Capítulo 1

Nova mensagem:

Lili: E aí, amiga?

Nina: E aí? Nada, né? Foi muita pretensão minha achar que ele iria me responder...

Lili: Que desânimo é esse? 2022 mal começou e você já está afundada nesse pessimismo? É claro que ele vai te responder! Além do mais, é propaganda gratuita. Quem perde uma chance dessa?

Nina: Eu não sei não... O Brasil pode não estar nos planos dele. Mesmo que esteja, por que ele iria dar bola para uma fã querendo traduzir e postar as músicas dele? Ele deve ter gente para isso.

Lili: Mesmo assim! Não tem nenhuma tradução! Você seria a primeira a fazer. Com certeza ele vai te notar e responder!

Eu gostaria muito disso...

Suspiro forte enquanto seguro o celular entre as mãos. Sou fã de uma banda que tem um baita sucesso no exterior, porém, no meu país, não é conhecida. Queria que eles fizessem sucesso aqui também, fazendo shows aos quais eu gostaria muito de ir. Sigo todas as redes sociais da banda e, ao que parece, é o vocalista quem toma conta. Por sinal, ele é um pedaço de mau caminho. Seu porte é atlético, nem muito musculoso nem muito magro, apenas na medida certa. É sexy, com um sorriso avassalador e uma voz que domina multidões. Tomei coragem um dia desses para lhe enviar uma mensagem me oferecendo para traduzir suas músicas para o português. Talvez assim a HelioX ficasse mais conhecida no Brasil e pudesse incluir meu país no seu roteiro de turnê. Seria um sonho. No entanto, faz alguns dias que ele visualizou e ainda não respondeu.

Nina: O Jhonny deve receber milhares de mensagens por dia de tudo que é tipo de fã. 

Lili: Você não é uma fã comum, Nina. Tenha fé no seu taco. Seu inglês é impecável, suas traduções são maravilhosas. Mandou para ele o link do que você fez?

Nina: Sim, coloquei duas músicas e montei o perfil dele com foto para ele ver. 

Lili: Escreveu como eu te falei? Pelo amor de Deus! Não ficou babando no cara, né?

Nina: Claro que não! Porém, disse que o sorriso dele é matador e que a voz dele é transcendente. Sei que ele deve receber mensagens bem mais cabeludas! Provavelmente até nudes!

Lili: Menos mal. Deve ter um monte de fãs dizendo que querem ser mães dos filhos dele!

Eu rio comigo mesma nesse momento. Não deve ser fácil para alguém famoso lidar com o assédio. Ainda mais ele que é casado, tem uma filha e parece por a família acima de tudo. Os integrantes da HelioX têm a reputação de serem bons rapazes, nunca se envolveram em qualquer tipo de escândalo, o que aumenta sua aceitação pelo público. Suas músicas, na vibe do rock e compostas pelo Jhonny, sempre exaltam o amor, a vida, a luta contra a tristeza.

Nina: A filha dele é linda. Criança mais bonita que ela, só o meu Matheus.

Lili: Mãe babona! Por falar no seu garoto, o que o seu marido achou de você fazer essas traduções?

Nina: Não comentei com o Cadu ainda. Ele anda super chateado porque o baterista furou com o ensaio. De novo.

Lili: Que merda! Bom, espero que ele resolva. Já é a terceira banda?

Nina: Quarta.

Lili: Nossa… Bem, quando o Jhonny te responder, e ele vai, seu trabalho vai ficar conhecido. Você pode até arrumar um emprego como tradutora. Encare como um portfólio, um currículo.

Nina: É... Possibilidades... 

Eu parei de trabalhar algum tempo após meu filho nascer, dez anos atrás. Ele tinha distúrbio de sono por causa de uma bronquite, eu passava diversas noites em claro por conta disso. Eu não rendia no meu trabalho como secretária bilíngue e, quando chegava em casa, ainda havia a rotina com meu filho e a casa. Meu marido é fisioterapeuta, trabalha vinculado a diversos planos, porém o que lhe rende mais mesmo é a clientela particular. Ganhava bem mais do que eu e, por isso, disse que eu poderia ficar em casa, me dedicar ao nosso filho e não me cansar tanto pela jornada dupla de trabalho sem boas noites de sono. Foi um total erro da minha parte. 

Nina: Eu me acomodei demais. Como eu queria voltar a trabalhar, sabe? Porém, estou há tanto tempo fora do mercado que não consigo uma oportunidade. Fora que já não sou mais nenhuma garotinha, né?

Lili: Ah, meu bem, você dá de dez a zero em muita garotinha por aí, viu? Mas, eu concordo que você se acomodou. Você é tão inteligente, fala dois idiomas, além de ter um português perfeito, é bonita. Não sei porque o Cadu não te dá mais valor...

Nina: Não é culpa dele. Eu me larguei totalmente. Talvez essas traduções me inspirem um pouco. 

Lili: Não o defenda! Você sempre passa a mão na cabeça dele e, por isso, ele acha que pode fazer você de gato e sapato! Você não trabalha fora, mas dá um duro danado dentro de casa. Se ele acha pouco, deixe que ele faça a própria comida, lave a própria roupa, vá ao mercado, farmácia, escola... Se arrependimento matasse… Eu jamais teria aceitado ser sua madrinha de casamento se soubesse que você iria se podar desse jeito. Desculpe pela franqueza, no entanto você se menospreza demais.

Nesse ponto, ela tem razão. Sinto-me tão cansada e presa. Cadu nunca está satisfeito com nada do que eu faça, seja por ele ou por nosso filho. Meu marido não é maldoso, porém, com o passar dos anos, tornou-se extremamente controlador. 

Ah... Meu Matheus... Acho que ele é a única razão pela qual eu ainda respiro. Há dias em que eu não quero sequer me levantar. Contudo, quando vejo aquele rostinho de anjo na minha frente, eu tiro forças não sei de onde. Acho que isso é o vínculo materno, o amor incondicional, de que tanto ouvi falar. Depois de segurá-lo pela primeira vez em meus braços, consegui entender perfeitamente a frase “Há coisas que só quem é mãe consegue entender.” Você engole um monte de sapos para proteger sua cria. Chega a ser irracional.

Nina: Você viu as novas fotos do Jhonny?

Lili: Ok, vou aceitar a mudança de assunto... Ainda não vi.

Eu agradeço por ela não insistir. Lili é muito espirituosa, não leva desaforo para casa e um homem dominador como Cadu... Bem, o santo dela não cruza com o dele. Envio algumas fotos do vocalista que peguei no perfil social da HelioX durante um show em Berlim.

Lili: Oh, meu Deus! Que gato! E que cabelo é esse? É mais bonito que o meu!

Nina: Sua tonta! XD Esse cabelão preto contrastando com aqueles olhos claros realmente dá um toque especial no estilo roqueiro dele. Fora a sua presença de palco, até lembra um felino espreitando a presa enquanto caminha. Parece que vai pular nos fãs e devorá-los.

Lili: Quer ser devorada por ele, amiga?

Nina: Lili! Sou casada!

Lili: Tá, mas sonhar não arranca pedaço, né? Aquela garotinha é a filha dele?

Nina: Sim, ele sempre a leva nos shows. Nesse, em particular, ele a colocou no palco e cantou para ela. Não é fofo?

Lili: Muito! Ah, eu com um homem desses... A mulher dele que é feliz! Dizem que homem que faz filho bonito também deve fazer gostoso na cama… É por isso que você não larga o Cadu?

Nina: Puta merda, Lili! Você não tem jeito!

Lili: XD! Foi mal, amiga. Não deu para resistir!

Nina: Sei... Cadu chegou, tenho que ir. 

Lili: É, vai lá atender seu amo e senhor. Se ele permitir, tente tirar uma folga para a gente papear ao vivo. A Jô também está com saudades.

Eu reviro os olhos nas órbitas e grunho aborrecida.

Nina: Vou tentar.

Desligo meu celular, coloco-o no bolso do meu short e vou para a sala recepcionar meu marido.

ㅡ Oi, amor.

ㅡ Oi… ㅡ Cadu me dá um beijo suave nos lábios e olha ao redor. ㅡ Onde está Matheus?

Ele é alto, tem que se curvar sempre para me beijar. Não é meu modelo de beleza masculina, porém não deixo de achá-lo bonito. Seus cabelos curtos castanhos, assim como os olhos, revelam uma pequena calvície. Sua desvantagem é ser tão branco quanto um copo de leite.

ㅡ Brincando com o filho da Maria. Daqui a pouco ele volta.

Ele bufa e resmunga mais para si mesmo.

ㅡ Não gosto dele solto por aí.

ㅡ Ele não está solto por aí. Está na casa aqui do lado, da Maria, que conhecemos há onze anos. Nossos filhos nasceram no mesmo dia e hospital, se lembra?

ㅡ Mesmo assim. Seja responsável. O que tem para o jantar?

Resolvo não me prolongar no assunto e vou para a cozinha. Enquanto esquento as panelas, parte da conversa com minha amiga retorna à minha mente.

Sim, eu me anulo demais...

ㅡ Cadu, o que acha de eu voltar a trabalhar?

Ele para de lavar as mãos na pia e me encara confuso.

ㅡ Por quê? Falta algo para você? 

ㅡ Não é isso. Contudo, um dinheiro extra no orçamento sempre é bom. Muitas mulheres trabalham e tomam conta de seus lares também.

ㅡ Concordo, porém você não tem mais jeito para isso. Como vai lidar com um trabalho, a casa e o nosso filho? Você não conseguiu essa proeza antes.

Eu suspiro em desagrado, desanimada.

ㅡ Quando Matheus era pequeno foi uma situação completamente diferente. Ele vivia doente e precisava de muita atenção. Ele agora...

ㅡ Agora ele é um garoto entrando na puberdade e precisa de orientação mais do que nunca. Fico fora o dia todo, viajo muito, você tem que tomar conta dele direito.

ㅡ Eu tomo conta do meu filho!

ㅡ Correção: a vizinha toma conta, como hoje.

Seu tom irritantemente irônico me tira do sério.

ㅡ Pelo amor de Deus! Ele precisa sair para brincar com os amigos. É uma criança, não um passarinho para ficar na gaiola! Isso não me torna menos responsável!

Ele pega um prato no armário da cozinha sobre a pia e começa a se servir das panelas sobre o fogão.

ㅡ Carol, de onde saiu essa ideia de voltar a trabalhar? Daquela sua amiga louca? A Lili? Ou foi a sonsa da Jô? 

Odeio quando ele se refere a elas dessa forma... Também não gosto quando me chama de Carol. Abandonei esse apelido há muitos anos. Eu o enterrei com o Roberto. Ninguém mais me chama assim. Contudo, ele insiste, talvez porque saiba como me desestabiliza e magoa. 

ㅡ Pare de falar delas desse jeito! E já te pedi mil vezes para não me tratar por Carol!

ㅡ Seu nome é Carolina, não é? Carol faz mais sentido do que Nina.  Eu já te chamava assim na escola. Se quer mudar o apelido por causa daquele namoradinho seu que morreu anos atrás, não é minha culpa. E Lili e Jô são más influências, sim. Você só arruma péssimas companhias.

Ele se senta à mesa de jantar e fecho meus olhos. Imagens daquele dia voltam a me invadir. Lembro das lágrimas do Flávio, do nosso desespero, do enterro do Roberto. Foi o fim de muitas coisas, inclusive da banda, o que não achei ruim no final. Eu não conseguia mais cantar ou tocar de qualquer forma. Parei as aulas de teclado, canto, tudo. 

Retirei a música da minha vida por muito tempo, como quem tenta arrancar a pele do corpo. Sim, a analogia é válida, pois acho que nunca fui tão apaixonada por algo como era pela música. Tirá-la da minha vida doía pra cassete. No entanto, continuar com ela era sufocante. 

A ironia foi ter me casado com Cadu, que, apesar de trabalhar na área médica hoje em dia, sempre se manteve em alguma banda. Nossas noites muitas vezes acabavam em algum karaokê. Cadu tem uma voz tão forte quanto a de Jhonny, no entanto, o que não me agrada é o seu vibrato (1) e sua postura ao cantar. Seu sorriso é convencido, daquele que sabe o quanto é bom, e ele é, porém acho irritante isso nele. Humildade nunca esteve em seu vocabulário de qualquer forma. Ele me pedia para cantar com ele, como eu costumava fazer com Roberto. Não era a mesma coisa para mim. A música estava morta aqui dentro.

Até conhecer a HelioX. Jhonny, com sua voz potente e grave, capaz de drives (2) arrepiantes e perfeitos, me encantou e despertou algo que estava adormecido dentro de mim por muito tempo. Não foi sua beleza física, embora eu não a negue. Foi o sentimento que ele transmite em cada nota. Ele canta com a alma. Uma alma que emana gentileza e uma enorme paixão pelo que faz.

Abro meus olhos e encaro meu marido super interessado em seu prato apenas.

ㅡ É impossível conversar numa boa com você…

Ele bate com o punho na mesa e eu me assusto um momento. Cadu nunca foi violento, sei que jamais me bateria, porém, em seus rompantes, ele já quebrou portas e maçanetas por batê-las com força. Odeia ser contrariado.

ㅡ Mas que inferno! Chego em casa cansado do trabalho e minha mulher fica me assediando com ideias malucas.  Você não tem condições ou conhecimento para trabalhar, ponha isso na sua cabeça. Vai acabar relaxando das suas tarefas. ㅡ Ele ri desdenhosamente. ㅡ Além do mais, quem iria querer te contratar, Carol? Você já passou da idade…

Procuro ignorar sua provocação maldosa e me ater à razão.

ㅡ Acho que posso conseguir um emprego como tradutora ou revisora e trabalhar de casa! Isso não dependeria de aparência ou idade.

ㅡ Ah, é bem verdade que você é fluente em inglês e espanhol e seu português é invejavelmente perfeito, porém você não tem experiência de mercado para isso. 

ㅡ Porra, Cadu, será que eu poderia ter um pouco de apoio? É pedir demais? 

ㅡ Seria pedir demais me deixar comer em paz?

Sacudo os braços para o alto e desisto dessa conversa unilateral, onde ele sempre não me escuta, não me apoia e decreta sua sentença. 

Estou cansada disso...

Saio da cozinha e sigo para a varanda. Observo os móveis de madeira da decoração, o caminho de pedras que atravessa o quintal e liga o portão à entrada da varanda, as dezenas de plantas pelo pequeno muro e piso. É o meu passatempo preferido. Ajuda-me a aliviar o estresse. Eu me aproximo de um jarro de rosas chá, minhas flores favoritas. Acaricio um pequeno botão e o cheiro. Mesmo fechado, seu perfume já é vibrante. Suspiro forte.

Vai passar… Tem que passar...

Respiro profundamente e berro na direção da casa da vizinha.

ㅡ Matheus! Seu pai já chegou!

Não demora muito meu garoto surge correndo porta afora da casa de seu amigo. Ele é muito mais parecido comigo, pois herdou grande parte dos meus traços indígenas. Cabelos pretos e lisos, olhos amendoados e negros, pele morena, exatamente como eu. Matheus até gosta de deixar o cabelo grande porque tem orgulho de ficar sacudindo aquelas madeixas que já passam dos ombros.

Quando ele crescer mais um pouco, as garotas vão cair sobre ele como moscas sobre um pão-de-mel...

Dou-me conta de que meu filho já tem dez anos e que talvez seja hora de conversar certas coisas com ele. Só não sei como iniciar algo tão...

Tão o quê, dona Nina? Não tem mistério. As crianças hoje em dia são precoces. É melhor prevenir.

Ele me encara com um lindo sorriso. Sorrisos são preciosos, acho que por isso reparo tanto neles. Eles podem refletir muita coisa de seus donos.

O sorriso do Jhonny é genuíno e puro.

Balanço minha cabeça de um lado para o outro para tirar esse homem perturbador dos meus pensamentos. Sinto meu filho abraçar-me pela cintura. Eu não sou baixa, tenho 1,70m. Contudo, Matheus está a poucos centímetros de me alcançar. Será um gigante certamente. Eu beijo o topo de sua cabeça enquanto ainda posso e bagunço seus cabelos.

ㅡ Poxa, mãe! Não faça isso!

Ele se solta e arruma meticulosamente seus fios negros. Eu rio.

ㅡ Deixe de frescura! Vá tomar um banho para jantar. O que você e o Júnior ficaram fazendo? Está todo suado.

ㅡ Ah, tem um concurso de dança na escola. Estou ajudando ele com a coreografia. 

ㅡ Vai ser coreógrafo agora?

ㅡ Ah... Não mesmo. Mas, é divertido derrubar o Júnior.

Ele ri alto e eu apoio as mãos na cintura.

ㅡ Olhe só, que malandrinho você está se tornando. Já para o banho! 

Aponto um braço para o interior da casa e ele corre para dentro, cumprimenta o pai que ainda está comendo e sobe as escadas para o segundo andar. Permaneço na varanda, observando o movimento da rua. Moramos na zona Norte do Rio de Janeiro, em um condomínio de casas. É bem tranquilo. Escuto o som de uma nova mensagem no meu celular.

Deve ser a Lili de novo ou a Jô. São as únicas amigas com quem ainda mantenho contato e estou em falta com elas. Tenho que arrumar um tempo para visitá-las.

Levo um segundo ou dois para me lembrar de que o aparelho está no bolso do meu short, vivo deixando-o em qualquer lugar. Meu coração palpita e levo uma mão à boca para disfarçar um grunhido de excitação quando vejo de quem é a mensagem.

HelioX: Howdy, Nina! I agree. Thank you very much! Muito obrigado! Jhonny.

Acho que todo gringo sabe pelo menos agradecer em português, não é mesmo? Mas, o que importa? Ele concordou!

Dou pequenos saltos de alegria pela varanda, olhando incredulamente para a mensagem na tela. Confiro o remetente umas quatro vezes, leio e releio umas dez vezes. 

É mesmo o Jhonny! E ele me chamou de Nina! 

Paro de saracotear e me dou conta de algo incomum.

ㅡ Espere um pouco, por que não me chamou de Carol?

ㅡ Quem não te chamou de Carol? ㅡ Levo um susto tão grande, com a voz grossa de Cadu atrás de mim, que deixo meu celular cair no chão. ㅡ Porra, Carol! Celulares não nascem em árvores! 

ㅡ Porra digo eu! Foi você quem surgiu do nada!

ㅡ Do nada? ㅡ Ele pega meu celular do chão e o analisa. ㅡ Ainda bem que a capa anti-choque o protegeu. 

Ele começa a desenhar o código para desbloquear a tela e eu o tomo de suas mãos imediatamente. É aquele negócio de casal. Sei as senhas dele, ele sabe as minhas. No entanto, eu nunca fuxiquei suas coisas, muito menos ele as minhas. Sempre respeitamos o espaço um do outro. Pelo menos, era o que eu achava.

ㅡ Que bom que não quebrou.

ㅡ Não mude de assunto. Por que não quer que eu veja o que te deixou tão aérea para não perceber a presença do seu marido, mesmo sabendo que eu estava em casa?

ㅡ Porque tem a ver com trabalho e você não se mostrou nem um pouco interessado quando tentei falar com você sobre o assunto.

Ele cruza os braços diante do peito com um ar sério.

ㅡ Você arrumou um emprego?

Mordo minha boca apreensiva. Não posso simplesmente jogar sobre ele que estou em contato com uma banda internacional para traduzir suas músicas gratuitamente. Ainda mais quando ele mesmo tenta por em prática sua própria banda. Ele ficaria magoado. Então, pela primeira vez eu minto para o homem com quem divido a minha vida há vinte anos e me amaldiçoo internamente por isso.

ㅡ Mais ou menos. Vou ajudar uma ONG. Eles precisam de ajuda para traduzir e corrigir uns textos.

ㅡ Ou seja: vai trabalhar de graça. Francamente, você só vai se enrolar por nada.

ㅡ Pelo menos é um começo! Talvez, eles possam me indicar para o mercado de trabalho depois.

Seus braços se soltam e suas mãos repousam em sua cintura. Ele deixa um longo suspiro escapar para o alto. Depois me puxa para perto e me abraça.

ㅡ Está bem. Faça como quiser, mas não deixe isso afetar nossa rotina.

ㅡ Obrigada!

Não gosto de mentiras, na verdade, as odeio. Porém, se ele soubesse que vou fazer traduções gratuitas para um astro do rock com certeza não concordaria. Sei como ele se sente frustrado por não estar em um palco. Esse serviço extra será como um hobby para mim, do qual ele não precisa tomar parte. Quando chegar a hora, vou achar uma forma de contar a ele. 

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ㅡ Vou fazer um bolo de cenoura! ㅡ Digo, enquanto começo a raspar as verduras na pia.

ㅡ Hum… Amo seu bolo de cenoura! 

Matheus fica esfregando a barriga com uma das mãos e passando a língua nos lábios, observando-me em minha tarefa. 

ㅡ Pode pegar a farinha de trigo para mim, meu bem?

ㅡ Claro! ㅡ Ele vai até o armário pegar o ingrediente. Depois, se adianta para outro armário pegar o copo medidor e um vasilhame para por a farinha. ㅡ Três xícaras?

ㅡ Isso mesmo! Já pode se casar, pois já sabe fazer um bolo de cenoura!

Ele revira os olhos enquanto coloca os itens sobre a mesa para medir a farinha.

ㅡ Mãe…

Viro-me para ele e o encaro.

ㅡ Estava apenas brincando. Porém, não pretende se casar? 

Quando penso que ele vai me dizer que quer ficar solteiro para aproveitar a vida ou algo do gênero, ele me surpreende.

ㅡ Não é isso. Quero a esposa perfeita, porém ela não está disponível.

ㅡ Como assim?

Oh, céus! Ele já está apaixonado por alguma garotinha assim tão jovem?

ㅡ A esposa perfeita para mim tem que ser igual a senhora, que faz tudo pela gente. Mas, eu acho que Deus jogou a sua forma fora. 

Eu fico sem palavras. Matheus e eu sempre tivemos um elo forte, muitas vezes Cadu até sentia um pouco de ciúmes do próprio filho. 

ㅡ Meu amor, não existe essa coisa de pessoa perfeita. Se você gosta de alguém, você tem que aprender a lidar com suas virtudes e defeitos. Isso é amar.

ㅡ Esse é o problema, mãe. A senhora não tem defeitos. Aliás, tem um sim. Às vezes, se esquece de cuidar de si mesma para cuidar dos outros. Mesmo cansada da rotina do dia, ainda se prontificou a fazer o bolo que eu adoro. Como alguém pode competir com a senhora?

ㅡ Pois, saiba que muitas mães também fazem a mesma coisa. Não sou santa, portanto não me ponha em um altar.

ㅡ Tudo bem, não quero saber das outras mães… Só a minha mãe me interessa. E ela é perfeita.

Ele volta a realizar sua tarefa com um ar maroto e um sorriso no canto da boca, como se tivesse dito algo muito comum. No entanto, para mim, foi simplesmente tudo. 

ㅡ Obrigada, meu bem…

ㅡ Ganho um pedaço extra de bolo?

Os dois caímos na risada e volto a me concentrar nas cenouras sobre a pia. Eu as limpo e começo a cortá-las em pedaços menores para triturar mais facilmente. Um deles escapa e cai no chão.

Saco… Sempre acontece…

Eu me abaixo para pegar e, quando me ergo, minha vista escurece. Tenho aquela sensação de fraqueza nas pernas. Deixo a faca cair no chão e me apoio com ambas as mãos sobre a bancada da pia.

ㅡ Mãe?

Fecho meus olhos e tento respirar calmamente. Sinto um par de mãos apoiando-me as costas e a cintura. Um corpo se coloca debaixo do meu ombro para me guiar até o sofá na sala. Eu meio que desabo ao me sentar e me acomodo no encosto.

ㅡ Não, mãe. Jogue a cabeça para frente e force para cima. 

Na última vez que isso aconteceu, ele ficou desesperado e gritou pelo pai, mas não agora. Está até bem calmo.

Faço como meu menino diz, empurro meu corpo para frente e apoio os braços nos joelhos.  Ele faz pressão com as palmas das mãos na minha nuca enquanto eu empurro minha cabeça para cima. Aos poucos, a minha visão vai retornando e a sensação de fraqueza começa a se dissipar. 

ㅡ Deite-se de barriga para cima.

Eu obedeço. Ele ajeita minha cabeça no assento e depois pega minhas pernas pelas panturrilhas e as ergue, mantendo meus pés no alto.

ㅡ Está melhor?

Giro minha cabeça na sua direção e consigo vê-lo agora com clareza, a preocupação em seu rosto. Eu sorrio para lhe trazer alento.

ㅡ Estou sim… Foi só uma queda de pressão, levantei muito rápido. Mas, você agiu depressa. 

Ele sorri e fica segurando minhas pernas por mais um minuto.

ㅡ Desse jeito o sangue circula melhor e ajuda a oxigenar mais o cérebro

 ㅡ Seu pai te ensinou isso?

Ele suspira e abaixa minhas pernas cuidadosamente, ajudando-me a sentar. Depois, vai até a cozinha, serve um copo com água e retorna, entregando-o para mim. 

ㅡ Não queria ficar gritando sem saber o que fazer como da última vez, então andei pesquisando como agir nessas horas. Nem sempre meu pai está aqui para ajudar e, na ausência dele, eu sou o homem da casa. Tenho que cuidar da senhora. 

Eu respiro fundo e acaricio sua bochecha.

ㅡ Você é um garoto de ouro.

ㅡ O que aconteceu?

Vejo Cadu descendo as escadas e bebo um pouco da água.

ㅡ Ela teve uma queda de pressão e eu…

ㅡ Você por acaso é médico, Matheus? ㅡ Interrompe o pai em tom severo e o menino se cala. Cadu vai até a estante e pega o medidor eletrônico de pressão de uma gaveta. Ele se senta ao meu lado e coloca o aparelho no meu pulso esquerdo. ㅡ Nove por seis. Está muito baixa. Você se alimentou, Carol?

Expulso o ar dos pulmões rapidamente, tremendo os lábios.

Ele faz de propósito, só pode.

ㅡ Sim, eu comi. Sempre tive a pressão baixa, esqueceu?

ㅡ Baixa é uma coisa. Mais um pouco e você poderia desmaiar. Está mais do que na hora de fazer um check-up. Tem que agendar com sua médica. Como é mesmo o nome dela?

ㅡ O senhor nunca sabe de nada…

Eu e meu marido olhamos para nosso filho. Cadu se mostra muito aborrecido ao responder.

ㅡ Não sei porque trabalho muito para te dar uma boa vida. Sua mãe é quem cuida dessas coisas. 

ㅡ E quem é que cuida dela?

Vejo Cadu passar uma mão lentamente pelo rosto, como se estivesse procurando uma paciência que não tem.

ㅡ Você não tem dever de casa para fazer?

De repente, me sinto no meio de uma guerra velada. 

É melhor eu intervir antes que os ânimos se alterem demais.

ㅡ Vocês dois parem. Não foi nada, já estou bem. 

Matheus está crescendo muito rápido e tem um gênio forte como o do pai. Os dois costumam entrar em atrito por nada e por tudo ao mesmo tempo. Ele é altivo em seu tom de voz e ergue o nariz.

ㅡ Já fiz meu dever de casa. Estava ajudando a mamãe a fazer um bolo quando ela passou mal.

Cadu se levanta e se aproxima do menino, que sustenta seu olhar em desafio.

ㅡ Olhe o tom que usa comigo, garoto. 

Matheus olha de relance para mim e eu sacudo a cabeça rapidamente, solicitando silenciosamente que ele não embarque nesse conflito. Vejo-o fechar os olhos e respirar fundo. Ele abaixa a cabeça e junta as mãos na frente do corpo.

ㅡ Sinto muito, pai. Eu só estava preocupado com ela. 

Cadu coça o queixo e depois o nariz. Coloca sua mão sobre a cabeça do filho e a esfrega naqueles cabelos negros. 

ㅡ Tudo bem. Eu entendo.

ㅡ Ah, pai! O senhor também vai ficar arruinando meu cabelo?

Meu marido direciona um olhar confuso na minha direção. Eu dou de ombros e sorrio.

Ainda bem que se acalmaram…

Cadu suspira profundamente e ri de forma contida. Depois, segue para a cozinha.

ㅡ Bom, esse bolo não vai se fazer sozinho. Amor, diga as coordenadas que eu e o moleque faremos o bolo.

Vejo Matheus dar um pulo no mesmo lugar, gritando um "Yes". Eu ensino inglês e espanhol para ele desde os três anos. A vantagem das crianças é que aprendem bem rápido, ainda mais quando começam cedo. E, sem querer me gabar, porém meu filho sempre foi muito inteligente. Então, dou-me conta do ato terrível que está por acontecer. 

ㅡ Vocês dois! Fora da minha cozinha! Vão sujar até o teto!

ㅡ Quando foi que eu fiz isso, Carolina? 

ㅡ Quando fez aquela carne moída! 

Levanto-me do sofá, devagar dessa vez para não ter outra tontura. Os dois já estão mexendo em tudo que é panela. 

Ah… Minha cozinha…

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Cubro meu filho e me sento na cama ao seu lado.

ㅡ Quer que eu leia um pouco até você dormir?

ㅡ Não. Porém, a senhora poderia cantar?

De onde veio isso?

ㅡ Cantar?

ㅡ Ah, mãe…. Não me venha com essa que não canta bem. Já te escutei no chuveiro ou quando está fazendo faxina ou cozinhando. Sempre está cantarolando algo.

Eu nem havia percebido. Acho que, no final, não consigo me livrar da música.

Puxo uma mecha de meus longos cabelos negros para trás da orelha e inspiro profundamente.

ㅡ Está bem. O que quer ouvir?

ㅡ O que quiser cantar, só quero mesmo ouvir sua voz.

Eu suspiro e tomo fôlego. Cantar me faz ficar triste e nostálgica, a música não poderia ser outra além de "In Loving Memory" do Alter Bridge.

"And I know you're a part of me

(E eu sei que você é uma parte de mim)

And it's your song that sets me free

(E é a sua música que me liberta)

I sing it while I feel I can't hold on

(Eu a canto quando sinto que não posso mais suportar)

I sing tonight 'cause it comforts me" 

(Canto esta noite porque isso me conforta) 

(3)

ㅡ É uma música muito bonita, não conhecia.

ㅡ É antiga, mais velha do que você. ㅡ Ele arregala os olhos e eu sorrio. ㅡ Bom, está satisfeito? Hora de dormir.

Ele acena com a cabeça, boceja e se acomoda debaixo do lençol, fechando os olhos. Beijo sua testa e saio devagar, fechando a porta do quarto em seguida. 

Rumo para o meu próprio quarto, porém me detenho no corredor com a mão sobre o peito. Sinto uma enorme angústia esmagando meu coração. Tem sido assim ultimamente, acho que porque, em poucas semanas, será o aniversário da morte dele, juntamente com o meu aniversário de quarenta anos.

Vinte e cinco anos e você ainda me assombra...

Nos últimos anos, eu tenho conseguido aguentar. Achava até que teria superado. Não que a memória dele tivesse sido apagada, sua ausência tornou-se apenas suportável. Porém, agora... Talvez, sejam as canções que tenho ouvido. Esse retorno às raízes, à música, me consome e me desperta ao mesmo tempo. Como se eu me desse conta de estar no fundo de um poço, tentando desesperadamente escalar as paredes para sair.

Respiro fundo e abro a porta. Vejo Cadu já deitado e eu me acomodo ao seu lado, depois de remover o robe de tecido que cobria minha camisola.

ㅡ Ele dormiu?

ㅡ Praticamente.

ㅡ Esse menino está ficando muito rebelde. Viu como ele me desafiou hoje?

ㅡ Você também poderia ter sido menos ríspido.

ㅡ Se não pusermos rédeas nele agora, quando estiver mais velho irá se rebelar.

ㅡ Dramático você, heim? Ele ficou preocupado comigo. 

ㅡ Não passe a mão na cabeça dele... Agora, venha aqui.

Ele me puxa contra seu corpo e me beija. Eu demoro um segundo para corresponder. Acabo empurrando-o gentilmente.

ㅡ Ainda não me sinto muito bem.

ㅡ Já faz uns dias que você está assim. Sexo faz parte da vida de todo casal, Carol…

Outra vez esse apelido…

ㅡ Cadu, prometo que vou ao médico ver isso. Por hora, só preciso descansar.

ㅡ Do quê?

Seu ar inocentemente confuso me deixa indignada, me enerva. Viro-me de lado, de costas para ele, e me cubro com o lençol.

ㅡ Boa noite.

Ele sussurra um boa noite e fica concentrado em seu celular, já que não vai conseguir nada comigo hoje. 

Simplesmente não consigo me entregar quando ele age tão indiferente assim.

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✾ ♬♪♫  Notas Finais ♬♪♫ ✾

1 - VIBRATO: Pequena variação mais ou menos rápida da frequência de uma nota, produzida pelo executante em instrumentos de música (sopro ou especialmente cordas) ou no canto, que gera uma ondulação expressiva do som.

2 - DRIVE: Estilo de cantar usado por diversos cantores, principalmente do Rock e Metal, que faz uso de um timbre “sujo” ou “rasgado”. Normalmente enfatiza uma intenção agressiva ou de força na interpretação das canções.

3 - TREMONTI, Mark; PHILLIPS, Thomas S.; MARSHALL, Brian; KENNEDY, Myles. In Loving Memory. In: Alter Bridge. One Day Remains, Nova Iorque, EUA: Wind-up Records, 2004. CD. Faixa 7.

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