- Você viu Estevão se importar com Martin em algum momento?

-Belinda...

-Não, ele apenas se importou com ele mesmo, com esse circo que vocês armaram. Cristian se importa. Veio aqui mesmo não sendo bem vindo, chorou comigo a morte de Will que ele nem conhecia e se manteve calado enquanto era insultado por Estevão e o senhor. Sabe por quê? 

-Não. 

-Em respeito a nossa dor. Mas vocês só se importam com futilidades.

-Belinda, filha...

-Chega papai! Eu vou para casa.

Sai do quarto e fui direto para o estacionamento. Estevão veio falar comigo, mas eu o ignorei. Precisava de um táxi. 

O pai de Belinda me disse que era melhor que eu fosse embora. Ele não me queria com sua filha. Não sei se por conta disso ou por amor, mas não consegui deixá-la. Sai do hospital para agurdá-la no estacionamento. 

Belinda vinha distraída mexendo em sua bolsa. Tirou o celular e discou um número. Estava bem próxima de mim quando sua ligação foi atendida. 

-Alô, boa tarde. Gostaria de um táxi aqui no hospital municipal.

Belinda ergueu os olhos e me viu. Eu sorri e mostrei a chave do meu BMW. 

-Senhorita. Não precisarei mais do táxi... Sim... Obrigada. 

Belinda desligou e veio a mim.

-Pensei que meu pai o houvesse escorraçado.

-Ah! E ele o fez, mas não pude ir - Falou fingindo indignação.

-E por que não foi?

- Porque precisava levar uma bela jovem para casa.

-Sempre galante.

-São seus olhos.

Abri a porta do carro e Belinda entrou. Ela ficou calada por Boa parte do percurso. Apenas quando já chegávamos ela falou.

-Acha que conseguiremos ficar juntos?

-Mesmo que tenhamos que fugir.

Belinda sorriu e eu parei o carro em frente a imponente mansão de Castro.

O portão era de ferro fundido e carregava no alto uma coroa majestosa, que se dividia quando o portão era aberto. Onde as iniciais do sobrenome da família formavam um triângulo. O portao abriu e Belinda saiu do carro, não sem antes me dar um beijo. Ela correu para dentro e o portão se fechou.

Quando entrei em casa Uli me recepcionou.

-Oh menina. Como foi acontecer isso ao pobre Martin? 

-A sociedade é desumana Uli. 

-Sim, é. Mas eu não sou, e por isso vou preparar - lhe um banho.

Após o banho Uli me trouxe um lanche que eu nem toquei. Deitei em minha cama e o sono me dominou. 

Foi um sono agitado e eu acordei aos berros com um pesadelo. Não me lembrava coerentemente do sonho, mas sabia que Cris estava nele. 

Me levantei e fui na direção do banheiro. Precisava me acalmar. Toda essa situação estava me estressando demais. 

Meu celular apitou e vi que era uma mensagem de Cristian. 

Foi tão difícil vê -lá tão desolada. Doía ver meu amigo naquela cama quase morto, mas doía ainda mais, ver o sofrimento de Belinda. Quando fui àquela festa e Martin me apresentou a ela, não julgava que hoje, poucos dias depois de conhecê-la, estaria assim, apaixonado. Sentia como se a distância dela, fosse uma ferida. Sentia como se estar longe dela me tirasse pedaços e moesse meu coração. Não havia dúvidas. Belinda era a mulher da minha vida, a única que eu amara, naquele momento e para sempre. Sem ela a vida não teria sabor. Teria gosto de fel sem a doce Belinda. Por que ela tinha que ser uma Castro?Por quê? 

Quando voltei do hospital comentei o ocorrido com meus pais.

- Sinto muito pelos garotos, mas quero você longe dessa família! Me entendeu Cristian?- Foi o que disse meu pai.

-Não, eu não entendi e não me afastarei nem de Martin e nem de Belinda. 

-Belinda? O que tem você é essa menina?

-Eu gosto dela e ela de mim.

-Cristian, essa garota não é como as que você está acostumado a ter em sua cama. Não me arrume mais problemas.

-É quem disse que eu a quero em minha cama?

-É o que você faz com todas, não? 

-Ela é diferente...

-Diferente? Está apaixonado por ela? - Perguntou meu pai incrédulo. 

-Sim, estou.

-Mesmo que eu acreditasse, dentre todas as garotas dessa cidade, tinha que se apaixonar justamente pela filha do meu maior inimigo?

-Disse bem, seu inimigo e não meu! - Berrei e sai da mesa antes dele proferir qualquer resposta, ou aquela discussão não teria fim.

Sai cantando pneu, eu sabia onde iria.

Sai do banheiro após um longo tempo. Tomei outro banho, mas não para me limpar e sim para tirar a angústia que estava grudada em mim. Vesti minha camisola, não queria sair do quarto naquele dia. Me sentei na penteadeira e passei a escovar os cabelos.

Pulei o muro da mansão de Castro e esgueirei-me até a sacada da janela dela. Subi num velho carvalho e pulei para dentro do quarto. Belinda não estava, mas a cama em desordem denunciava que saíra há pouco.

Ouvi o barulho do chuveiro, o que denunciou seu paradeiro. Em alguns minutos ela saiu, quando ela tirou a toalha de seu corpo, me virei de costas, mesmo tentado a olhar.

Ouvi o barulho da cadeira da penteadeira e soube que ela já estava vestida.

Me virei e ela escovava os cabelos. Fiquei ali observando por um tempo. Ela estacou e começou a fitar sua imagem no espelho.


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